E. Manet — Velejando (1874)

H. C. Donadi — Psicoterapia breve marxista: por uma clínica da consciência

Subtema: métodos e procedimentos de intervenção

Bruno Bianchi
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11 min readJan 16, 2024

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RESUMO

Este artigo propõe uma abordagem em Psicoterapia Breve, incorporando os fundamentos do materialismo histórico dialético. O objetivo central consiste em formular um caminho terapêutico, ancorado nas contribuições de Vigotski e outros pensadores marxistas, visando transcender as limitações das abordagens tradicionais. A metodologia adotada envolve uma pesquisa bibliográfica qualitativa, explorando obras clássicas e contemporâneas para embasar teoricamente a proposta. Os resultados revelam uma abordagem promissora, enraizada em bases sólidas e capaz de oferecer uma compreensão mais abrangente dos processos de sofrimento psíquico. Este estudo contribui significativamente para o campo da Psicoterapia Breve, introduzindo uma perspectiva marxista que não apenas propõe uma intervenção mas também enriquece a compreensão das determinações sociais no contexto terapêutico.

INTRODUÇÃO

A psicoterapia breve surge com o objetivo de atender pessoas no menor período temporal possível. Prática iniciada por discípulos de Freud, com o objetivo de atender mais pacientes, nesse intuito elaboram uma “técnica ativa” realizando intervenções diretas por parte do analista (Holanda; Sampaio, 2012). Desde seu surgimento, nota-se várias perspectivas formulando como deve se prosseguir nessa modalidade de psicoterapia, mas entre as diversas concepções tradicionais existe um denominador em comum:

Reexpor o paciente, em circunstâncias mais favoráveis, a situações emocionais que ele não conseguia suportar no passado. Para que o paciente possa ser ajudado, ele deve ser submetido a uma experiência emocional corretiva adequada para reparar a influência traumática de experiências anteriores (Holanda; Sampaio, 2012 p. 3).

Nota-se o caráter adaptativo dessas concepções hegemônicas, reflexo de seus posicionamentos epistemológicos que consideram o sujeito como um ser passivo, um recipiente vazio sendo preenchido por algum conteúdo ou um ser que constrói seu mundo interno por conta própria percebendo o ambiente e criando ele a partir da consciência, caindo em um subjetivismo. Em contrapartida, ao materialismo vulgar e ao idealismo, o materialismo histórico dialético se apresenta como um método potente para se pensar o ser humano.

Para o marxismo, a consciência é produto da matéria altamente organizada e estado interno da mesma, pressupondo a existência do cérebro e de objetos materiais que influem nele, sendo assim, o reflexo subjetivo da realidade objetiva. O mundo exterior é refletido na consciência em imagens ideais, tornando a realidade cognoscível para o ser humano. Nesse processo, a apreensão do mundo pelo sujeito é ativa, pois na atividade, o homem percebe e se apropria da realidade, não somente o real imediatamente percebido mas também a riqueza cultural do gênero humano (Sodré, 1969).

Nesta perspectiva, a consciência é mediada por conexões objetivas dadas na atividade do sujeito. Desta maneira, o ser humano age no mundo de forma mediada por objetivos conscientes ao qual subordina sua vontade (Rubinstein, 1934). Tal concepção, traz novas perspectivas para compreensão dos processos de sofrimento psíquico compreendendo as alterações da personalidade e das diversas funções psicológicas superiores engendradas pela atividade do sujeito (Zeigarnik, 1979). Lançando um olhar especial para a determinação social do sofrimento psíquico.

Dentro do amplo campo de pensadores marxistas, encontra-se Vigotski, psicólogo sovietico que tinha o objetivo de construir uma psicologia geral, suprassumindo as teorias que já existiam, a partir dos fundamentos do materialismo histórico dialético (Valsiner; Van der Veer, 1996). Apesar dele nunca ter trabalhado com psicoterapia, a sua teoria vem sendo sistematizada para a prática clínica por muitos psicólogos brasileiros, dentre eles destaca-se Achilles Delari (2015) que em um de seus textos “Notas para a prática social psicoterapêutica mediante contribuições de Vigotski” levanta princípios teórico-práticos importantes para a práxis do psicólogo fundamentada na teoria histórico cultural. Vale ressaltar, que existem diversos outros psicólogos soviéticos que contribuem para pensar a psicoterapia pautada no materialismo histórico dialético.

O marxismo se mostra uma ciência potente para a atuação do psicoterapeuta, respondendo às lacunas deixadas pelo materialismo vulgar e o idealismo, compreendendo o sujeito e seu adoecimento em suas múltiplas determinações. Dessa forma, o presente estudo tem o objetivo de formular sobre a prática do psicólogo em psicoterapia breve partindo do materialismo histórico dialético e das elaborações já existentes de diversos psicólogos que se pautam nessa perspectiva.

METODOLOGIA

Este estudo adotou uma abordagem metodológica centrada em pesquisa bibliográfica qualitativa, com o objetivo de formular uma proposta consistente sobre o tema da Psicoterapia Breve Marxista. A escolha por uma abordagem qualitativa fundamentou-se na necessidade de explorar de maneira aprofundada as bases teóricas do materialismo histórico dialético, especialmente as contribuições de Vigotski e outros pensadores marxistas no contexto da psicoterapia breve.

A fase inicial da pesquisa envolveu um levantamento bibliográfico, abrangendo obras clássicas e contemporâneas pertinentes à Psicoterapia Breve, ao materialismo histórico dialético. A análise dessas fontes permitiu estabelecer uma base teórica sólida. A formulação do caminho terapêutico proposto foi uma etapa crucial, embasada na síntese das teorias estudadas.

Dessa forma, a metodologia adotada visa oferecer uma contribuição para o entendimento e a aplicação prática da Psicoterapia Breve Marxista. Estabelecendo uma base para uma abordagem terapêutica socialmente contextualizada.

CAMINHO TERAPÊUTICO

A psicoterapia breve tem objetivos delimitados, foco e uma postura ativa do terapeuta, dessa maneira o encurtamento de seu tempo, sua brevidade, é uma consequência da prática focalizada e ativa (Holanda; Sampaio, 2012). No intuito da psicoterapia breve pautada no marxismo cumprir os critérios, que a tornam ela uma psicoterapia breve, e de melhor sistematizar as proposições feitas, o presente trabalho propõe um caminho terapêutico de acolhimento e mapeando das significações e atividade; mediação para tomada de consciência e mudança. Vale ressaltar, que esse caminho é um processo e não deve ser entendido como uma cronologia da psicoterapia. Trata-se de uma sugestão de como deve ser estruturada a psicoterapia breve de orientação marxista, no entanto, modificações podem ser necessárias, tendo em vista que o objetivo é determinado de acordo com as necessidades e principais motivações da pessoa.

No início do processo de psicoterapia breve, deve-se atentar para não compreender a queixa que o paciente traz de uma forma descritiva, deixando de investigar seu processo. Alguns princípios teóricos-metodológicos elaborados por Vigotski são importantes para pensar a prática do terapeuta, como: não só descrever o objeto e sim explicar, não se limitar a compreender os fenômenos psicológico como a-históricos e sim entender eles em movimento, como um processo (Vigotski, 2007). Tais pressupostos são fundamentais para a práxis do psicólogo, em seu trabalho interventivo e investigativo. Trata-se de trabalhar com o método genético-causal de Vigotski:

O termo “causal” indica que se pretende estudar o objeto da ciência de modo “determinista” — isto é, perguntando quais causas o fazem vir a ser como é ou a deixar de ser como é. E não de modo “teleológico” — isto é, perguntando quais finalidades há para algo existir ou deixar de existir. O termo “genético” indica que a causalidade não é mecânica, e sim “histórica”. (Delari, 2021, p. 2)

Assim, na etapa inicial a escuta ativa e a construção de vínculo é fundamental para o desenrolar do processo. E para que isso seja feito de uma forma efetiva se faz necessário que o terapeuta conheça as atividades do sujeito e seus processos de significação. A linguagem é primordial nesse processo uma vez que o significado da palavra é o microcosmo da consciência humana (Vigotski, 2009). Através dessa unidade de análise o psicoterapeuta vai ter acesso ao universo da pessoa atendida.

Outro aspecto importante é a análise da atividade, sendo ela o principal método científico para acessar o reflexo psíquico. Para isso, o entendimento da estrutura da atividade pelo terapeuta é crucial. Toda atividade tem uma necessidade que é saciada por um determinado objeto material ou ideal, mas para que essa atividade se concretize é necessário motivos que vão impulsionar o sujeito para determinada atividade. A atividade é composta por diversas ações subordinadas a objetivos e várias operações que são os modos de concretização da ação. Vale ressaltar, que ela é poli — motivada, os motivos se organizam de forma hierárquica uns se subordinam aos outros (Leontiev, 1979). O entendimento das necessidades, motivos, objetos, ações, operações da atividade do sujeito contribui para apreender a gênese social do processo de adoecimento do indivíduo.

Dessa maneira, um recurso que condiz com os princípios do método genético-causal e portanto pode ser útil para compreender a queixa do sujeito em seu processo histórico de desenvolvimento, é a linha do tempo, que consiste em pedir para a pessoa escrever ou desenhar cronologicamente os acontecimentos mais relevantes da sua vida (Silva, 2023). Durante a utilização desse recursos na psicoterapia breve o terapeuta pode junto a pessoa atendida estabelecer e evidenciar qual será o foco do processo terapêutico. Nesse processo, motivos não conscientes podem vir à tona para o sujeito, a medida que ele reconstitui na linha do tempo eventos significativos para sua personalidade.

Na psicoterapia, o sujeito toma consciência de motivos não conscientes de sua atividade. A pessoa vai passando a conhecer a hierarquia dos motivos que orientam sua atividade e consequentemente poderá elaborar ações que potencialize mudanças na estrutura da sua atividade (Aita, 2020). Ao passo que o indivíduo toma consciência dos motivos de sua atividade se abre a possibilidade de mudar a influência do motivo sobre sua própria conduta (Leontiev, 1979).

No percurso terapêutico também nota-se a relação inconsciente — consciente e a mediação que o terapeuta realiza para a tomada de consciência do sujeito. Vigotski compreende o inconsciente como uma zona de sentido desprovida de significado (Santos; Sawaia, 2022), ou seja, a ideia que não encontra a palavra, causando angústia (Vygotsky, 2009). Quando o inconsciente encontra os significados que consiga representá-lo converte-se em consciente, tornando os nexos perceptíveis e as conexões expressas nos significados corretos (Santos; Sawaia, 2022).

Existe uma variedade de recursos mediadores para promover a tomada de consciência que podem ser utilizados, uma vez que a clínica é também um espaço de criação, cada caso demanda uma atividade criadora do terapeuta. Dentre os recursos, a escrita terapêutica se apresenta como uma proposta valiosa a ser usada na psicoterapia. Já que a fala escrita está em relação de proximidade da fala interna e a fala externa está mais distante da interna que a escrita. Não é necessário falar para escrever, assim a escrita transita sem muitos elos intermediários da fala interna para sua exteriorização. Na fala interna existe um predomínio do sentido sobre o significado (Delari, 2013). Sendo, a escrita mais próxima da fala interna que a externa, ela pode ser um recurso importante para acessar os sentidos da pessoa e também para contribuir na tomada de consciência. No contexto terapêutico, pode ser usada de diversas maneiras. Pedir ao paciente escrever o que está sentido, o que pensa sobre determinado assunto ou solicitar para que toda vez que o paciente sinta um sentimento ruim escrever. A escrita deve ser usada também de forma criativa, são várias as possibilidades. Além disso, na escrita terapêutica é importante que o Psicoterapeuta oriente a pessoa atendida para que ela escreva como se estivesse falando consigo mesmo, uma escrita livre, com o intuito de melhor acessar os sentidos daquele indivíduo.

Um conjunto de técnicas potentes na psicoterapia breve, que auxilia o sujeito ampliar sua consciência sobre si mesmo utilizando a linguagem como um instrumento de mediação, são as técnicas de mediação da palavra:

Nomeação, que consiste em descrever e nomear o acontecer referido, repetição, que tem o objetivo de produzir maior verbalização, ou mesmo para o sujeito perceber sua fala através do outro, marcação, que tem o intuito de não deixar no vazio a palavra do outro, ou seja, apoia o diálogo, mas sem interromper o fala do sujeito, generalização, que procura reduzir a ansiedade, demonstrando semelhança de determinada ação em outros humanos, eco-emocional, que auxilia o sujeito a dar nomes a emoções e a sentimentos quando este demonstrar dificuldade em fazê-lo, re-expressão, que descreve eventos apresentados pelo sujeito, mas de uma forma racional e objetiva, e pôr-verbo, quando se descreve um comportamento quando não houve linguagem verbal (mais usado com crianças). ( Lima, Carvalho, 2013, p. 160)

Depois do processo de acolhimento, escolha do foco, objetivos e ampliação da consciência do paciente, vem a etapa de construção de estratégias para mudanças. Nessa etapa é fundamental pensar junto com a pessoa atendida estratégias de mudanças de acordo com suas possibilidades e condições materiais, para realização dos objetivos que foram delimitados nas etapas anteriores. No encerramento, pode ser resgatado tudo que foi trabalhado nas sessões anteriores, quais os objetivos foram alcançados, o que o sujeito tomou consciência e pensando estratégias para ação diante de futuras situações que causem sofrimento psíquico, sempre visando a construção de autonomia do indivíduo.

CONCLUSÃO

Em suma, esta pesquisa representa uma proposta teórico-prática no âmbito da Psicoterapia Breve, conferindo uma abordagem única e substancialmente enraizada no materialismo histórico dialético. Ao confrontar as perspectivas tradicionais com a visão marxista, define-se uma compreensão mais dinâmica da consciência humana, moldada pela atividade social e intrinsecamente interligada ao contexto histórico. O caminho terapêutico delineado, compreendendo fases de acolhimento, mediação para tomada de consciência e implementação de mudanças, não apenas reflete uma prática focalizada e ativa, mas também destaca a relevância de uma intervenção terapêutica enraizada em bases teóricas sólidas.

Ao incorporar elementos teóricos de Vigotski e outros destacados pensadores marxistas, este estudo fornece um arcabouço para a atuação do psicoterapeuta. Não se limitando à resolução de sintomas isolados, a abordagem proposta visa o desenvolvimento da autoconsciência do sujeito. O presente trabalho não apenas enriquece o campo da psicoterapia breve, mas também representa uma contribuição para a compreensão das determinações sociais intrínsecas ao processo de sofrimento psíquico.

Este estudo responde a ausência de escritos sobre Psicoterapia Breve e Materialismo Histórico Dialético, com o intuito de levantar um diálogo inicial sobre o assunto, que só pode ser feito por meio da coletividade. Assim, o caminho terapêutico formulado e proposto nesse estudo deve ser avaliado criticamente a partir da prática social fundamentada no marxismo.

REFERÊNCIAS

Aita, E. B. (2020). Psicoterapia enquanto possibilidade de intervenção sobre o processo de formação de consciência: uma análise histórico-cultural. Tese de doutorado, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR.

Delari Jr., A. (2021). Método(s) em Vigotski: esboço de um quadro geral. Umuarama-PR: “Estação MIR” arquivos digitais.

Delari Jr., A. (2015). Notas para a prática social psicoterapêutica mediante contribuições de Vigotski. “Estação Mir” Arquivos Digitais.

Delari Jr., A. (2013). O problema da análise semântica em L. S. Vigotski buscando pistas para compreendê-la [Material didático e de apoio à investigação metodológica]. Umuarama-PR: “Estação MIR” arquivos digitais.

Holanda, T. C. M., & Sampaio, P. P. (2012). Psicoterapia breve-focal: uma técnica em ascensão. In T. C. M. Holanda & P. P. Sampaio (Eds.), Temas em Psicologia II: Psicoterapia breve-focal, Teoria, técnica e casos clínicos (Cap. 2). Fortaleza: Unifor.

Leontiev, A. N. (1979). Atividade Consciência. Personalidade. Bauru, SP: Mireveja, 2021.

Lima, P. M. de, & Carvalho, C. F. de C. de. (2013). A Psicoterapia Socio-Histórica. Psicologia: Ciência e Profissão, 33(spe), 154–163. Disponível em <link>.

Rubinstein, S. L. (1934). Problemas de psicologia nas obras de Karl Marx. 1934. Traduzido por Bruno Bianchi. Disponível em <https://medium.com/katharsis/rubinstein-marx-psicologia-16927974c17d>.

Santos, L. G. dos, & Sawaia, B. B. (2022). Inconsciente desde a psicologia de Vigotski. In M. I. Costa Moreira & S. M. Gomes Souza (Orgs.), Psicologia Sócio histórica: bases epistemológicas, categorias fundamentais e intervenções psicossociais. Goiânia, Goiás: Editoras da PUC Goiás, p. 157–186.

Silva, C. V. M. (2023). Psicoterapia breve infantil com enfoque histórico-cultural: experiência de estágio em serviço escola de psicologia. Revista Humanidades e Inovação, 10(02), Palmas, TO.

Sodré, N. W. (1969). Fundamentos do materialismo dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Vigotski, L. S. (2009). A construção do pensamento e da linguagem. 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes.

Vigotski, L. S. (2007). A formação social da mente: o desenvolvimento social da mente. São Paulo: Martins Fontes.

Vygotsky, L. S. (2009). Imaginação e criação na infância. São Paulo: Ática.

Valsiner, J., & Van der Veer, R. (1996). Vygotsky: Uma Síntese. S.P.: Ed. Loyola.

Zeigarnik, B. V. (1979). Introducción a la Patopsicologia. La Habana: Científico Técnica. (Obra original publicada em 1969).

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Bruno Bianchi

Pai. Psicólogo e especialista em gestão pública. Tradutor e militante do PCB