V. Van Gogh — Pátio do Hospital em Arles (1888)

A. E. de Abreu, J. C. de Almeida — A Clínica Histórico-Cultural na contramão de uma práxis deslocada da realidade concreta

Bruno Bianchi
Psicologia MHD
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8 min readJan 7, 2024

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Subtema: Teoria

A sociedade capitalista, com seu potencial destrutivo, tem a acumulação de lucro como seu objetivo central, desconsiderando quaisquer necessidades humanas para atender esse projeto. Este é o espaço histórico-cultural que nos desenvolvemos enquanto seres humanos. Marcados pelos reflexos da destruição, pela a alienação subjetiva e objetiva,[1] originada na divisão de classes sociais de forma desigual e seletiva, os trabalhadores são colocados em constante falta/desamparo e sobrecarga de funções laborais para tentar “sobreviver” (MARTINS, 2020). De acordo com a autora, da mesma forma que as pessoas se desenvolvem nesse espaço social, as ciências, como a Psicologia Tradicional, também são produzidas, sendo importante voltarmos nossa atenção para as agendas e para o foco que cada área do conhecimento se direciona em suas práticas e elucidações teóricas.

Desde o texto O Significado Histórico da Crise da Psicologia: Uma Investigação Metodológica, Vigotski (2004) alertava e colocava ênfase na necessidade da Psicologia que se construía como ciência, superar as dicotomias postuladas por cada abordagem particular em seus conflitos de interesses e compreensão, para colocar foco na construção de uma Psicologia Concreta, que tem como base a formação social do psiquismo.

Assim, o objetivo principal deste escrito, é refletir sobre o processo de trabalho no espaço da clínica psicológica, considerando as contradições da sociedade capitalista e seus reflexos na formação da consciência humana e na produção do sofrimento psíquico — ancorado nos pressupostos teórico-metodológicos da Psicologia Histórico-Cultural. Coloca-se em evidência a impossibilidade de tecer todas as considerações possíveis acerca desses processos e fenômenos sociais, uma vez que, além dos limites no que compete a estrutura do texto, uma análise histórico-dialética não se configura como um recorte encerrado e apartado da realidade, mas sim, síntese em movimento, daquilo que se abstrai da realidade concreta (FRIGOTTO, 2020).

A abordagem Histórico-Cultural, postulada por L. S. Vigotski e seus continuadores tem como ferramenta metodológica o método Materialista Histórico-Dialético para produção de conhecimento, análise das relações sociais e intervenção na realidade social. Conforme Frigotto (2020, p. 19), o conhecimento que se baseia no Materialismo Histórico-Dialético para compreensão da realidade social, tem como intento principal análise das contradições criadas pela divisão de classes, carregando a proposição de superar esse modo desigual de organização econômica social.

De acordo com a Psicologia Histórico-Cultural, a consciência humana se desenvolve de forma histórica e social, sendo forjada a partir da atividade do ser humano na realidade ao qual ele pertence, atividade essa mediada por instrumentos sociais, que dependem diretamente das condições e ofertas concretas existentes na vida da pessoa. Nesse sentido, o desenvolvimento psíquico não é algo somente biológico, estanque e descolado da realidade, acontece na dialética objetividade-subjetividade. A consciência humana é produto do desenvolvimento psíquico histórico-cultural, e as funções psicológicas complexas[2] se movimentam em unidade, em um processo interfuncional que resulta em uma “imagem subjetiva do mundo real/externo” (MARTINS, 2020, p. 156).

Em uma lógica dialética, mente e o corpo formam a unidade biológico-social, ou seja, o funcionamento e desenvolvimento é interligado, e na medida em que ocorre o desenvolvimento das funções complexas, histórico-culturais, o funcionamento biológico continua a existir, porém é superado, com intuito de conferir as funções complexas a tarefa de orientar o ser humano no espaço social (MARTINS, 2020).

As funções psíquicas complexas, como explicam Aita e Tuleski (2017), se desenvolvem nesse percurso social em que cada pessoa acessa mediações específicas que lhe são oportunizadas ou não. Assim, marca-se que a qualidade da imagem que se faz da realidade, ou seja, como a realidade é refletida em cada consciência, depende da qualidade das mediações em que se desenvolveram as funções psíquicas complexas.

Em Martins (2020), observa-se essa argumentação para pensar na tomada de consciência, autoconsciência dos processos de alienação, que seriam fundantes para o enfrentamento das opressões. Mas como haver autoconsciência sem mediações adequadas, reforçando que mediações são produzidas e fazem parte do mundo que cada pessoa vive? Tal fato é refletido nos graus de alienação a que somos submetidos no trabalho e na vida particular e a consciência que temos disto em nossas experiências.

Buscando aqui realizar essa conexão com a nossa realidade objetiva da sociedade brasileira, com o mundo em que vivemos que reflete nessa escrita, cabe destacar que, como mencionado anteriormente, essa consciência que nos orienta no mundo é desenvolvida no interior da sociedade e esta é construída no modo capitalista de produção. Nesse sentido, quais seriam os reflexos no desenvolvimento psíquico forjado nas entrelinhas da divisão de classe sociais? (MARTINS, 2020); (CARVALHO, et al., 2023).

A sociedade brasileira se constrói em bases exploratórias e desiguais, criadas pela colonização, escravidão, capitalismo dependente e neoliberalismo. Importante ponderar então, sobre as limitações produzidas em cada realidade individual e particular no que se refere às condições objetivas de vida dos brasileiros, que são atravessados diariamente pela exclusão social, racismo, conservadorismo, machismo e outros sistemas de opressão. Esses fenômenos de subordinação são sedimentados mediante a alienação enquanto fenômeno que infere sobre a desapropriação do que se faz e do fazer e no mascaramento dessas opressões, por meio da individualização e naturalização da desigualdade resultante desse processo (ANTUNES, 2022); (FRIGOTTO, 2020, p. 27).

Sob o contexto que se faz cerceado por faltas diversas no que se refere à vida concreta, sobrecarga de trabalho e a alienação enquanto processo social — que inviabiliza a tomada de consciência e compreensão das estruturas de exploração, tem-se a produção histórico-social do sofrimento psíquico. Visando trazer para o debate quais as características concretas que compõem os sofrimentos enfrentados pelas pessoas, considerando sua história, onde vivem, acessos que possuem, que não possuem e quais seriam de fato seus sofrimentos, a compreensão social do fenômeno objetiva sua análise para além da aparência, que seriam os sintomas e queixas de cada pessoa (MARTINS, 2020, p. 157).

Uma clínica psicológica que parta do materialismo histórico-dialético, nesse sentido, não se constitui pela lógica individualista geradora de sofrimento, que coloca como foco do adoecimento e das dificuldades enfrentadas por cada pessoa como sendo algo que poderia ser cuidado, prevenido e evitado por esta. Na contramão de uma perspectiva a-histórica, naturalizante e biologizante, o sofrimento psíquico é entendido enquanto um fenômeno multideterminado, uma vez que não produzimos nada somente com as nossas mãos. Para compor um espaço que veja o sujeito em sua integralidade, o contexto sócio-político-afetivo precisa ser considerado, em sua estrutura dinâmica.

Compreendendo tais apontamentos, o papel do psicólogo se encontra na função de promover desenvolvimento e processos de subjetivação, a partir da mediação entre a vivência de cada indivíduo e das potencialidades que este pode alcançar. Além disso, faz-se importante atentar para o desenvolvimento do processo de conscientização que compõe a dialética entre homem e realidade, ou seja, a transformação mútua entre homem e sociedade, que quando a modifica, necessariamente se transforma (Kahhale; Montreozol, 2019). Além disso, segundo os mesmos autores, o psicólogo proporciona o conhecimento e a decodificação do mundo, que permite “compreender as desigualdades entre os mecanismos que o oprimem e desumanizam, que alienam sua consciência e mistificam tais situações como naturais” (KAHHALE; MONTREOZOL, 2019, p. 929).

Essa abertura para novas perspectivas sobre si e sobre o mundo, possibilita o desenvolvimento de uma consciência crítica, que pode conduzir a uma nova práxis. Ademais, recuperar a memória histórica de sua produção, permite tanto o contato com o passado quanto os horizontes contidos em uma determinação mais autônoma no futuro, em um processo de desalienação do sujeito (KAHHALE; MONTREOZOL, 2019). Mesmo que não seja este um movimento apenas da Psicologia ou do psicólogo, compreender a realidade concreta em suas contradições, bem como as relações que tais determinações incorrem sobre o sofrimento psíquico se faz fundamental.

Assim, não se tratando de uma tarefa individual que incorre no movimento feito pela ciência burguesa moderna, ou que se restringe somente à Psicologia como campo da ciência, encerra-se colocando a atenção para um dos movimentos sinalizados neste ensaio, que frisa a necessidade de uma práxis que considere a dialética em que o mundo é construído e o homem se constrói. E, uma práxis também pautada na historicidade, para então pensar as necessidades, impossibilidades e possíveis formas de enfrentamento das opressões capitalistas. Como enfaticamente ressalta Conceição Evaristo em seu livro Olhos D’ Água, que tenhamos um olho chorando as dores da realidade e outro espiando a “solução”. Esta é a base de uma Psicologia Concreta e o dever ético-político por ela produzido!

Referências

AITA, E. B.; TULESKI, S. C. O desenvolvimento da consciência e das funções psicológicas superiores sob a luz da Psicologia Histórico-Cultural. Perspectivas em Diálogo: Revista de Educação e Sociedade, v. 4, n. 7 (2017), p. 97–111, 16 jul. 2017.

ANTUNES, R. Capitalismo Pandêmico. 1ª Edição. São Paulo: Boitempo, 2022. p. 15–85.

CARVALHO, B. P. et al. Psicologia histórico-cultural: a que será que se destina?* Teses sobre a indissociabilidade entre psicologia e política. Teoría y Critica de la Psicología, v. 19, 2023. p. 79–105. Disponível em: https://www.teocripsi.com/ojs/index.php/TCP/issue/view/21 (ISSN: 2116–3480)

EVARISTO, C. Olhos D’ Água. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Pallas — Fundação Biblioteca Nacional, 2016.

FRIGOTTO, G. Método Materialista Histórico como Instrumento de Análise da Realidade. In: TULESKI, S. C. et al. Materialismo histórico-dialético e psicologia histórico-cultural: refletindo sobre as contradições no interior do capitalismo. 1a Edição E-book. Paranavaí-PR: Editora Universitária EduFatecie, 2020. Disponível em: ://editora.unifatecie.edu.br/index.php/edufatecie/catalog/book/43.

MARTINS, L. M. Desamparo e Sociedade Capitalista: O que a Psicologia tem a Dizer? In: TULESKI, S. C. et al. Materialismo histórico-dialético e psicologia histórico-cultural: refletindo sobre as contradições no interior do capitalismo. 1a Edição E-book. Paranavaí-PR: Editora Universitária EduFatecie, 2020. Disponível em: ://editora.unifatecie.edu.br/index.php/edufatecie/catalog/book/43.

KAHHALE, E. M. S. P.; MONTREOZOL, J. R. PRÁXIS CLÍNICA: A PSICOTERAPIA COMO MOVIMENTO DIALÉTICO FRENTE À DESIGUALDADE SÓCIO-SEXUAL. Psicologia em Revista, v. 25, n. 2, p. 924–941, 2019.

VYGOTSKY, L. S. O Significado Histórico da Crise da Psicologia: Uma Investigação Metodológica. Teoria e Método em Psicologia. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

VYGOTSKY, L. S. A transformação socialista do homem. URSS: Varnitso. Tradução Marxists Internet Archive, english version, Nilson Dória, 1930 — jul 2004. http//:www.marxistts.org/.

Notas

[1] Para aprofundamento indica-se a leitura do texto: TULESKI, S. C. Poderia ser a subjetividade, objetivada? Em busca da superação da dualidade em Psicologia. In: TOMANIK, E. A; CANIATO, A. M. P; FACCI, M.G.D. A constituição do sujeito e a historicidade. Campinas, SP: Editora Alínea, 2009.

[2] O texto a seguir discute o desenvolvimento das Funções Psicológicas Superiores na perspectiva histórico-cultural: Aita, E. B.; Tuleski, S. C. O desenvolvimento da consciência e das funções psicológicas superiores sob a luz da Psicologia Histórico-Cultural. Perspectivas em Diálogo: Revista de Educação e Sociedade, v. 4, n. 7 (2017), p. 97–111, 16 jul. 2017.

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Bruno Bianchi
Psicologia MHD

Pai. Psicólogo e especialista em gestão pública. Tradutor e militante do PCB