M. Lenz — Uma Canção da primavera (1913)

H. C. Donadi — Oficina de Arte-Personalidade: uma proposta de intervenção em psicoterapia grupal

Subtema: métodos e procedimentos de intervenção

Bruno Bianchi
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9 min readJan 16, 2024

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RESUMO

Este artigo, fundamentado no materialismo histórico-dialético, explora a psicoterapia grupal por meio de uma Oficina de Arte-Personalidade, uma intervenção em psicoterapia grupal. A pesquisa destaca a evolução dos participantes na compreensão mútua, enfatizando o papel do terapeuta na mediação grupal. Princípios éticos e teóricos marxistas embasam a prática, contribuindo para uma abordagem psicoterapêutica alinhada ao materialismo histórico-dialético. O estudo conclui ressaltando a importância do diálogo coletivo e convida à avaliação crítica, reconhecendo as influências de importantes pensadores na construção dessa prática terapêutica.

INTRODUÇÃO

Desde a antiguidade diversas teorias tentam explicar a personalidade, muitas vezes tentando enquadrá-la em conceitos que expliquem o porquê determinado indivíduo se comporta de certa maneira. Uma dessas teorias é o modelo dos 5 grandes fatores, oriundo de métodos estatísticos, compreende que a personalidade pode ser explicada em 5 grandes categorias, que pouco se relacionam (Silva; Nakano, 2011). Em muitos testes psicológicos como a Escala de traços de personalidade para crianças (ETPC) a personalidade é quantificada. Um exemplo: a paciente tem 75% de sociabilidade, sugerindo que a paciente apresenta um comportamento social adequado e está bem adaptada às normas sociais (Sisto, 2004).

Quando é solicitado que uma pessoa fale sobre si mesmo, ela nomeia uma série de características, mas a questão é: a partir disso consegue-se descrever a personalidade dela? Vigotski diria “a mera descrição não revela as relações dinâmico-causais reais subjacentes ao fenômeno” (Vigotski, 2007, p. 64). Caso o profissional tivesse como pressuposto que a personalidade não se movimenta e não se relaciona com outras categorias a resposta poderia ser sim. Contudo, a tese da personalidade imóvel é falsa e não se sustenta dentro dos pressupostos filosóficos do materialismo dialético.

A matéria está sempre em movimento. O repouso absoluto é apenas uma abstração, o movimento é um uma realidade, ainda que a realidade do movimento esteja encoberta pela aparência do repouso (Sodré, 1969). O mesmo pode-se dizer para personalidade, uma vez que ela não existe independente do mundo material e tem em sua essência na totalidade das relações sociais (Rubinstein, 1934) , pois “os homens, ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar” (Marx e Engels, 2007, p. 94). Vale acrescentar, que rejeitar que a personalidade é determinada biologicamente não significa excluir a importância do biológico:

Em contraste com as doutrinas dominantes na psicologia e psicopatologia modernas, nas quais a personalidade aparece em seu isolamento biológico como um dado primário imediato, como uma singularidade absoluta existente em si mesma, determinada por impulsos profundos e biologicamente determinados ou características constitucionais, independentemente de conexões e mediações sociais, para Marx a personalidade e, ao mesmo tempo, sua consciência são mediadas por suas relações sociais, e seu desenvolvimento é determinado principalmente pela dinâmica dessas relações. Assim como evitar a psicologização da personalidade não significa a exclusão da consciência e da autoconsciência, a rejeição da biologização não significa a exclusão da biologia, do organismo, da natureza da personalidade. A natureza psicofísica não é suplantada ou neutralizada, mas é mediada pelas relações sociais e reconstruída a natureza se torna humana! (Rubinstein, 1934, p. 20)

Já que a personalidade não pode ser reduzida em modelos estatísticos, de testes e escalas psicológicas, que se limitam à mera descrição, como é possível explicar ela em suas múltiplas determinações? A unidade de análise psicológica da personalidade é a atividade do sujeito, orientada por motivos, objetivando determinada necessidade. É necessário compreender sua dinâmica de desenvolvimento engendrada pelas relações sociais e isso perpassa pelo entendimento de toda estrutura da atividade, ou seja, para aprender a personalidade é necessário considerar o ser humano em suas condições materiais de existência socioculturais (Leontiev, 1979).

Tal perspectiva é fundamental no contexto terapêutico, porém muitos psicoterapeutas relatam dificuldades quando trabalham em grupos terapêuticos. As principais queixas são: dificuldade de perceber quais as atividades dos diversos membros do grupo, qual a dinâmica de suas personalidades e como construir um vínculo efetivo com tantas pessoas ao mesmo tempo? São questões complexas que não há pretensão de respondê-las em sua totalidade no presente artigo e sim fazer levantamentos iniciais para construção coletiva de uma práxis psicoterapêutica grupal coerente com o materialismo histórico dialético.

Durante a disciplina de práticas grupais de uma faculdade de psicologia, na qual os alunos tinham que elaborar uma intervenção de grupo e aplicá-la em sala. No intuito de praticar a mediação grupal e encontrando escassas referências sobre grupo-terapia e marxismo, optou-se pelo ato de criação e assim nasce uma proposta de intervenção em psicoterapia grupal, a oficina de Arte-Personalidade. Tendo como meta desvendar a aparência de repouso da personalidade a partir da realidade de seu movimento, usando como mediador fundamental desse processo a arte.

Os objetivos gerais deste artigo são centrados na descrição da Oficina de Arte-Personalidade, uma intervenção em psicoterapia grupal desenvolvida como resposta à lacuna existente nas referências sobre grupo-terapia e marxismo. O propósito principal é elucidar a proposta de intervenção, destacando seu processo de criação, fundamentação teórica e objetivos práticos. De maneira mais específica, o artigo busca fornecer uma compreensão abrangente da prática de mediação grupal, explorando como a arte é utilizada como elemento mediador para desvelar a dinâmica da personalidade em movimento.

METODOLOGIA

O artigo adota uma abordagem qualitativa, fundamentada no materialismo histórico-dialético. Para atingir seus objetivos, realiza uma revisão bibliográfica abrangente, destacando conceitos de pensadores como Petrovski, Silvia Lane, Vigotski, Leontiev, Marx e Engels. A pesquisa emerge da prática de uma oficina de Arte-Personalidade, desenvolvida durante uma disciplina de práticas grupais em psicologia, realizada em uma Universidade Privada no município de Fortaleza, no Ceará.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE PSICOTERAPIA GRUPAL

A prática do psicoterapeuta deve ser pautada por princípios éticos de superação, cooperação e emancipação. (Delari, 2009) Diferente de outras concepções, uma práxis marxista não constrói uma relação de dependência terapêutica e sim de desenvolvimento da autonomia, autoconsciência e potencialidades do sujeito. Dessa forma, em grupo-terapia o terapeuta deve propor “modalidades de atividades nas quais as potencialidades de uns contribuam para a superação dos limites dos outros e a dos outros para a superação dos de cada um” (Delari, 2009, p. 31).

Se essa práxis visa o desenvolvimento da autonomia, ela não é e não pode ser espontânea, é intencional, com objetivos e metas bem estabelecidos. O terapeuta e os sujeitos não são passivos, estão em uma relação ativa e só na condição de uma relação ativa que o grupo pode chegar aos seus objetivos.

Entretanto, como acontece o processo de desenvolvimento do grupo terapêutico? As pessoas que chegam a psicoterapia grupal muitas vezes vem por diferentes motivos: ansiedade, desenvolver habilidades sociais, melhorar algum aspecto emocional que está incomodando, entre outros. De início, o motivo da atividade de cada pessoa do grupo é seu próprio restabelecimento psíquico, não tendo um motivo e atividade significativa conjunta se caracterizando como um grupo difuso. No decorrer do processo, os membros começam a ver o grupo como um conjunto e enxergar uns aos outros como importantes no caminho psicoterapêutico, ou seja, ocorre o processo de tomada de consciência da relevância do grupo. Nessa etapa, o grupo já não é mais difuso, pois as relações são mediadas pelas tarefas de uma atividade comum. Somente quando os motivos do terapeuta e dos integrantes combinam-se, orientando a atividade do grupo para resolução das questões de cada um e assim transformando as relações interperssoais, o grupo emerge enquanto coletividade psicoterapêutica. À medida que o sujeito alcança seus objetivos a partir de uma atividade motivada, conjunta e organizada, o grupo transforma-se em coletividade. (Petrovski, 1984).

Ao longo desse percurso terapêutico contradições podem emergir uma vez que a personalidade dos sujeitos se choca com os diversos papéis sociais que perpassam o grupo em sua materialidade. O processo grupal se movimenta em espiral na qual as contradições surgem e podem levar o grupo a transformações qualitativas. Além disso, É necessário pontuar que a cristalização de papéis pode tornar o grupo circular, caracterizando-se pela alienação em relação às diversas relações que permeiam o grupo, que por sua vez faz parte da sociedade e só pode ser pensado dentro dela, levando em consideração as diversas contradições do social (Lane, 1984). Isto posto, o terapeuta deve ter cautela para não adotar uma postura de estar sempre se esquivando de conflitos, podendo assim enrijecer o grupo.

No grupo, a atividade mediadora do psicoterapeuta perpassa o uso de signos e instrumentos. Destarte, “as trocas simbólicas entre os integrantes apresentam a possibilidade de ensejar a constituição e a ampliação das atividades de significação e sentidos acerca dos objetos e conteúdos discutidos” (Fernandes, 2015, p. 94). Os signos produzem significações, tendo seu sentido sempre transformado pela interpretação, que é uma produção social implicada pelo processo de internalização na qual o signo é o mediador (Pino, 2005). Diversos são as atividades mediadoras que o terapeuta pode usar no contexto grupal para alavancar mediações promotoras de processos de desenvolvimento e ressignificação.

Com o objetivo de melhor sistematizar os apontamentos teóricos práticos citados foi feito a seguinte tabela:

OFICINA DE ARTE-PERSONALIDADE

Objetivo da intervenção: compreender a dinâmica da personalidade dos sujeitos, seus motivos e necessidades e fortalecer o vínculo grupal.

Material: argila (pode ser usado outros recursos artísticos).

O terapeuta propõe uma atividade com argila, onde os participantes representarão “quem eles são” em uma escultura. Após a conclusão das esculturas, cada participante é convidado a compartilhar o motivo por trás de sua representação, explicando o que ela reflete sobre si mesmo. Em seguida, cada pessoa deve se aproximar da escultura de outro membro do grupo e refletir sobre o que a representação dessa pessoa revela sobre sua própria personalidade. Esta atividade se desenrola até que todos tenham compartilhado e discutido suas próprias esculturas e as interpretações uns dos outros.

Quando essa atividade foi realizada percebeu-se que no início, os participantes estavam mais focados em seus próprios processos individuais, expressando suas personalidades através das esculturas de argila. À medida que a atividade avança, eles começam a considerar a representação de cada um como um espelho para suas próprias personalidades, ganhando consciência das complexidades múltiplas que cada indivíduo carrega. A interação entre os membros aumenta, à medida que eles exploram e debatem as interpretações das representações, revelando novas percepções sobre si mesmos e seus colegas. Ao final da atividade, os participantes expressam maior compreensão e interesse nas histórias e experiências uns dos outros, criando um vínculo grupal mais coeso e significativo.

PARA CONTINUAR O DIÁLOGO

Com a realização deste trabalho deve-se ressaltar as contribuições, servindo de base ao que foi elaborado, de importantes pensadores para se pensar a prática grupal, dentre eles: Petrovski, com sua Teoria Estratometrica, na qual tinha a missão de contribuir para construção de uma psicologia social soviética; Silvia Lane, com seus escritos sobre processo grupal e perspetiva crítica perante a realidade brasileira; Vigotski, com a teoria Histórico-Cultural na qual na época tinha o objetivo de construir uma psicologia geral a partir do marxismo; Leontiev, com a teoria da atividade, trazendo a importância da análise da atividade para a compreensão dos sujeitos; Achilles Delari, que tem feito um fundamental trabalho de sistematização e construção sobre a prática psicoterapêutica partindo do marxismo. Mediante a isso, os levantamentos feitos nesse artigo devem ser avaliados criticamente a partir da prática social voltada para a emancipação dos sujeitos.

Destaca-se a proposta de uma oficina de Arte-Personalidade é apresentada como uma prática terapêutica que busca desvendar as complexidades da personalidade por meio da expressão artística e do diálogo grupal. A importância da práxis marxista na psicoterapia de grupo é ressaltada, destacando princípios éticos de superação, cooperação e emancipação. O estudo busca contribuir para a construção de uma abordagem psicoterapêutica coerente com o materialismo histórico-dialético.

Assim, este estudo responde a ausência de escritos sobre Psicoterapia Breve Marxistas.

REFERÊNCIAS

DELARI JR., A. Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psicologia geral à aplicada. Mimeo. Umuarama, 2009. (2ª versão).

ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

Fernandes, Luciete Valota. O processo grupal como resistência ao sofrimento e ao adoecimento docente: um estudo à luz da perspectiva histórico-dialética. Tese (Doutorado — Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) — Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. 2015.

LANE, S. T. M. (1984). O processo grupal. In S. T. M. Lane & W. Codo (Eds.), Psicologia Social: O homem em movimento (pp. 78–98). São Paulo, SP: Brasiliense.

LEONTIEV, Aleksei Nikoláievitch, 1979 Atividade Consciência. Personalidade / Aleksei N. Leontiev; tradução de Priscila Marques. — — Bauru, SP: Mireveja, 2021.

Petrovski, A. V. Personalidad, Actividad y Colectividad. Buenos Aires: Editorial Cartago. 1984.

Petrovski, A. V. Personalidad, Actividad y Colectividad. Buenos Aires: Editorial Cartago. 1984.

PINO, A. As marcas do humano: Às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo, SP: Cortez, 2005.

RUBINSTEIN, S. L. (1934). Problemas de psicologia nas obras de Karl Marx. 1934. Traduzido por Bruno Bianchi. Disponível em <https://medium.com/katharsis/rubinstein-marx-psicologia-16927974c17d>.

SILVA, IZABELLA BRITO; NAKANO, TATIANA DE CÁSSIA. Modelo dos cinco grandes fatores da personalidade: análise de pesquisas. Aval. psicol., Porto Alegre, v. 10, n. 1, p. 51–62, abr. 2011. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-04712011000100006&lng=pt&nrm=iso>.

SISTO, F. F. Escala de traços de personalidade para crianças (ETPC). Manual técnico. São Paulo: Vetor Editora. 2004.

SODRÉ, N. W. Fundamentos do materialismo dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1969.

VIGOTSKI, LEV SEMYONOVICH. A formação social da mente: o desenvolvimento social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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Bruno Bianchi

Pai. Psicólogo e especialista em gestão pública. Tradutor e militante do PCB