E. Hopper — Nighthawks (1942)

A. P. Salina — Fundamentos teóricos e metodológicos para o desenvolvimento de uma prática psicoterapêutica a partir da Psicologia Histórico-Cultural

Subtema: Teoria

Bruno Bianchi
Published in
36 min readJan 7, 2024

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A Psicologia Histórico-Cultural é uma abordagem que tem se ampliado nos estudos acadêmicos, especialmente nas pesquisas em educação (Asbahr, Oliveira, 2021). Estes avanços, porém, não se restringem aos temas do ensino-aprendizagem-desenvolvimento, sendo perceptível a ascensão da atuação de psicólogas orientadas por esta teoria na área de saúde mental. Particularmente, ressaltamos o aumento do número de profissionais dedicados ao atendimento clínico (psicoterapêutico), fato determinado pelo lugar social que a psicologia ocupa histórica e tradicionalmente, acentuado pela emergência da crise sanitária de COVID-19, momento em que se ampliou a busca pelo trabalho de caráter individual de profissionais de saúde mental.

A partir deste cenário, observamos a tentativa de alguns profissionais de articular a Psicologia Histórico-Cultural com a prática psicoterapêutica. Tal movimento deriva tanto de profissionais que já estudavam a teoria e que, por diversos motivos, se encontraram na necessidade ou possibilidade de exercer o trabalho na clínica, quanto de psicólogos que estão em busca da construção de uma prática psicoterapêutica crítica ou socialmente orientada e encontraram na Psicologia Histórico-Cultural uma base teórica fértil.

De acordo com o aumento deste tipo de exercício profissional, desenvolve-se a necessidade de formação destas psicólogas. Assim, acompanhamos também novos cursos e textos que se dedicam à sistematização do conhecimento relativo à psicoterapia ou aos processos de adoecimento/sofrimento com base nos fundamentos da Psicologia Histórico-Cultural. Tais tentativas de organização do conhecimento que direcione a prática psicoterapêutica, porém, não ocorre sem embates ou conflitos.

O presente texto é uma tentativa (dentre tantas outras) de sistematizar o conhecimento produzido e legado pela Psicologia Histórico-Cultural em sua relação com o trabalho da psicoterapeuta. Partiu-se principalmente da prática profissional cotidiana e do estudo da teoria em sua relação com as demandas das pessoas em atendimento. Em certa medida, o compartilhamento deste conhecimento não diz respeito apenas ao conteúdo dos meus estudos, mas contém um posicionamento mais amplo em relação à forma de relacionar a teoria com a prática — em última instância, uma “forma de estudar” e se apropriar da relação entre a teoria e a prática. Por isso, o desenvolvimento deste texto não deixa de ser um posicionamento frente a outras tentativas de formação e de organização do conhecimento acerca da psicoterapia com base na Psicologia Histórico-Cultural, que também incluem em si determinada forma de relação entre teoria e prática (mesmo que não a explicitem).

Para a elaboração deste texto, para a realização do meu trabalho como psicoterapeuta, assim como para o meu processo de estudo, tenho partido dos seguintes princípios, que considero essenciais: 1. a teoria, por ser uma sistematização teórica e conceitual sobre os fenômenos da realidade, é a base teórica que direciona a construção da prática; 2. toda prática se refere necessariamente a uma teoria, a uma concepção da realidade, ainda que esta não esteja explícita ou seja anunciada; 3. porém, a prática não é um desdobramento direto, imediato e óbvio de uma teoria, sendo necessário a compreensão de como uma dimensão se relaciona com a outra, relação que costumamos nomear de práxis[1].

Defendemos que o caminho para a construção de uma prática psicoterapêutica orientada pela Psicologia Histórico-Cultural demanda uma profunda compreensão da totalidade teórica — seus fundamentos filosóficos e políticos, o acervo de conhecimento sobre fenômenos estudados, as teses gerais produzidas, a maneira dialética de pensar e de produzir conhecimento, etc. Entretanto, também temos a consciência de que uma teoria só pode atingir sua potencialidade quando se transforma em um meio para explicar a realidade de acordo com sua complexidade, condição verificada pela prática.

Com isso, buscamos evitar certo dogmatismo teórico, como se a prática tivesse o dever de “comprovar” a teoria ou uma postura ingênua na qual o que caracteriza uma prática seria o nome que anunciamos — como se a afirmação “sou psicoterapeuta a partir da Psicologia Histórico-Cultural” fosse autoexplicativa. Tentamos nos afastar da vulgarização ou banalização teórica, que se expressa muitas vezes como uma tentativa de eleger (artificial e arbitrariamente) os conceitos importantes para a clínica, sem que se considere a totalidade teórica da qual eles fazem parte. Tampouco consideramos suficiente o exercício de apresentar técnicas e instrumentos a serem utilizados no contexto terapêutico, como se estes tivessem valores intrínsecos. Tais movimentos coadunam com a racionalidade neoliberal acerca do conhecimento, que impregnam as ciências de pragmatismo, incorporando a ideia de que o verdadeiro conhecimento é aquele que é imediatamente útil e a teoria seria, portanto, descartável ou secundária.

Para nós, a relação entre teoria e prática — no nosso caso, entre a Psicologia Histórico-Cultural e a psicoterapia — é complexa e que demanda de cada profissional um movimento reflexivo crítico sobre a teoria, a prática, o contexto do qual ambas emergem e para que direção ambas caminham.

Para explicar o trabalho psicoterapêutico, então, não se deve partir de um ou outro conceito, de uma ou outra técnica/instrumento. Estes são mediações das nossas ações e reflexões, que englobam processos mais amplos. É a teoria, apreendida em sua totalidade, que sustenta a prática da psicóloga em cada situação para a qual for demandado. Em nosso caso, pensamos a psicoterapia como expressão prática do método materialista histórico-dialético e da Psicologia Histórico-Cultural e que, por se apoiar em suas teses, se qualifica como um processo diferente das demais abordagens terapêuticas.

Para a construção de uma prática psicoterapêutica, devemos analisar quais são os fundamentos teóricos e metodológicos que a sustentam, entendendo que estes dizem respeito às especificidades da teoria e deste tipo de atividade. Isso porque a Psicologia Histórico-Cultural, ancorada no método marxista, possui uma maneira específica de compreender cada um destes princípios e, a partir desta compreensão, é produzida uma forma particular de relação psicoterapêutica.

Defendemos, então, a existência de três fundamentos — elaborados na forma de teses — que devem orientar o trabalho de qualquer psicóloga que atua como psicoterapeuta, independentemente de sua abordagem. Dito de outra forma, entendemos que o trabalho psicoterapêutico depende da e se caracteriza de acordo com a resposta que cada psicóloga ou, em última instância, uma teoria dá a estas teses[2]. São elas:

1. Toda psicoterapia contém uma concepção de desenvolvimento do psiquismo.

2. Toda psicoterapia se orienta por uma concepção de sofrimento psicológico.

3. Toda psicoterapia expressa uma concepção de trabalho.

Apesar de enunciadas de maneira separada, estas três teses são interdependentes. Em cada processo terapêutico, a psicóloga está buscando apresentar resposta a estas três dimensões ao mesmo tempo e uma deriva da outra. Assim, não é possível falar sobre sofrimento psicológico sem falar sobre o desenvolvimento do psiquismo, tampouco poderíamos dizer sobre a psicoterapia sem uma concepção de trabalho. Com a compreensão destas três dimensões, de acordo com o conhecimento legado pela Psicologia Histórico-Cultural, entenderemos o posicionamento da psicoterapeuta que se orienta por esta teoria, ou seja, o que significa o exercício da psicoterapia com base na Psicologia Histórico-Cultural.

Fundamentos teóricos da Psicologia Histórico-Cultural em sua relação com a prática psicoterapêutica

a) Concepção de desenvolvimento do psiquismo

Abordar o desenvolvimento do psiquismo com base na Psicologia Histórico-Cultural é uma tarefa árdua e corremos sempre o risco de simplificar demais a teoria. Nesta seção, apresentamos uma breve síntese que, longe de abarcar a totalidade dos conhecimentos desenvolvidos por esta teoria, pode oferecer recursos importantes para estudá-los. Mais do que nos preocuparmos em sistematizar todas as pesquisas produzidas ou os dados analisados no contexto soviético ou brasileiro, buscamos organizar as bases que dão origem à produção destes conhecimentos.

Começaremos, então, pelo princípio mais importante: a Psicologia Histórico-Cultural é uma teoria que se sustenta no método materialista histórico-dialético (Tanamachi, Asbahr e Bernardes, 2019). Assim, a teoria incorpora e expressa necessariamente uma análise materialista, histórica e dialética do psiquismo. Mas o que isso quer dizer? Analisemos por partes as diferentes dimensões do método, ainda que ele se expressa como uma totalidade indivisível.

Em primeiro lugar, a Psicologia Histórico-Cultural é materialista porque entende que a realidade — a matéria — existe independentemente da nossa consciência sobre ela (Marx e Engels, 2007; Netto, 2011). Os fenômenos do mundo existem e tem suas propriedades específicas independentemente de nossa vontade. Por exemplo, a água tinha como ponto de ebulição 100 Cº, ainda que o ser humano não tivesse acesso a este conhecimento. A água continua tendo este mesmo ponto de ebulição para uma criança, mesmo que ela ainda não tenha aprendido sobre isso na escola. Da mesma forma pensamos os fenômenos sociais, que tem materialidade e dinâmicas próprias. Assim, podemos pensar que a política carcerária não reduz a criminalidade, ainda que um grande setor da sociedade acredite que sim. Também poderíamos dizer que a pobreza não seria um produto de escolhas individuais ruins, por mais vídeos de coaches que existam.

São inúmeros os exemplos que nos indicam que a realidade não é uma criação do nosso pensamento ou, em outras palavras, que a realidade não existe porque pensamos sobre ela. Mas mesmo assim, pensamos, certo? Então qual é o lugar que a consciência ocupa em nossa vida? A consciência é necessariamente a consciência de algo que existe. Ou seja, para cada processo de pensamento, há um conteúdo, uma base material externa à pessoa que pensa. Como defende Martins (2013), a consciência é a imagem subjetiva da realidade objetiva.

Assim, a consciência é uma estrutura psicológica que se desenvolve em cada sujeito e que permite a sua orientação diante da realidade. Quanto mais alguém se apropria dos determinantes da realidade (que independem do pensamento) mais condições tem de atuar intencionalmente sobre a realidade, produzir nela transformações mais significativas. Dentre os exemplos citados, ter consciência da falácia da meritocracia — a incompatibilidade entre a ideia e a realidade — permite ao sujeito se relacionar de outra forma com o seu trabalho. Isso não significa que a consciência desta pessoa criou uma outra realidade, mas que possibilitou a elaboração da realidade e disso se desdobrou outras ações em relação a ela. Desta forma, a consciência existe e faz parte da realidade, tanto por ser propriedade de um sujeito, quanto pelo fato de se orientar para a elaboração do mundo objetivo, o que, em última instância, é condição para a própria transformação significativa da realidade material.

Chegamos, então, à segunda questão importante para uma psicologia de base materialista. Todo pensamento é o pensamento de alguém, ou seja, não existe pensamento ou psiquismo autossuficiente. Politzer (2013) reforça que é possível a existência de matéria sem pensamento — como no caso das rochas ou inúmeros objetos da natureza — mas não há pensamento sem matéria. Os textos que lemos, os filmes que assistimos, as músicas que ouvimos, embora contenham elaborações da realidade (pensamentos e emoções), só são acessíveis porque possuem uma materialidade — as letras, as imagens, os sons — e porque são produtos de uma ou mais pessoas. Portanto, não há psiquismo sem o sujeito deste psiquismo.

Nossa tarefa é, então, a de compreender a relação entre determinados processos psicológicos e a vida do sujeito. Tomemos como exemplo a atenção voluntária: quando estamos em um contexto de trabalho, não entramos em contato com a “atenção como um todo” — que é uma abstração realizada a partir de estudos — mas o lugar que esta função psicológica ocupa na vida daquele sujeito concreto, ou seja, de que maneira aquela pessoa está ou não atenta a algum processo, estímulo, atividade, etc. Concluímos que não é “a consciência” (e todas as funções psicológicas que a compõe) que se desenvolve, como se ela tivesse uma existência própria, mas o sujeito que se desenvolve como ser consciente.

Se a vida psicológica depende da vida do sujeito, devemos nos debruçar sobre a concepção de sujeito que carregamos. Marx e Engels (2007, p. 94) afirmam que “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”. Estamos falando, então, que antes de ter consciência, uma pessoa é alguma coisa. Sua condição de sujeito, sua vida determina a sua consciência. Mas que condição é esta? Trata-se do lugar que o sujeito ocupa nas relações sociais, uma vez que o ser humano é visto necessariamente como ser social (Lukács, 2018), como produto histórico e cultural.

A capacidade de compreender a realidade de uma pessoa que viveu na Grécia antiga difere significativamente da pessoa que vive hoje. Da mesma forma, um burguês tem uma forma de pensar sobre a realidade (uma ideologia) que não corresponde a forma de pensar do trabalhador, ainda que compartilhem de um mesmo mundo material e observem os mesmos fenômenos. A nossa participação na vida social determina nossa capacidade de se relacionar psicologicamente com a realidade. Tal condição diz respeito não apenas a cada pessoa individualmente, mas à capacidade que uma sociedade possui de produzir explicações para a realidade e de oferecer recursos para que cada sujeito acesse estas informações.

Vamos a um exemplo: o sentimento de ciúmes. A vivência do ciúmes só é possível em uma sociedade que possui como dinâmica de relação a posse. Um homem branco, que aprende a se relacionar de maneira objetificada com uma mulher, pode experimentar este sentimento de maneira profundamente intensa e com muita frequência. Uma pessoa indígena pertencente a uma cultura em que não há hierarquia nas relações, tampouco um ideal de posse, pode nunca viver este sentimento. O mesmo sentimento (o ciúmes) pode ser vivenciado ou não por pessoas que compartilham de um mesmo momento cronológico a depender do lugar que cada uma ocupa socialmente. Podemos voltar para a tese de Marx e Engels (2007): não é o ciúmes que determina o lugar da pessoa branca ou indígena, mas o lugar que estas pessoas ocupam que determina a possibilidade de viver ou não este sentimento.

Reforçamos que o psiquismo é sempre o psiquismo de um sujeito que existe e sua existência está determinada pelo desenvolvimento histórico e cultural da humanidade. Faz-se necessário agora explicitar que o psiquismo não aparece pronto nos sujeitos, como uma característica que lhes é inata ou natural. Não há uma essência ou natureza humana. Pelo contrário, o psiquismo é desenvolvido em cada sujeito de acordo com os determinantes históricos sociais. Diríamos, apoiados em Leontiev (2004), que o ser da espécie humana (biológico) nasce apenas como candidato a se desenvolver como ser humano (cultural). O desenvolvimento das qualidades típicos do comportamento humano — como as funções psicológicas superiores — depende de sua inserção nas relações sociais e no curso da história. Mais uma vez, não se nasce humano, torna-se humano, humaniza-se.

O processo complexo do desenvolvimento humano pode ser mais bem compreendido a partir da análise da dialética do singular-particular-universal (Oliveira, 2005; Pasqualini, Martins, 2015). Somos seres históricos porque somos capazes de nos apropriarmos do conhecimento, do sentimento e da experiência humana dos outros seres humanos que nos antecederam — e é esta condição que marca a diferenciação entre os seres humanos e os demais animais. Nascemos em um mundo que possui determinada herança cultural, representada pelo conjunto de produtos (materiais e espirituais) que a humanidade desenvolveu coletivamente: as ciências, as artes, as filosofias, os costumes, os valores, dentre outros. Porém, não nos apropriamos automaticamente deste legado, é necessário que tenhamos acesso aos produtos e que nos relacionemos com eles, o que se torna possível (ou não) em uma determinada sociedade. A dialética do singular-particular-universal do desenvolvimento humano é a dialética entre indivíduo-sociedade-gênero humano. Por um lado, como indivíduo, para participar da sociedade, devo me apropriar do conjunto de comportamentos, conhecimentos e valores que foram desenvolvidos há inúmeras gerações. Por outro, é a organização da sociedade que garante ou impede o acesso de cada indivíduo a estes produtos legados pela humanidade[3].

Podemos citar como exemplo o processo de apropriação estética da música. A música é uma produção cultural que tem uma história de milhares de anos, uma forma de decifrar a realidade por meio da manipulação intencional dos sons. Quando nascemos, a música já existe como produto da cultura, não a criamos individualmente. Entretanto, não nos apropriamos automaticamente do legado musical do nosso momento histórico pelo simples fato de termos nascido em um momento em que a música existe e foi desenvolvida. Se torna necessário uma relação entre o sujeito (singular) e a música (universal), que é mediada pela organização social das experiências humanas (sociedade/particular).

Na sociedade capitalista, em que a música se torna uma mercadoria e passa a ser produzida em escala, minha relação pode ser muito próxima de um consumo inconsciente. Nesta mesma sociedade, também posso me aproximar de artistas anti-capitalistas, que se utilizam da música como forma de questionamento a esta sociedade. Posso passar anos da minha vida sem ter escutado uma música de um artista considerado clássico, sua música e seu legado continua existindo. O que define o desenvolvimento da estética musical de cada sujeito não é apenas o fato destas músicas terem sido produzidas por alguém, mas as condições sob as quais estas músicas são distribuídas e podem ser apropriadas: quais artistas têm mais recursos financeiros para acessar uma produtora renomada e disputar tempo de rádio, quais os gêneros musicais propensos a serem consumidos, quanto tempo a classe trabalhadora tem para se debruçar para a arte, quais são as condições de formação estética da classe trabalhadora, dentre muitos outros. O fato de eu gostar de sertanejo ou MPB não é uma simples decisão individual, mas um produto social — sem que esse gosto deixe de ser “meu”, singular.

Encerrando esta brevíssima introdução aos fundamentos do desenvolvimento do psiquismo a partir da Psicologia Histórico-Cultural, sinalizamos que todos os estudos da teoria derivam dos princípios levantados até o momento. Assim, cabe ao leitor estudar cada tema pertinente considerando sua base materialista histórico-dialética. Para o trabalho clínico, sugerimos especificamente que se estude a unidade entre atividade-consciência-personalidade (Souza, 2020), a unidade afetivo-cognitiva (Monteiro, 2015), a unidade entre consciência-inconsciência (Santos, 2018; Silva, 2022), a relação entre pensamento e linguagem (Vigotski, 2009) e o desenvolvimento das emoções (Blagonadezhina, 1978).

b) Concepção de sofrimento[4] psicológico

Como defendemos até o momento, o psiquismo é um produto histórico e social. Isso significa que o sofrimento psicológico, em toda sua pluralidade, também é um produto histórico e social. Podemos tomar emprestado nossa afirmação geral do desenvolvimento do psiquismo sob bases materialistas e reelaborar da seguinte forma: todo sofrimento/adoecimento é o sofrimento de alguém que existe objetivamente e uma maneira de lidar com os fenômenos da realidade.

Antes de iniciarmos nossa apresentação geral sobre a determinação social do sofrimento, devemos fazer uma consideração: não descartamos a presença de possíveis bases biológicas destes processos. Afinal, se o psiquismo é sempre o psiquismo de uma pessoa concreta, todo sofrimento envolve um corpo biológico. Seria impossível falar sobre qualquer sofrimento ou adoecimento sem considerar o corpo da pessoa que sofre ou adoece. O que queremos superar é a ideia de que a biologia e a fisiologia — o cérebro e a química, principalmente — sejam os determinantes destas experiências. O fato de uma pessoa depressiva se sentir improdutiva ou inútil não pode ser explicado pelos tipos de sinapses que o seu cérebro realiza, mas pela forma segundo a qual sociedade da qual ela faz parte está organizada e os significados atribuídos ao adoecimento.

Podemos pensar sobre a determinação social do sofrimento (principalmente) a partir de três vias interdependentes: 1. O sofrimento é social porque é produto de uma determinada forma de organização social da experiência humana; 2. O sofrimento é social porque contém explicações e nomeações culturalmente construídas sobre os fenômenos; 3. O sofrimento é social porque o exercício do cuidado e o desenvolvimento de suas tecnologias são produtos culturais e históricos.

Sobre a primeira dimensão do problema, voltemos para o método. Em uma leitura marxista, uma sociedade existe apenas como um conjunto de relações reais entre seres humanos que, em última instância, diz respeito a um modo de produção e reprodução da vida humana (Politzer, 2013). Neste sentido, a sociedade existe objetivamente e não apenas no mundo das ideias. O capitalismo, em toda a sua complexidade, existe como um conjunto de relações sociais com determinadas características, independentemente da nossa consciência ou do nosso julgamento sobre ele.

Aqui, o importante a ser destacado é que determinadas formas de organização social — uma sociedade — produz objetivamente determinadas formas de sofrimento. Uma importante análise sobre o processo de saúde-doença está na observação da relação entre o desgaste e a recuperação nas atividades humanas (Laurell e Noriega, 1989). Como trabalhador, sob o capitalismo ou outros modos de produção, despendo da minha energia e do meu corpo para exercer minha atividade e para produzir algo para mim e/ou para os outros. Meu corpo, por sua condição finita e vulnerável, demanda processos de reorganização da energia despendida. A intensidade e o tipo de sofrimento que eu vivo depende da organização material destas condições: quantas horas eu trabalho, qual é o esforço físico e psicológico que exerço, quantas horas tenho reservado ao descanso, os ruídos ou o silêncio que se fazem presente durante a madrugada na minha rua, a oferta de lazer e cultura na região onde vivo, dentre outros.

Estamos falando sobre uma interpretação do sofrimento e do adoecimento que é produto direto das condições objetivas de existência de uma pessoa. No modo de produção capitalista, a alienação e a exploração do trabalho exploração faz parte da realidade e não é apenas um fenômeno do pensamento. Em última instância, ainda que eu possa ter consciência crítica sobre o meu lugar na produção social e ter um sentido para o meu trabalho, eu continuarei tendo o acesso à cultura e à sobrevivência por meio do meu salário, que é apenas parte do valor do que eu realmente produzi.

É possível ampliar nossa percepção sobre o problema material do sofrimento humano para além da exploração do trabalho. Outro possível determinante para a experiência de sofrimento são as opressões sociais com base em raça, gênero e sexualidade. Da mesma forma, tais fenômenos não são reduzidos a ideias. Estamos falando sobre condições que determinam objetivamente a existência destas pessoas. A cor da pele de alguém dirá sobre a abordagem ou não de um policial, que pode se desdobrar na violência contra ou na morte desta pessoa. A sexualidade de uma pessoa dirá sobre o fato de esta pessoa ter acesso ou não uma moradia segura, pois pode ser expulsa da casa de sua família de origem. Destes exemplos, seguem-se muitos outros que, novamente, não são meras ideias.

Entretanto, é inegável que existe uma parte ideológica sobre a concepção de sofrimento. Afinal, uma realidade material não existe isoladamente das explicações que se produz sobre ela. As ideias produzidas social e historicamente sobre o sofrimento ou o adoecimento, então, determinam também nossa relação com estes fenômenos. O sentido atribuído por um indivíduo a uma dor física, a uma angústia ou a uma simples tristeza está condicionado pelo significado que uma sociedade atribui a estas experiências.

Podemos comparar duas pessoas que vivenciam sinônimos que caracterizariam o tradicional diagnóstico de TDAH. Para a primeira pessoa, que foi atendida por um psiquiatra que domina o DSM, o TDAH é uma desorganização química do cérebro e é herdado geneticamente. Para a segunda, que questiona o TDAH como diagnóstico, a atenção voluntária é um produto histórico e cultural e, por isso, a sua dificuldade está determinada pela dinâmica de organização da sociedade. Neste exemplo, ainda que ambos experimentem o sofrimento em alguma medida e que estejam em condições objetivas semelhantes (compartilham dos mesmos “sintomas”), podemos dizer que suas vivências são distintas. Há uma grande chance de que a primeira pessoa encontre como forma de “tratamento” para a sua condição o medicamento e que sua expectativa seja a de que o remédio auxilie na sua capacidade de produzir mais. Por outro lado, uma pessoa orientada pela compreensão histórica e social do adoecimento pode dispensar o uso de medicamentos, buscar vias não medicamentosas de cuidado e, além disso, se organizar coletivamente para o combate deste modo de produção que produz desatenção.

Podemos dizer que as ideias produzidas sobre o sofrimento ou adoecimento não apenas se referem ao tipo de experiência que teremos, mas à simples possibilidade de vivê-los. Isso porque os nomes que damos aos fenômenos se referem também a seu valor e validade. A capacidade que uma pessoa tem de elaborar uma determinada experiência como um sofrimento — e, portanto, como algo passível de cuidado — está condicionada pelas experiências que são social e historicamente nomeadas como tal.

Pensemos no trabalho. Na sociedade capitalista, produz-se a ideia de que esta atividade deve ser fonte de realização pessoal e que todos devem amar os seus trabalhos. Nesta condição, um homem trabalhador pode passar a vida em uma atividade que definha o seu corpo e, ainda assim, não interpretar sua experiência de trabalho como um sofrimento. Pelo contrário, pode ficar madrugadas no escritório sob efeito de estimulantes ou pode ter dedicado horas de trabalho braçal sentindo dores em todas as suas articulações e, mesmo assim, dizer para si que “é isso que o torna um homem de verdade”. Este trabalhador experimenta sofrimento objetivamente — seu corpo e seu psiquismo estão exauridos — mas o conteúdo do seu pensamento, determinado pela ideologia dominante, lhe diz o contrário. Sua capacidade de nomear sua experiência como sofrimento depende das referências das quais se apropriou para pensar sobre sua atividade e, em última instância, pode ter a vida completamente marcada pelo sofrimento profundo e não ter acesso aos recursos ideológicos para pensar seu sofrimento como tal.

Assim, a permissão para recorrer ao cuidado ou ao descanso depende de quais parâmetros sociais ideológicos são construídos para qualificar as experiências humanas. Em outras palavras, a cultura define, por meio do significado coletivamente construído e compartilhado, quais experiências humanas são dignas ou não de cuidado, quais são os sofrimentos legítimos.

Uma breve análise histórica da medicina nos ajuda a entender o quanto uma ideologia — neste caso, a científica — produz determinadas experiências. A ciência biomédica tem operado socialmente como conhecimento legítimo para descrever e categorizar o sofrimento humano, especialmente nos polos de saúde e doença. Sua história demonstra o aumento significativo das classificações dos processos de adoecimento. Há cada vez mais categorias diagnósticas e pessoas diagnosticadas, sendo a explicação destes fenômenos ancoradas em explicações químicas e fisiológicas (Freitas e Amarante, 2017). Uma criança, que pudesse ser vista em outros momentos como indisciplinada pode ser vista como portadora de TDAH ou TOD. Um adulto passando por um processo de luto intenso e prolongado pode ser vista como portador de depressão. Mais do que caracterizar o sofrimento como doença, os diagnósticos têm operado como forma de validar o sofrimento por meio da ciência.

Por fim, o sofrimento é uma categoria social porque está apoiado no trabalho social e historicamente realizado para o seu enfrentamento: o cuidado. O que já foi objetivamente uma grande ameaça à saúde e à sobrevivência dos seres humanos pode já não ser mais. O que já foi objeto de preocupação médica pode ser vista como uma experiência “natural” do ser humano ou até como problema político. Isso porque os seres humanos desenvolveram historicamente formas de interpretar e de enfrentar os processos de sofrimento e adoecimento, tendo como uma das principais finalidades a manutenção da vida humana (Souza e Mendonça, 2017).

Podemos pensar nos produtos mais objetivos, como as vacinas ou as máquinas de hemodiálise, assim como nos produtos culturais, como a política de humanização do atendimento em saúde pública. O trabalho exercido para o enfrentamento da condição do sofrimento do sujeito, seja este processo orgânico ou psicológico, determinará a própria experiência de sofrimento do sujeito. No nosso momento histórico, o trabalho de cuidado pode conter uma dimensão técnica e científica, o que faz com que a maneira de lidar com o sofrimento não ocorra apenas espontaneamente nas relações, mas de forma sistemática e intencional (Souza e Mendonça, 2017) — como é o caso dos tratamentos em centros clínicos, hospitais e em nosso caso, na relação psicoterapêutica.

Tomemos como exemplo o caso de duas pessoas transgênero em momentos históricos distintos. Ambas possuem a mesma experiência objetiva de sofrimento e compartilham sentidos parecidos para este processo: sofre-se com a impossibilidade ou a dificuldade de exercer sua identidade. A primeira pessoa vive no momento histórico de ascensão dos manicômios como forma de tratamento para os “transtornos” psicológicos. A segunda pessoa vive em um momento em que a luta anti-manicomial e o movimento LGBT+ já se constituem como organizações relativamente sólidas. É provável que a primeira pessoa seja despejada em um manicômio. É possível que a segunda pessoa recorra a formas de cuidado em saúde mental, terapia hormonal, organização política. Embora não seja possível prever nenhum dos cenários com certeza, sinalizamos para o fato de que a experiência de sofrimento de uma pessoa transgênero está determinada pelas possibilidades de cuidado que foram desenvolvidas histórica e coletivamente pelos seres humanos, assim como pela acessibilidade que tem a estes recursos.

Finalizamos esta seção fazendo uma brevíssima síntese do sofrimento na sociedade capitalista contemporânea. Se estamos corretos em nossas hipóteses, devemos denunciar que o capitalismo, por se basear na exploração do trabalho e ter como ideologia o produtivismo, é um sistema que produz sofrimento e que, ao mesmo tempo, tira do sujeito a possibilidade de se apropriar do seu processo de sofrimento, o que o impede de recorrer a diferentes formas de se cuidar. O imperativo de produtividade, condição para lubrificar e girar a engrenagem do modo de produção capitalista, coloca o sofrimento como uma experiência indesejável, que limitaria a capacidade do sujeito de ser produtivo. Além disso, o capitalismo neoliberal se apoia em uma ideologia individualista, que faz com que o sofrimento seja visto como responsabilidade individual e, portanto, o sujeito que sofre é aquele que falhou. Por fim, o acesso à saúde é transformado em mercadoria e está acessível apenas àqueles que têm condições de pagar pelo cuidado. Sob esta ideologia e organização da sociedade, explicações medicalizantes ganham força, pois operam como uma forma de livrar o sujeito da culpa individual — não é uma falha, é um transtorno — e o afasta de explicações políticas que permitiriam a superação de sua condição.

c) Concepção de trabalho

A psicoterapia é expressão de uma concepção de trabalho. Precisamos olhar a relação terapêutica como uma relação de trabalho e o psicólogo como trabalhador. Porém, essa discussão não se reduz ao fato de esta atividade ser remunerada, mas ao próprio caráter da atividade e da relação que esta possui com a sociedade.

O trabalho é uma atividade social exclusivamente humana, aquilo que diferencia o ser humano dos demais animais (Leontiev, 2004). Contém estas características porque é produto histórico da humanidade e porque se desenvolve a partir das necessidades sociais — em primeiro lugar, da sobrevivência da espécie e, depois, para a sobrevivência da cultura e da sociedade. Poderíamos resumir que o trabalho da psicóloga só existe porque ela faz parte de uma sociedade que contém como uma de suas atividades a psicoterapia e, da mesma forma, o trabalho desta psicóloga está determinado pela organização do trabalho nesta sociedade.

Apesar de ser possível analisar diversas dimensões do trabalho na tradição marxista, seu papel na humanização do ser humano, limitaremos nossa seção à apresentação de uma breve análise das características específicas do trabalho da psicoterapeuta, sem perder de vista seus determinantes mais gerais.

Em primeiro lugar, lembramos que todo trabalho produz algo. O que qualifica o trabalho é a transformação que se produz na realidade. As características da atividade da psicoterapeuta se qualificam de acordo com a natureza desta atividade. Neste caso, nos diferenciamos do trabalho produtivo tradicional. Diferentemente de um artesão, que transforma o barro em tigela com o seu trabalho — ou seja, produz uma alteração objetiva e material na realidade, uma tigela que posso tocar e na qual posso colocar comida — a psicóloga não produz uma transformação tangível na realidade. O trabalho da psicoterapeuta é, em geral, o de produzir transformações na consciência de uma pessoa, ou seja, formas de se interpretar ou de se relacionar com o mundo, com as outras pessoas e consigo mesmo. Dito de maneira direta e simplificada, produzimos sujeitos. Não saímos de uma sessão com um sujeito completamente novo do ponto de vista material (com exceção de pequenas mudanças que poderiam ser observadas nas suas atividades fisiológicas), mas, ainda assim, produzimos algo de novo na realidade.

Tal trabalho, na tradição marxista, tem sido nomeado como trabalho reprodutivo (Bhattacharya, 2023). Este tipo de trabalho especializado é produto da complexificação da própria produção humana. Deste lugar, produzimos a condição para que outros trabalhadores produzam direta ou indiretamente condições para a sobrevivência biológica e cultural dos seres humanos. Como psicóloga, posso atender uma professora e essa professora ensina alunos, esses alunos algum dia se tornarão trabalhadores letrados. Um destes trabalhadores se torna agricultor e, por ser letrado, tem mais condição de acessar o conhecimento produzido historicamente pelos seres humanos e de amplificar a sua capacidade de produzir alimentos. Indiretamente, participamos da dimensão produtiva da atividade humana. Assim, o trabalho exercido por uma psicóloga só pode ser dimensionado em relação ao trabalho de outras pessoas, ao lugar que ocupa em sociedade, tendo como principal motor as necessidades (orgânicas e espirituais) humanas.

Por um lado, nós, da psicologia, somos atravessados por todos os determinantes do mundo do trabalho contemporâneo — não nos afastamos da realidade do trabalho, somos trabalhadores. Por outro, as pessoas que atendemos também estão imersas no mundo do trabalho, entendido como um modo de produção e reprodução da vida humana.

Sob a condição de trabalho reprodutivo, entendemos que o trabalho do psicoterapeuta é historicamente marcado por ser um trabalho de cuidado (Hirata, 2022; Brugère, 2023). Apoiado sob uma concepção de saúde e doença, a psicóloga terá seu trabalho orientado principalmente para o enfrentamento dos processos de sofrimento, buscando a manutenção e melhores condições de vida para os seres humanos. Nos apropriamos dos instrumentos históricos legado pelas gerações anteriores de psicoterapeutas para desenvolvermos nosso trabalho: exercemos a escuta ativa, o acolhimento, desenvolvemos nossa capacidade de interpretar os fenômenos e nos comunicarmos, de oferecer recursos para a criação e manutenção de rede de apoio.

É importante dizer que o processo psicoterapêutico não deixa de conter uma dimensão educativa. Afinal, na relação terapêutica (e fora dela), o sujeito se apropria dos produtos do gênero humano para pensar sobre sua própria experiência. Porém, em nossa posição, a esfera educativa do processo terapêutico está subordinada à esfera do cuidado. A relação de ensino-aprendizagem-desenvolvimento neste contexto não existe por uma inclinação pedagógica, mas por uma necessidade e como condição do desenvolvimento de formas enfrentamento dos processos de sofrimento que a pessoa atendida vivencia. Na psicoterapia, o sujeito se apropria das formas culturais de pensar, sentir e agir sobre a realidade para, então, se tornar mais capaz e mais livre para encontrar alternativas para suas angústias.

Desdobramentos práticos dos fundamentos da Psicologia Histórico-Cultural no contexto psicoterapêutico

Até o momento, apresentamos alguns fundamentos capazes de direcionar o trabalho da psicoterapeuta que pretende se apoiar na Psicologia Histórico-Cultural. Vejamos agora alguns desdobramentos práticos destes princípios.

Começamos nos perguntando: qual é o papel da psicoterapeuta que se orienta pela Psicologia Histórico-Cultural? A resposta mais simples para essa pergunta seria: produzir em conjunto com a pessoa em atendimento autonomia sobre o seu processo de sofrimento de acordo com as possibilidades e limites históricos e concretos. Isso quer dizer que nossa finalidade não é eliminar[5] o sofrimento a qualquer custo, inclusive porque esta ambição é inalcançável. Queremos que esta pessoa tenha mais condições de e ferramentas para enfrentar o seu sofrimento ou adoecimento com protagonismo, como sujeito ativo, como produtor da história.

Se entendemos corretamente o processo de desenvolvimento do psiquismo, compreenderemos que a liberdade e a autonomia não são condições naturais dos seres humanos. O nosso papel é produzir esta condição junto com a pessoa atendida, porque esta condição não existe de maneira inata no ser humano. Mais do que isso, na sociedade capitalista o desenvolvimento psicológico não ocorre em plenitude, mas como uma cisão da capacidade do sujeito de pensar-sentir-agir sobre a realidade (Santos, 2018). Ou seja, no curso esperado da sociabilidade capitalista, o sujeito se torna cada vez mais distante de entender seu processo de sofrimento e de encontrar respostas significativas para ele. O sistema, por ter como base o trabalho alienado, afasta o sujeito das demais relações humanas, da realidade e, em última instância, da sua própria humanidade (Martins, 2020). A consciência se torna, então, falsa consciência.

Voltemos para o tema da liberdade. A capacidade de decisão de uma pessoa — neste caso, sobre o seu processo de sofrimento — não está determinado apenas pela situação concreta, mas pela consciência que o sujeito tem desta situação, dos seus determinantes (Salina, 2023). O sujeito orienta sua prática, seu comportamento e suas ações de acordo com o nível de compreensão que tem da realidade, o que pode ser visto como uma escolha entre diferentes alternativas (de outras práticas, comportamentos e ações). De maneira geral, a pessoa é mais livre de acordo com sua capacidade de compreender as determinações da realidade, do seu comportamento e de sua personalidade (Vigotski, 2000; Bozhovich, 1976) — o que nunca significa a liberdade absoluta, afinal a consciência não cria a realidade, apenas a interpreta. Em específico, a pessoa tem mais condições de enfrentar o seu processo de sofrimento e adoecimento na medida em que se torna capaz de compreendê-lo.

Como produzimos, na relação psicoterapêutica, a consciência de uma pessoa atendida em relação ao seu sofrimento? Se nos apoiarmos nos fundamentos defendidos até então, diríamos o sujeito só pode tomar consciência de sua condição humana, sobre seu próprio sofrimento, sobre seus pensamentos, tomando consciência da sociedade e da realidade da qual faz parte. O objetivo maior da psicoterapeuta é a de que o sujeito desenvolva sua autoconsciência[6], que, como defende Leontiev (2021, p. 245), seria “a tomada de consciência de si nas relações sociais”. No trabalho psicoterapêutico, portanto, buscamos entender, junto ao sujeito, como determinadas condições de existência produziram determinada experiência de sofrimento.

Como apresentamos anteriormente, é a partir das relações sociais que sofremos, nomeamos nosso sofrimento e enfrentamos o sofrimento. Com isso, não diminuímos ou secundarizamos o lugar da personalidade ou singularidade da pessoa atendida. Buscamos, na verdade, superar a tradicional oposição entre indivíduo e sociedade (Oliveira, 2015), entendendo e apresentando ao sujeito a noção de que somos singulares porque somos sociais. Nesta concepção, não existe sentimento ou pensamento “puro” ou “autêntico”, ausente de determinações sociais. Por outro lado, o caráter social do sofrimento não exclui o fato de que este sofrimento diz respeito a uma pessoa, que possui particularidades.

Em nossa trajetória, percebemos dois movimentos que facilitam o desenvolvimento da autonomia da pessoa em atendimento diante do seu sofrimento. O primeiro diz respeito ao processo de resgaste da história deste sofrimento, de reconhecê-lo como parte da sua história singular e não como um destino pré-concebido. Sobre estas intervenções, nos interessamos principalmente em entender como (em que circunstâncias, em que relações, a partir de quanto tempo, etc) determinado sofrimento ou adoecimento passou a fazer parte de sua vida. Este tipo de intervenção permite à pessoa atendida, então, observar sua própria história e nela se reconhecer (por identificação ou contradição).

O segundo movimento, complementar ao primeiro, é o de relacionar a história pessoal com a história coletiva dos seres humanos, com os modos de organização da cultura. Com isso, apresentamos ao sujeito a noção de que sua história singular, suas experiências e as pessoas que compõem sua vida, são parte de um processo histórico mais amplo. Neste sentido, supera-se a divisão tradicional entre individual e social.

Em uma situação comum da clínica, posso receber a demanda de trabalhar questões de autoestima com um homem em atendimento. Para entender esta questão, posso me orientar, então, pela lei genética do desenvolvimento cultural de Vigotski (2021), que diz que os processos psicológicos são internalizações das relações interpessoais. Sobre esta questão específica, compreenderia a autoestima — a capacidade de uma pessoa qualificar ou atribuir valor a si mesma — como uma internalização das relações interpessoais valorativas. Então perguntaria, em uma dimensão mais singular, de que maneira as pessoas com quem conviveu historicamente a qualificavam, ou seja, de que forma as pessoas a viam. É importante sinalizar que determinadas experiências podem ser mais significativas do que outras para uma pessoa, como os insultos que recebia sistematicamente dos colegas na infância em detrimento dos elogios que recebia de sua mãe.

Porém, e isso é o mais importante, nosso papel não se encerra nas perguntas sobre a história de vida singular. Pelo contrário, é preciso que a pessoa atendida se aproprie da determinação social de sua experiência. Neste exemplo, poderíamos pensar que os insultos que o homem atendido recebera na infância são produto de um ideal de masculinidade construído socialmente e difundido pela cultura. Também temos a possibilidade de pensar com a pessoa atendida a dimensão histórica da estética, ou seja, como determinadas formas adquirem o valor de belo ao longo da história. Com estas reflexões, a pessoa se torna mais consciência do seu processo de sofrimento, que é elaborado como um problema de autoestima. Por não ver mais como um problema exclusivamente individual, pode encontrar alternativas para a sua questão: ter uma relação mais intencional com as redes sociais, buscar se apropriar de conteúdos de beleza contra-hegemônicos, enfrentar situações de discriminação quando as presencia, dentre outras.

É importante considerar que o sujeito, conforme pensa sobre seu sofrimento a partir de situações particulares e específicas, também desenvolve (a longo prazo) novas formas de pensar sobre suas questões. Poderíamos dizer que a pessoa atendida “internaliza” a relação terapêutica e começa a se fazer as mesmas perguntas presentes no contexto psicoterapêutico, ainda que se depare com situações novas e fora do contexto terapêutico. O desenvolvimento da autonomia está, principalmente, na capacidade do sujeito se apropriar das determinações do seu sofrimento sem a necessidade de uma profissional orientando este processo. Caso contrário, a relação de cuidado se torna uma relação de dependência na qual o sujeito precisa que a sua psicóloga ofereça a ele respostas.

Como psicoterapeutas devemos oferecer a pessoa atendida novas formas de se relacionar com o sofrimento. Inúmeros instrumentos podem ser utilizados no processo terapêutico para a realização destes dois movimentos, assim como para atingir a finalidade da psicoterapia. O mais comum é o próprio diálogo, no qual afirmamos, sugerimos, questionamos, enfim, interagimos com a pessoa atendida por meio da comunicação verbal. Porém, também podemos utilizar das artes, dos conhecimentos científicos e dos demais produtos da cultura como instrumentos mediadores do processo terapêutico.

Lembramos que, para a Psicologia Histórico-Cultural, o desenvolvimento psicológico não é inato, mas um produto do desenvolvimento histórico dos seres humanos e da relação que cada sujeito singular estabelece com a cultura. Assim, a psicóloga terá necessariamente uma postura ativa na relação com a pessoa atendida. Afinal, nos afastamos da ideia de que as pessoas já carregam em seu interior sua própria cura e cabe a ela descobrir a si mesma. Em oposição a isso, defendemos que o enfrentamento do sofrimento depende dos recursos culturais que encontramos para lidar com eles, sendo a psicóloga uma profissional que medeia a relação entre a pessoa atendida e a cultura.

Por fim, é importante lembrar que o trabalho de desenvolvimento da consciência não se restringe ao desenvolvimento do pensamento. O objetivo da psicoterapeuta orientada pela Psicologia Histórico-Cultural é produzir condições de superação da alienação do sujeito, própria da sociabilidade capitalista (Tanamachi, Asbahr e Bernardes, 2019). A alienação, porém, não produz efeitos exclusivamente no pensamento, mas na relação entre o psiquismo como um todo com a realidade, ou seja, uma ruptura entre os processos de pensar-sentir-agir (Santos, 2018). Isso significa que, para esta teoria, a tomada de consciência só tem sentido em sua relação com a transformação da realidade.

Assim, não esperamos que o trabalho psicoterapêutico produza como consequência única a mudança nas formas de pensar da pessoa atendida. Buscamos que esta consciência, da qual o sujeito é proprietário, se torne instrumento para suas ações e decisões. Com isso, destacamos que a própria relação entre ação, pensamento e sentimento é aprendida e cabe à psicoterapeuta elucidar as contradições e tensões entre estas diferentes dimensões. Tal movimento permite o desenvolvimento da autodeterminação do comportamento (Bozhovich, 2008), que se expressa como a capacidade do sujeito de agir diante das finalidades que estabelece para si.

No que consiste, então, o trabalho da psicoterapeuta orientado pela Psicologia Histórico-Cultural? De produzir junto com a pessoa atendida autonomia para o enfrentamento do sofrimento a partir do desenvolvimento da autoconsciência e da autodeterminação do comportamento por meio da construção e apropriação da cultura.

Não se trata, portanto, de uma simples ressignificação do sofrimento. Uma psicóloga liberal pode dizer a uma pessoa que sofre com sobrecarga de trabalho que ela precisa ser mais resiliente e trabalhar mais. Esta intervenção produz outro sentido para o sofrimento deste sujeito, que assume outra postura perante o trabalho. Embora possamos nomear esta intervenção como uma ressignificação bem-sucedida da experiência, podemos considerar que ela não produz mais condições para o enfrentamento do sofrimento deste indivíduo e, de maneira oposta, o aliena ainda mais de suas possibilidades de encontrar alternativas para o seu adoecimento.

Por entender o sofrimento como um produto histórico e social, a tarefa da psicoterapeuta orientada pela Psicologia Histórico-Cultural é a de ampliar a consciência da pessoa atendida sobre as suas experiências. Neste processo, o sujeito pode desenvolver novos sentidos para o seu sofrimento. Entretanto, o que diferencia a nossa teoria das demais não é a presença ou a ausência da mudança de sentido, mas as características e especificidades deste processo. No nosso caso, trata-se de uma mudança necessariamente social e política: o desenvolvimento de uma forma de olhar para o próprio psiquismo e para o próprio sofrimento de maneira histórica e social.

Considerações finais

O trabalho apresentado representa um recorte do que consideramos essencial — uma base — para a construção de uma prática psicoterapêutica orientada pela Psicologia Histórico-Cultural. Reconhecemos que muitos outros elementos podem contribuir para a elaboração desta prática e que, pelos limites deste trabalho ou da prática dos autores, não puderam ser sistematizados. Reforçamos mais uma vez que, tão importante quanto os fundamentos levantados neste texto é a apropriação crítica e constante da teoria como fundamento da prática. Com isso, complementamos que quanto mais a psicóloga conhecer sobre a sociedade da qual ele faz parte, dos processos de sofrimento que dela resultam, das leis do desenvolvimento psicológico e das dinâmicas patopsicológicas, mais condições terá de conduzir intencionalmente seu trabalho psicoterapêutico com as pessoas atendidas, de acordo com as necessidades de cada processo.

Não é tarde para dizer que o texto desenvolvido está determinado por condições históricas específicas: a sociedade capitalista brasileira, que se apoia na violência racial, homofóbica, transfóbica e misógina. O desenvolvimento do trabalho psicoterapêutico de cada profissional depende da capacidade de estar à altura das necessidades de cuidado específicas desta sociedade e emerge como forma de potencializar a superação ou de encontrar proteção às formas de sofrimento que emergem dela.

Não queremos romantizar a clínica. Pelo contrário, é importante ressaltar que a psicoterapia tem sido defendida socialmente como a forma adequada de cuidado das questões de saúde mental, postura coerente com a sociedade capitalista que privilegia respostas individuais para as suas crises. Com o desenvolvimento deste trabalho, não quisemos alimentar a ilusão de que a terapia, mesmo que socialmente orientada, será a solução para o sofrimento psicológico. Se o sofrimento é produto de uma sociedade e se a autodeterminação do comportamento individual depende da autodeterminação coletiva do comportamento, a superação de todos as questões que enfrentamos em nosso trabalho permeia necessariamente a destruição desta sociedade. Desta forma, embora a Psicologia Histórico-Cultural se oriente ética e politicamente para a emancipação humana (Tanamachi, Asbahr e Bernardes, 2019), tanto sua ciência quanto seus desdobramentos práticos não são capazes de oferecer, em si mesmos, soluções definitivas para os problemas de sofrimento e adoecimento psicológico (Santos, 2018).

A superação da sociabilidade capitalista e do sofrimento que dela emerge demanda a superação do próprio modo de produção capitalista, que só pode ser alcançada pela organização política dos trabalhadores pela revolução. Porém, para que a revolução se construa e se efetive, é necessário que os seres humanos da classe trabalhadora estejam vivos e conscientes. Assim, não nos eximimos do papel histórico que temos como trabalhadores da saúde mental. É, sobretudo, na tensão entre o futuro a ser construído e o presente a ser superado, entre a politização do horizonte a ser alcançado e a elaboração de estratégias de sobrevivência ao presente, entre a imaginação e a construção de uma vida que vale a pena ser vivida, que se dá a atividade (necessariamente política) da psicoterapeuta orientada pelo método materialista histórico-dialético que, consciente de sua pequeneza e de seus limites individuais, coloca seu trabalho à disposição para luta pela emancipação humana.

Referências

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NOTAS

[1] Para ampliar o conhecimento sobre este conceito com base na tradição do método materialista histórico-dialético, recomendamos a leitura de Vázquez (1977).

[2] É importante que nos atentemos para a complexidade deste debate. Uma psicóloga pode anunciar que trabalha com base na Psicologia Histórico-Cultural, mas incorporar em sua prática arbitrariamente apenas alguns dos elementos que compõem esta teoria e, em alguns cenários, atuar de maneira contrária aos seus pressupostos — um exemplo seria uma psicóloga histórico-cultural liberal. Da mesma forma, uma psicanalista pode trabalhar em uma “perspectiva social” e, neste sentido, estaria rompendo (em maior ou menor grau) com o legado freudiano. O que queremos dizer é que, entre uma teoria e a prática de cada psicólogo, há uma infinidade de possibilidades e contradições. Por isso, mais importante do que o anúncio de uma ou outra teoria por uma profissional é a resposta concreta que ela oferece às perguntas levantadas.

[3] Quando pensamos sobre a assertiva “se a classe trabalhadora tudo produz, a ela tudo pertence”, temos a tendência de refletir exclusivamente sobre a divisão material dos bens e riquezas (a distribuição de dinheiro ou de terras, por exemplo). Para compreender a dialética do singular-particular-universal, é importante ampliar esta compreensão para o fato de que todo produto de cultura é produto do trabalho coletivo dos seres humanos e deve estar disponível a cada ser humano, pois são os motores para o seu desenvolvimento. Politicamente, o desenvolvimento pleno de cada sujeito só será alcançado quando a totalidade dos produtos do gênero humano coincidir com a sua disponibilidade.

[4] Privilegiamos o uso da palavra “sofrimento” em detrimento da palavra “adoecimento”, na tentativa de superarmos a herança medicalizante e patologizante da psicologia clínica. Entretanto, pode ser necessário em momentos posteriores aprofundarmos a discussão sobre a diferença entre um e outro; afinal, nem todo processo de sofrimento contém um adoecimento e, da mesma forma, nem todo adoecimento produz necessariamente sofrimento.

[5] Acreditamos que a vivência do sofrimento pode ser, inclusive, uma necessidade para a luta pela emancipação humana. Isso porque a organização política depende de os sujeitos reconhecerem sua experiência nesta sociedade como uma experiência de sofrimento. A falta de acesso aos sentimentos de raiva, tristeza e indignação perante a situação de exploração e violência, próprias do capitalismo, contribui para a manutenção deste sistema, pois o naturaliza e produz a indiferença.

[6] Uma ideia parecida está presente no conceito de individualidade para si (Duarte, 2013).

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Bruno Bianchi

Pai. Psicólogo e especialista em gestão pública. Tradutor e militante do PCB