S. Dalí — A Persistência da Memória (1931)

G. S. Capoani — Articulando o conceito de memória e sua relação com a prática clínica, sob o olhar de Rubinstein, Vigotski e Lígia Martins

Subtema: Teoria

Bruno Bianchi
Published in
7 min readJan 7, 2024

--

Para pensar no conceito de memória, é necessário refletir na representação sobre algo que ocorre, no qual será posto pelas representações através das recordações vividas do sujeito, que foram vistas ao longo das experiências deste. As representações do sujeito são formadas pelas percepções que o homem compreende a realidade, através do reconhecimento generalizado (Rubinstein, 1973 p.18), como por exemplo o conceito de mesa, cadeira e outros. Esse reconhecimento se dá por uma sucessão de percepções que estão atreladas à evolução da personalidade e realidade que ela vai integrar com os hábitos que passou durante determinado espaço e tempo, ou seja não ocorre de uma forma impessoal e totalmente individualizada, mas sim através do contexto da pessoa e suas experiências, pode-se constituir as recordações do que foi vivido.

Ainda a respeito das percepções, é uma função conectada à consciência, que reflete o conjunto de propriedades, o que possibilita a imagem completa unificada do fenômeno. Através dela ocorre a atribuição de significados das impressões sensoriais, em que o sujeito tem contato e pela discriminação é possível perceber os pontos básicos e determinantes das situações. O processo perceptual poderá ocorrer quando as informações chegam ao sujeito e ele consegue reconhecer o objeto, permitindo o processo de identificação. De acordo com Luria (LURIA, 1991a, p. 40 ) a percepção leva em conta dois pontos, sendo um deles o componente motor, como apalpação, movimento dos olhos, que participam de discriminações de pontos básicos, enquanto o outro ponto fala sobre a experiência do sujeito que diz sobre a análise e síntese das informações que chegam e que já existiram, onde ocorre também o processo de comparação.

Além das percepções, há a recordação dos pensamentos, como por exemplo o caso do sujeito ter percepção das características de objetos que viu, ele pode conservar os conhecimentos e aplicá-las em outras situações que não foram requeridas, ou até antes não haviam necessidades, mas que através da abstração do que foi generalizado até o momento, o sujeito pode aplicar sentido em novas experiências.

Pensando no que foi comentado, a memória contém os processos de retenção sobre o que viveu e posteriormente acaba recordando, pelas percepções e pensamentos do sujeito. Ao longo da vida o indivíduo resolve problemas que acaba passando e dessa forma retém muita coisa, onde acaba guardando conteúdos de uma forma espontânea. Mas conforme a complexidade das atividades humanas, a retenção pode se converter em um ato consciente e intencionado. O reflexo ou reprodução da memória não ocorre de forma passiva e se relaciona com a personalidade que foi reproduzida, onde na vivência presente, a consciência pessoal pode tirar conclusões e compreensões de hábitos do passado e sua influência nos comportamentos atuais.

A memória também traz consigo os processos do psiquismo humano, como a atenção, interesse, emoções, linguagem e outros. Sendo um fenômeno que pode sofrer influências destes pontos, portanto a retenção de algo ocorre pela apropriação, seleção, sistematização e síntese do que se viveu. A forma pela qual o indivíduo vai reter suas memórias, está atrelada a como algumas experiências lhe foram passadas pelo momento histórico e social, que são reproduzidos pela atividade do trabalho em determinado contexto, estando atrelados às necessidades da sociedade, assim como nos animais a memória está vinculada às necessidades biológicas da atividade vital, como por exemplo a memória olfativa dos cães.

O tema acaba trazendo em questão a importância de perceber a forma pela qual o sujeito vai retendo determinadas percepções sobre aquilo que vivenciou durante os períodos da vida, pensando desde sua primeira infância, pelas formas que o sujeito acaba interiorizando certos conteúdos e também pensando no seu contexto social e mediações que lhes foram proporcionadas ao longo do seu histórico, entendendo o impacto da mediação no desenvolvimentos das funções superiores que respaldam também sobre a formação da memória. A partir destas análises e trazendo os conteúdos para a consciência, é possível haver maior compreensão sobre aquilo que foi considerado relevante para o sujeito, além de permitir o entendimento de como o sujeito valoriza aspectos do pensamento (sejam motores, cognitivos, afetivos, visual e outros.)

O fenômeno da memória pode-se apresentar no sujeito através da percepção, a qual está ligada a imagem de um objeto, através da presença direta desta, enquanto a representação está atrelada a influência sensorial de algo que já não está mais na frente do sujeito, de forma que há uma maior influência de generalizações e abstrações, onde as imagens percebidas podem carecer de detalhes físicos, mas que atuam através de conceituações na memória. Portanto a representação se apresenta conforme é percebido em determinado momento, ligado às condições específicas da situação do indivíduo em que se encontrou o fenômeno. As representações que o sujeito carrega consigo ao longo da vida também estão relacionadas com a hierarquia da importância do que foi vivenciado, onde serão abordados pontos generalistas de determinadas situações.

Enquanto a percepção fala sobre a forma pela qual o sujeito assemelha os fenômenos a sua volta, a memória seria o registro, conservação e reprodução das experiências anteriores, com a possibilidade de acumular informações de fenômenos que passaram ( Luria 1991, p. 39). Luria se debruçou também acerca do tema, onde pontuou dois estágios de formação de memória, sendo uma delas a curta (a formação de vestígios no lapso de tempo, atendendo uma demanda pontual) e a outra a de longo alcance (formação seguida de vestígios por muito tempo, resistindo efeitos de outras ações).

Os fatores de influência no processo de formação da memória, dentro desta linha de raciocínio seria a organização semântica pelo arranjo de elementos em estruturas lógicas que pelas associações acaba otimizando a estabilidade dos vestígios que se tem contato. A estrutura da atividade é um ponto importante, pois aparece na margem da intenção para concluir uma atividade, ou seja através da tentativa de atender o objetivo de determinada atividade,o sujeito retém pontos, mesmo que de maneira involuntária e também a peculiaridade de como cada sujeito acaba assimilando os fenômenos, para que ocorra o processo de memorização. (Luria 1991, p. 83) trouxe as formas de memorizar, seja pela audição, coordenação motora e também a própria organização da atividade para efetuar a atividade, seja de uma maneira mais abstrata (formulações lógicas e conceitos) ou objetiva (pontos sensoriais e propriedades). Portanto a memória pode ser percebida como uma função ativa e complexa que supera as formas naturais, em formas voluntárias e culturalmente desenvolvidas (Ligia Martins, p. 127).

No texto, Rubinstein comenta sobre experimentos realizados por Binet e Buhler, onde foram feitas algumas anotações sobre como o sujeito retém informações, onde a presença de sentido aparece como um ponto importante para a retenção de conteúdo (Rubinstein, 1973, p.26). Neste experimento e de acordo com a análise de Rubinstein (1973, p. 27) há também a influência da formulação linguística para a formação do pensamento da retenção, onde ambos os fenômenos acabam sendo vistas como uma unidade no processo de retenção (pensamento e linguagem).

Aprofundando o tema, nos anos iniciais a criança faz o reconhecimento sobre os objetos e pessoas que a cercam no momento imediato, sendo que há pouca orientação e organização da memória sobre o comportamento da criança. Após o domínio acerca da linguagem, a capacidade de memorização terá um aumento, onde no começo é uma capacidade predominantemente objetiva, de fenômenos concretos. Através do ensino ocorrem transformações sobre a memória lógica, que acaba ligando mais ao pensamento do que a percepção ( Luria, 1991,p.86) (presença do pensamento na memorização).

Vigotski (2001, p.134) relacionou as formações da memória e o que é alterado, sendo que através do pensamento ocorre a recordação de objetos que estarão presente figuras com significados, de forma que o pensamento, memória e significado acabam tendo uma forte relação. Também a partir da mediação da linguagem, pode ocorrer a ruptura da memória visual imediata, possibilitando a memorização verbal e conceitual, se formando como memória lógica e podendo constituir traços da cultura. (Ligia Martins, p.131) traz que a memória se torna parte interna e o pensamento irá representar os signos através de métodos racionais, ou seja exige organização intencional da atividade, requerendo uma atitude ativa do sujeito para evocar tal memória. Sob esta visão, é possível perceber a importância da influência das mediações perante o desenvolvimento das funções superiores, nos processos de aprendizagem no contexto da infância, mas também através do processo clínico, onde é possível, através da intervenção do terapeuta, fornecer mediações que possam atribuir novos conceitos e significações para o sujeito que está participando do processo terapêutico.

Trazendo agora a formação e fixação da memória, o caráter selecionador se dá pela retenção sobre aquilo que é significativo e de interesse do sujeito. A atitude acaba aparecendo como uma condição para que essa retenção possa ocorrer, atitude essa influenciada pela relação dos aspectos emocionais das situações vividas. No texto Rubinstein menciona experimentos de Freud e Blonsky onde foram investigados as relações destes aspectos emocionais com a retenção, no caso do primeiro foram considerados como mais relevantes a retenção de momentos agradáveis, enquanto Blonsky demonstrou a relevância dos momentos desagradáveis (Rubinstein, 1972, p.35). Apesar da discordância dos trabalhos, percebe-se que vivências emocionalmente significativas contém uma maior retenção para o sujeito, do que aqueles sem tamanha relevância. Além deste ponto, é destacado também a relação do acontecimento com os interesses atuais que a pessoa está vivendo, seja por exemplo pela angústia de algo, ou alegria de determinada situação, mas que esteja vinculado ao o que a pessoa está passando na atualidade, tendo também como influencia a maneira como a personalidade dessa pessoa vai perceber as memórias e poder lidar com elas no momento atual. Diante do que foi exposto, podemos relacionar com o trabalho exercido durante o processo terapêutico, onde através do diálogo sobre questões e eventos de vida passados que o paciente traz como significativo, pode-se pensar e perceber quais emoções surgiram diante dos fenômenos durante aquele período e qual a forma que essas emoções afetam o sujeito. Podendo então refletir e pensar em maneiras possíveis de ressignificações, partindo de uma análise mais completa, acerca do contexto social e histórico sobre o evento, partindo de uma conscientização maior quanto ao ocorrido.

Referências Bibliográficas

Martins, L. M.. (2012). O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições à luz da Psicologia Histórico-cultural e da Pedagogia Histórico-crítica. Interface — Comunicação, Saúde, Educação, 16(40), 283–283. https://doi.org/10.1590/S1414-32832012000100025

Rubinstein, S.L. (1972). Principios gerais de psicologia geral. Volume IV, Editorial Estampa.

Luria, Alexande r Romanovich, 1902–1977. A construção da Mente / A.R . Luria ; traduzido por Marcelo Brandão Cipolla. — São Paulo : ícone, 1992

--

--

Bruno Bianchi

Pai. Psicólogo e especialista em gestão pública. Tradutor e militante do PCB