J. L. Medeiros - Tecendo Abordagens Éticas em perícias de violência sexual infantojuvenil: Uma perspectiva Histórico-Cultural

Primaveravigotskiana
Psicologia MHD
Published in
28 min readJul 4, 2024
Os Trapaceiros — Caravaggio

RESUMO

Este ensaio aborda a fundamentação teórica e metodológica na psicologia histórico-cultural na realização perícias psicológicas de casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, especialmente no contexto brasileiro. A abordagem em questão incorpora aspectos éticos, sociais, econômicos e culturais na avaliação psicológica, sendo essencial para lidar com situações complexas. O texto propõe uma visão dialética do método em perícias psicológicas, delineando sua fundamentação teórica, implicações práticas e relevância para a compreensão e intervenção nessas situações delicadas. São apresentados conceitos da psicologia histórico-cultural e discutidos métodos para realizar avaliações psicológicas éticas e detalhadas, destacando como essa abordagem oferece um ponto de vista sistêmico e dinâmico para enfrentar os desafios da violência sexual infantojuvenil.

Palavras-chave: Violência sexual infantojuvenil, Psicologia histórico-cultural, Perícias psicológicas

ABSTRACT

This essay addresses the theoretical and methodological grounding in historical-cultural psychology in conducting psychological assessments of cases of sexual violence against children and adolescents, especially in the Brazilian context. The approach in question incorporates ethical, social, economic, and cultural aspects in psychological evaluation, being essential for dealing with complex situations. The text proposes a dialectical view of the method in psychological assessments, outlining its theoretical foundation, practical implications, and relevance for understanding and intervening in these delicate situations. Concepts from historical-cultural psychology are presented and methods for conducting ethical and detailed psychological assessments are discussed, highlighting how this approach offers a systemic and dynamic perspective to tackle the challenges of child and adolescent sexual violence.

Keywords: Child and adolescent sexual violence, Historical-cultural psychology, Psychological assessments

1. INTRODUÇÃO

No contexto da psicologia social jurídica, o debate sobre a avaliação de casos envolvendo suspeitas de violência sexual contra crianças e adolescentes é crucial, demandando abordagens abrangentes e críticas para abarcar não apenas as complexidades dessas situações, como também a complexidade do próprio sistema de justiça como instância decisória acerca das vidas das pessoas. Este ensaio visa explorar a relevância do estabelecimento de fundamentação teórica e consequentemente de métodos em perícias psicológicas sob uma perspectiva histórico-cultural, ressaltando sua pertinência e contribuições para a prática psicológica, especialmente no cenário brasileiro.

A psicologia histórico-cultural busca integrar aspectos éticos, sociais, econômicos e culturais na avaliação psicológica, o que é essencial para os casos complexos. Para compreender melhor essa perspectiva, é necessário resgatar conceitos advindos do materialismo histórico-dialético e da psicologia histórico-cultural, os quais serão brevemente explicados ao longo deste ensaio.

O objetivo desta análise é oferecer uma visão dialética do método em perícias psicológicas com base na psicologia histórico-cultural, delineando sua fundamentação teórica, implicações práticas e relevância para a compreensão e intervenção em casos de violência sexual infantojuvenil. Este ensaio propõe explorar tal referencial ainda pouco discutido na literatura relacionada à Psicologia Jurídica, ressaltando a importância de uma atuação contextualizada e ética na avaliação dessas situações delicadas.

Ao longo deste ensaio, serão apresentados conceitos da psicologia histórico-cultural, enfatizando sua centralidade na interação entre a pessoa e o contexto sociocultural. Além disso, serão discutidos meios para a realização de avaliações psicológicas periciais éticas, cuidadosas e detalhadas

em casos de violência sexual infantojuvenil, demonstrando como a psicologia histórico-cultural oferece um ponto de vista sistêmico e dinâmico para enfrentar esses desafios.

2. CONTEXTUALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTOJUVENIL

A violência sexual contra crianças e adolescentes é um fenômeno endêmico na sociedade brasileira, exigindo políticas públicas para enfrentá-la e garantir proteção integral (MARANHÃO; XAVIER, 2014). A assimetria de poder entre adultos e jovens, agravada nessas situações, é considerada parte das relações de poder desiguais presentes na sociedade capitalista (GUARESCHI, 2007). Esta disparidade amplifica a vulnerabilidade das vítimas, frequentemente dependentes de figuras de autoridade e sujeitas ao controle exercido sobre suas vidas tanto por estruturas familiares e institucionais (MARANHÃO; XAVIER, 2014). A transformação dessas estruturas opressivas requer análise crítica e ação coletiva para promover relações mais igualitárias e respeitosas entre os gêneros e faixas etárias.

Dados estatísticos revelam a magnitude dos problemas sociais relacionados à violência sexual infantojuvenil, destacando que a maioria dos casos ocorre dentro do círculo familiar ou próximo a ele. No Brasil, mais de 70% das crianças com até 9 anos de idade sofrem violência sexual em suas residências, sendo que quase 65% das agressões a pessoas nessa faixa etária são perpetradas por familiares, amigos ou conhecidos. Entre crianças a partir de 10 anos e adolescentes, cerca de 65% dos episódios ocorrem no ambiente doméstico e aproximadamente 68% são cometidos por indivíduos próximos, como familiares, amigos, conhecidos ou até mesmo o parceiro íntimo da vítima (BRASIL, 2024).

A subnotificação é um desafio significativo, pois muitos casos de violência sexual infantojuvenil permanecem desconhecidos, possivelmente devido ao medo, à vergonha ou à falta de confiança no sistema de justiça. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (FERREIRA et al., 2023) estima que menos de 10% das situações de violência sexual são efetivamente notificadas ou comunicadas às autoridades, evidenciando a magnitude do problema e a urgência de estratégias eficazes para enfrentá-lo. A compreensão desses números ressalta a necessidade de atuação interdisciplinar e integração de diferentes setores da sociedade na luta contra a violência sexual infantojuvenil.

Quanto aos impactos individuais, Rovinski e Pelisoli (2019) afirmam que não há uma sintomatologia específica para pessoas que passaram por violência sexual, podendo variar entre os indivíduos. Características das experiências abusivas, como início precoce, maior duração, maior invasão e proximidade emocional do agressor, tendem a intensificar os impactos emocionais, que incluem confusão nos papéis sociais, impacto na autoestima, tentativas de fuga do ambiente familiar, isolamento e estresse (HABIGZANG; KOLLER, S., 2011; HOHENDORFF; HABIGZANG; KOLLER, S. H., 2014; CORTINHAS, 2019). Mulheres que foram vítimas de violência sexual na infância geralmente relatam mais dificuldades na vida sexual, assim como comportamentos de risco potencialmente prejudiciais, como envolvimento precoce em atividades sexuais consentidas, maior número de parceiros e uso inconsistente de preservativos (ROVINSKI; PELISOLI, 2019).

Na contemporaneidade, a violência emerge como uma das mais sérias questões de saúde pública, transcende fronteiras e se manifesta em diferentes contextos, afetando nações independentemente de seus níveis de desenvolvimento. A violência contra crianças e adolescentes assume contornos preocupantes, com potencial de impactar significativamente seu desenvolvimento. Estas violências, enraizadas em desigualdades históricas e culturais como as existentes no Brasil, refletem-se em diversos aspectos sociais, desde a saúde até a política, da segurança à cultura. Nesse cenário, a violência sexual se destaca como uma das formas mais graves de violação de direitos humanos, disseminando-se em silêncio e frequentemente encoberta por pactos de invisibilidade. A institucionalização dessas práticas violentas, presentes em diferentes esferas sociais e institucionais, perpetua uma dinâmica de desigualdade e dominação, comprometendo o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes. Urge, portanto, enfrentar essa realidade com uma perspectiva crítica e multidimensional, reconhecendo-a como uma questão estrutural e sistêmica que exige respostas integradas e transformadoras (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA; CONSELHOS REGIONAIS DE PSICOLOGIA; CENTRO DE REFERÊNCIAS TÉCNICAS EM PSICOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS, 2020).

A conscientização sobre essas violações é essencial para promover mudanças significativas nas relações sociais, culturais e políticas, garantindo a todas as pessoas, especialmente às crianças e aos adolescentes, o pleno exercício de seus direitos e a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Nesse sentido, as políticas públicas de saúde, segurança, educação, assistência social, moradia, emprego e renda desempenham um papel crucial na prevenção e no enfrentamento da violência sexual. A integração dessas diferentes áreas, aliada a uma abordagem interdisciplinar, é essencial para garantir uma resposta abrangente e eficaz a esse grave problema social. Somente por meio de esforços coordenados e comprometidos será possível construir uma sociedade mais justa e segura, onde todas as crianças e adolescentes possam crescer e se desenvolver livres de violência e abuso.

3. PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E MATERIALISMO HISTÓRICO-DIALÉTICO COMO REFERENCIAIS

A análise marxista, ao enfocar as estruturas sociais e as relações de poder subjacentes, proporciona uma compreensão sistêmica e crítica das dinâmicas sociais, incluindo a violência sexual infantojuvenil. O materialismo histórico-dialético instiga a questionar as estruturas de poder e ideologias que permeiam as relações sociais, visando a apreensão mais ampla das dinâmicas psicossociais envolvidas nos casos avaliados a partir de uma prática voltada à libertação (FRIGOTTO, 2020).

De acordo com o método marxista, é essencial reconhecer o objeto em investigação e esforçar-se na apreensão do estágio do conhecimento desse objeto. Isso implica na revisão da produção de pesquisas e na crítica aos pressupostos implícitos à lógica do fenômeno investigado. Nas pesquisas, isso se traduz pela organização da produção com atenção aos nexos causais internos e externos do fenômeno, além do estabelecimento da relação histórica dialética desses nexos. O rigor no tratamento das fontes e na conexão com o estágio da produção material é essencial (PEREIRA, 2020).

A psicologia histórico-cultural, fundamentada principalmente pelo trabalho de Lev Vigotski e seus colaboradores na União Soviética no início do século XX, emerge do materialismo histórico-dialético (ZANELLA, 2020). Essa abordagem parte de uma visão sistêmica do desenvolvimento humano, reconhecendo a complexidade das funções psicológicas superiores e rejeitando associações simplistas entre funções psíquicas e processos biológicos (MARTINS, L. M., 2015). Nesse sentido, a mediação simbólica representa as complexas relações entre pessoas e objetos historicamente situados, permeadas por ações coletivas e cooperativas que abrangem aspectos cognitivos, volitivos e afetivos (SANTOS et al., 2021). Dessa forma, no contexto da violência sexual, a mediação simbólica é crucial para entender como as experiências potencialmente traumáticas são internalizadas e significadas por crianças e adolescentes, como elementos essenciais do o desenvolvimento psicológico e social (MARTINS, K. O.; LACERDA JR, 2014).

A zona de desenvolvimento próximo (ZDP), um conceito fundamental de Vigotski, leva a se pensar acerca da importância do apoio de profissionais qualificados a pessoas envolvidas a fim de lidarem com a própria experiência e desenvolverem mecanismos de resistência diante das adversidades enfrentadas (FACCI, Marilda Gonçalves Dias et al., 2007).

O desenvolvimento da sexualidade humana está estreitamente relacionado ao amadurecimento das funções psicológicas superiores. Influenciada por valores e normas sociais, a sexualidade transcende o mero ato sexual, abarcando também prazeres, desejos, padrões comportamentais e relações interpessoais. Considerada uma construção social na perspectiva histórico-cultural, a sexualidade se desenvolve ao longo da vida, moldando e sendo moldada pelas percepções individuais, valores, normas, papéis sexuais e experiências sociais (MAIA, A. C. B. et al., 2012). Além disso, as funções psicológicas superiores exercem influência sobre a maneira como as pessoas lidam com questões relacionadas à sexualidade, tais como o estabelecimento de relacionamentos íntimos, a expressão de afetos e a tomada de decisões sobre saúde sexual. Assim, a formação da sexualidade é permeada por aspectos biológicos, psicológicos, culturais e éticos no curso do desenvolvimento humano, sendo constituída a partir de influências familiares, interações sociais e contextos educacionais (MEIRA; SANTANA, 2014).

A violência, por sua vez, é um fenômeno intrinsecamente ligado à mediação simbólica, no qual as representações desempenham um papel crucial na configuração das práticas sociais. É relevante estudar a violência como um sistema simbólico complexo, envolvendo interações entre atores, representações, práticas sociais e o meio. As manifestações da violência variam de acordo com o ambiente e são influenciadas por valores complexos e diversificados (CAMPOS; TORRES; GUIMARÃES, 2016).

A ética, segundo Vigotski, pode ser compreendida como “humanista” no sentido amplo. Essa abordagem valoriza a realização das potencialidades humanas. No entanto, para Vigotski, essa realização ocorre principalmente na ação coletiva e na interação com o outro. Seu foco ético não reside apenas na busca da satisfação pessoal, mas na valorização da humanidade como um todo. Contrariando o humanismo ingênuo e o liberalismo, Vigotski propõe critérios próprios, como superação, cooperação e emancipação. A noção de superação envolve ir além dos limites atuais, enquanto a cooperação é vista como fundamental para o avanço humano, destacando a relevância das relações sociais na construção da liberdade e autonomia. A busca pela emancipação humana, livre de coerções e limitações sociais, é um objetivo central nessa perspectiva ética, alinhando-se com os ideais marxistas de transformação social e individual. Enfatiza, portanto, a importância da interação social, da cooperação e do desenvolvimento humano para a construção de uma sociedade mais justa e emancipada (DELARI JUNIOR, 2013).

Em suma, o materialismo histórico-dialético e a psicologia histórico-cultural oferecem uma estrutura teórica robusta para compreender e abordar adequadamente a violência sexual infantojuvenil como um fenômeno com implicações psicossociais, promovendo uma prática profissional mais ética e acurada.

4. PLANEJAMENTO DE PERÍCIAS ACERCA DE VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTOJUVENIL

A realização de perícias psicológicas é uma prática bastante reconhecida e, por isso, regulamentada envolvendo diretrizes éticas e legais. Especialmente em casos de violência sexual infantojuvenil, a atuação das psicólogas é fundamental para uma abordagem sensível e abrangente. De acordo com o Decreto nº 53.464/1964, a Perícia Psicológica é reconhecida como uma das funções da psicóloga (BRASIL, 1964). Shine (2005) define a perícia psicológica como um tipo específico de avaliação psicológica destinada a fins judiciais.

A Avaliação/Perícia Psicológica requer que tanto o planejamento quanto a execução sejam conduzidos por psicólogas devidamente capacitadas, envolvendo o contexto, propósito, os constructos psicológicos a serem investigados, bem como as pessoas envolvidas (SILVA, D. M. P. Da, 2012; CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2022b). A avaliação psicológica, definida pela Resolução CFP n° 006/2019, envolve um processo científico de coleta e interpretação de dados sobre fenômenos psicológicos (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2019), enquanto a perícia psicológica, conforme a Resolução CFP n° 017/2012, se trata de uma avaliação direcionada a responder demandas específicas, originadas em circunstância pericial (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2012).

Dias e Cortinhas (2021) destacam que a Psicologia Jurídica ainda enfrenta o desafio de encontrar um embasamento teórico e metodológico adequado para lidar com a complexidade das demandas psicossociais judicializadas. É crucial que essa abordagem vá além da Lei (enquanto mero texto) e do indivíduo, considerando elementos culturais, econômicos, sociais e políticos.

Assim, é fundamental adotar abordagens éticas desde o planejamento das perícias psicológicas que se proponham a ultrapassar a intervenção puramente avaliativa e pretensamente asséptica. Isso envolve uma compreensão minuciosa das demandas específicas apresentadas, bem como uma análise crítica dos fatores contextuais que moldam essas situações. A Resolução CFP nº 006/2019 destaca a necessidade de elaborar planos de ação fundamentados, visando a modificar condicionantes que desencadeiam sofrimento psíquico e violações de direitos humanos (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2019).

Considerando a relevância da conjuntura histórico-cultural na elaboração de planos de intervenção, torna-se essencial reconhecer as limitações das abordagens tradicionais e buscar estratégias mais amplas e sensíveis. Nesse sentido, Duarte (2000) destaca a contribuição de Vigotski, influenciado pela dialética de Marx, que propõe o uso do “método inverso” na pesquisa psicológica. Esse método consiste em estudar a essência de um fenômeno por meio da análise de sua forma mais desenvolvida, utilizando abstrações para alcançar o concreto. Vigotski incorpora dois princípios da dialética marxista na construção do conhecimento científico em psicologia: abstração e análise da forma mais desenvolvida.

Dentro desse contexto, a abstração é entendida como um processo mental de simplificação da realidade, muitas vezes incapaz de refletir toda a complexidade do conteúdo real. Embora útil para um entendimento básico, a abstração pode ser insuficiente para capturar a totalidade das relações sociais subjacentes. Portanto, é imperativo avançar para uma análise mais detalhada, incorporando elementos sociais, econômicos e culturais. Essa análise mais incisiva, em contraposição às simples abstrações, possibilita uma concepção mais precisa das relações sociais e econômicas (DUARTE, 2000).

Além disso, Vigotski ressalta a importância do princípio da análise na compreensão dos fenômenos psicológicos, especialmente uma análise mais profunda. Ele destaca que, embora duas ações (ou dois fenômenos) possam parecer semelhantes externamente, podem ser distintas em sua essência e origem, demandando uma análise científica para discernir suas verdadeiras diferenças. Essa análise busca identificar o conteúdo interno, a natureza e a origem dos processos, revelando as relações subjacentes por trás de suas manifestações visíveis (DUARTE, 2000).

A análise dialética proposta pela psicologia histórico-cultural, portanto, possibilita uma compreensão dinâmica das relações entre as pessoas e o ambiente social (compreendido de modo bastante amplo) em que estão inseridas. Essa abordagem valoriza a singularidade de cada caso e viabiliza uma análise crítica das estruturas de poder e das relações de classe subjacentes.

Desta forma, o estabelecimento do método em perícias com base teórica na psicologia histórico-cultural, deve equacionar o contexto sociocultural das pessoas envolvidas. Isso implica em reconhecer as influências culturais e históricas que moldam as experiências das pessoas envolvidas e identificar como esses fatores afetam o desenvolvimento psíquico das mesmas. A Resolução CFP nº 031/2022 oferece diretrizes para a realização de avaliações psicológicas (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2022a) de forma bastante congruente com a perspectiva histórico-dialética, reconhecendo a pertinência das condições sociais, culturais e históricas na formação e desenvolvimento das pessoas.

Acrescenta-se aí a compreensão de que a perícia não se trata de um processo de leitura passiva dos fenômenos sem quaisquer impactos sobre os mesmos. Uma vez que se trata de uma intervenção que abarca contatos com as pessoas e procedimentos envolvidos no caso avaliado, inevitavelmente, mesmo que sem a intencionalidade/proposição de se realizar uma prática terapêutica, tanto a condução do processo avaliativo, como o documento dela resultante implicam em consequências diretas e indiretas para as pessoas envolvidas.

Facci e Souza (2014) nomeiam “Processo de avaliação-intervenção” por compreenderem que desde o início de uma intervenção psicológica há afetações ao contexto como também processos mediadores com as pessoas participantes. As autoras mencionam ainda que segundo Martin-Baró (2013), a Psicologia Política considera o impacto da psicologia na sociedade, sugerindo que a forma como a psicóloga avalia uma criança reflete um compromisso com uma classe social específica.

Assim, a psicologia histórico-cultural permite uma análise integradora e complexa das demandas apresentadas em casos de violência sexual infantojuvenil. O método conduz a psicóloga a levar em conta não somente os aspectos individuais, mas também o meio social, as relações de poder envolvidas na situação de violência e nas ações direcionadas à proteção e judicialização, promovendo uma tomada de decisão mais ética e informada. Nesse sentido, a dialética marxista oferece uma estrutura conceitual que reconhece a interconexão entre os elementos sociais, econômicos e culturais que influenciam esses casos, permitindo uma análise mais integral.

Propõe-se, portanto, uma mudança paradigmática fundamentada na psicologia histórico-cultural, que enfatiza a relação do ser humano com o contexto social, econômico e político. Essa abordagem busca compreender as contradições sociais e não apenas responsabilizar o indivíduo. Assim, a Psicologia Jurídica deve considerar as relações sociais, históricas e culturais, além de buscar a transformação social. O objetivo é utilizar o conhecimento psicológico para construir uma sociedade mais justa e humana, na qual o bem-estar de todos seja considerado (DIAS; CORTINHAS, 2021).

Portanto, uma abordagem ética de planejamento em perícias psicológicas exige uma concepção ampliada das implicações históricas e culturais envolvidas, bem como uma análise crítica das estruturas de poder e das relações sociais presentes nos casos avaliados e no próprio sistema de justiça. Ao adotar uma perspectiva histórico-dialética, as psicólogas podem desenvolver práticas de avaliação e intervenção em casos de violência sexual infantojuvenil que efetivamente contribuam para a promoção da justiça e para a construção de processos que visem à transformação social. A dialética marxista fornece ferramentas conceituais para entender as contradições e dinâmicas sociais subjacentes aos casos de violência sexual infantojuvenil, destacando a importância de uma análise contextualizada e crítica para abordar essas questões de forma mais completa e eficaz.

5. PROCEDIMENTOS DE INTERVENÇÃO PERICIAL EM CASOS DE VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTOJUVENIL

Nos casos de violência sexual infantojuvenil, é essencial conduzir os procedimentos de intervenção, incluindo os periciais, reconhecendo a complexidade do fenômeno e as necessidades específicas das pessoas envolvidas em cada situação. Isso implica em respeitar as crenças, valores e práticas culturais das pessoas, adotando uma abordagem baseada na leitura histórico-cultural do fenômeno para garantir intervenções relevantes e respeitosas.

As práticas de intervenção devem estar fundamentadas em princípios éticos sólidos, como o respeito à autonomia e dignidade dos envolvidos, a confidencialidade e o dever de agir em benefício do bem-estar dos mesmos, exigindo uma reflexão constante sobre o impacto das intervenções e uma abordagem colaborativa.

É essencial concentrar-se nos elementos que requerem avaliação para cada caso, concedendo à profissional a liberdade para a adequada escolha das técnicas mais apropriadas para investigar esses aspectos. A psicóloga tem a flexibilidade de empregar entrevistas, observações, dinâmicas e testes psicológicos, selecionando aqueles com os quais possui familiaridade e domínio, dentre as diversas opções cientificamente reconhecidas e apropriadas à demanda apresentada (LAGO; BANDEIRA, 2016).

Nas investigações judiciais sobre suspeitas de abuso sexual encomendadas por operadores do Direito, comumente o pedido envolve verificar a veracidade dos eventos. Embora o foco nas consequências do abuso não seja o mais associado à Psicologia Jurídica, mas sim ao contexto clínico, é essencial que essa validação respeite as restrições das metodologias em psicologia. Tais métodos devem ser abrangentes e abarcar múltiplas fontes de informação (LAGO; NASCIMENTO, 2016).

O processo de Avaliação/Perícia Psicológica segue uma série de passos fundamentais para alcançar os resultados desejados, começando pela identificação dos objetivos da avaliação e das características específicas do caso para selecionar os instrumentos e estratégias mais apropriados (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2022b). Durante a coleta de dados, o método dialético incentiva uma abordagem reflexiva e crítica, demandando uma compreensão acerca das mediações simbólicas nas interações sociais e culturais. Esse método possibilita uma compreensão mais completa das reações das crianças e adolescentes diante das suspeitas de violência sexual, identificando como se relaciona cognitiva e emocionalmente com a vivência e com os demais envolvidos na suspeita.

No processo de interpretação dos dados coletados, o método dialético orienta a consideração dos aspectos do âmbito social e das relações de poder envolvidas na situação de violência, dos impactos da suspeita e de sua judicialização às pessoas envolvidas, contribuindo para uma concepção mais abrangente dos fenômenos psicológicos em questão. Assim, as narrativas factuais devem ser consideradas dentro do contexto de desenvolvimento, emocional, social e das relações de poder envolvidas, o que não se sustenta exclusivamente pelo conteúdo literal das falas.

A abordagem da avaliação psicológica em casos de abuso sexual prioriza a compreensão dos diversos fatores que influenciam o comportamento da criança, sem buscar por escores específicos vislumbrando uma confirmação do abuso. A avaliação compreensiva envolve a interação direta com a criança (ou adolescente) e entrevistas com familiares, cuidadores e outros envolvidos. Recomendada especialmente em casos de abuso intrafamiliar ou com suspeitas de alienação parental, requer uma equipe multidisciplinar e uma análise cuidadosa das informações coletadas. Em contextos legais, enfrenta desafios, como o risco de imprecisões devido a fatores de sugestionabilidade e as complexas dinâmicas familiares surgidas durante o processo. A função da avaliação é analisar a complexidade do caso, considerando os diversos fatores envolvidos, sem determinar a ocorrência dos fatos (ROVINSKI; PELISOLI, 2019).

A entrevista é central nesse processo, permitindo investigar tanto os aspectos clínicos quanto as reais vivências das vítimas. No entanto, no contexto jurídico, onde a busca pela veracidade dos relatos é uma demanda presente, a entrevista investigativa, como uma prática mais estruturada, tem sido bastante utilizada, seguindo as normativas legais. Além da entrevista, os testes psicológicos podem desempenhar um papel importante na avaliação das pessoas envolvidas (tanto acerca de funções psíquicas superiores, quanto referentes ao funcionamento psíquico geral). A escolha pelo uso ou não de testes depende dos objetivos específicos de avaliação, sendo os instrumentos projetivos/expressivos úteis para compreender aspectos emocionais e cognitivos das pessoas envolvidas. No entanto, sua aplicação requer cuidado devido à sua natureza subjetiva e à necessidade de interpretação cuidadosa. Também pode-se lançar mão de instrumentos estruturados como entrevistas e inventários, considerando o risco de respostas simuladas nessas técnicas. Ressalta-se que nenhum instrumento isolado pode determinar com certeza a ocorrência de violência sexual. A avaliação psicológica deve ser abrangente, combinando entrevistas, testes psicológicos e instrumentos projetivos/expressivos, além de considerar o contexto e as características individuais das vítimas (ROVINSKI; PELISOLI, 2019).

Na psicologia histórico-cultural, a psicóloga perita desempenha um papel crucial na integração das interações complexas entre cada pessoa, seu contexto sociocultural, a suspeita em investigação e o próprio sistema de justiça, buscando além da simples descrição dos comportamentos e analisando os processos subjacentes que moldam o comportamento humano. Por fim, o estabelecimento do método em perícias com base teórica na psicologia histórico-cultural requer uma formação sólida das profissionais, que inclua os aspectos técnicos da avaliação psicológica e fundamentalmente um domínio profundo dos princípios e conceitos fundamentais dessa abordagem, bem como uma reflexão crítica sobre seu papel no lugar da psicologia social jurídica.

Assim, as narrativas factuais, quando ocorrem, devem ser consideradas dentro do contexto de desenvolvimento, emocional, social e das relações de poder envolvidas, o que não se sustenta exclusivamente pelo conteúdo literal das falas. Vigotski (2000, p. 481) destaca o cuidado necessário para consideração dos conteúdos verbalizados por outra(s) pessoa(s):

Para entender o discurso do outro, nunca é necessário entender apenas umas palavras; precisamos entender o seu pensamento. Mas é incompleta a compreensão do pensamento do interlocutor sem a compreensão do motivo que o levou a emiti-lo. De igual maneira, na análise psicológica de qualquer enunciado só chegamos ao fim quando descobrimos esse plano interior último e mais encoberto do pensamento verbal: a sua motivação.

Uma análise materialista-histórica destaca que, embora as características pessoais tenham sua importância, não ocupam um papel central tal qual uma lógica individualizante. A perspectiva da totalidade considera o ser humano de forma integral, composto por corpo e psiquismo, relacionados, mas não idênticos. Os impactos das experiências violentas são diversos e afetam o ser humano em sua totalidade, refletindo-se em sintomas conhecidos como componentes dos chamados “transtornos mentais” (SOUZA, T. M. D. S., 2020).

O método dialético também promove um diálogo colaborativo no processo de síntese, devolutiva e acompanhamento, explorando as implicações dos resultados da avaliação e desenvolvendo estratégias de intervenção sensíveis às necessidades das pessoas envolvidas.

Na reflexão sobre ética na elaboração de documentos, é essencial revisar os procedimentos técnicos em relação à prática profissional. Independentemente do contexto de trabalho e do nível de confidencialidade, é crucial tomar cuidado com o conteúdo e a forma da escrita, visando evitar uma prática iatrogênica (ROVINSKI, 2016).

6. DESAFIOS E DILEMAS ÉTICOS

A inserção da Psicologia no campo jurídico suscita uma série de desafios éticos diante dos casos de violência sexual infantojuvenil. Atualmente, há uma confusão entre ética e moral, com o termo “ética” muitas vezes sendo empregado superficialmente para abordar várias questões sociais, ecológicas, médicas e políticas, resultando em uma perda de rigor e contundência do conceito. No contexto neoliberal, a ênfase na liberdade individual prioriza os interesses pessoais sobre os valores coletivos, como fraternidade e solidariedade. Isso está associado à responsabilidade individual pelos sucessos e fracassos, em um contexto de meritocracia e busca incessante por realizações pessoais. Nessa perspectiva, a ética envolve não apenas seguir normas, mas também a capacidade de criar novas formas de subjetividade e práticas singulares, sendo uma criação permanente influenciada pelo seu tempo (AMENDOLA, 2014).

Aqui considera-se o pressuposto teórico-metodológico de que a integração da psicologia no campo jurídico incorpora a complexidade da subjetividade humana ao sistema de justiça, considerando seus significados e interações com o contexto econômico e social. Seu objetivo é fornecer um ensaio preliminar que questione o lugar epistemológico da Psicologia Jurídica como uma área da psicologia científica (DIAS; CORTINHAS, 2021).

A Psicologia concreta, conforme defendido por Abrantes (2020), destaca-se por sua atuação revolucionária e crítica, visando superar a sociedade alienada. Essa abordagem enfatiza a categoria de atividade como mediação na relação humana com a realidade, promovendo uma vinculação consciente com o mundo. Destaca-se também a formação para a práxis como elemento organizador da produção psicológica, pressupondo a consciência e a atividade social das pessoas. A autora ressalta que a Psicologia Histórico-cultural enfrenta o desafio de reconhecer e superar as contradições internas da disciplina, especialmente as tendências subjetivistas e empiristas. Para Abrantes (2020), a psicologia deve compreender não apenas a formação da consciência, mas também a relação do ser humano com as estruturas sociais que moldam essa consciência, buscando uma prática transformadora das circunstâncias.

A interação entre Psicologia e Sistema de Justiça é um campo em constante transformação, caracterizada pela articulação entre esses dois domínios de conhecimento e pelas dinâmicas de poder que permeiam essa relação. A Psicologia Jurídica no Brasil emergiu como resultado dessa interlocução, destacando-se como um conhecimento produzido na interface entre a academia e o sistema de justiça. Enquanto a academia representa o locus tradicional de produção do conhecimento científico, com sua busca pela objetividade e universalidade das leis, o sistema de justiça é o espaço de aplicação do conhecimento jurídico disciplinado pelo Direito, estabelecendo suas próprias regras e procedimentos. Nessa relação, o campo do Direito intenta geralmente colocar-se em uma posição de poder dominante, estabelecendo as bases sobre as quais a Psicologia é convidada a contribuir, convite este que não é feito numa relação de igualdade.

A entrada da Psicologia no cenário jurídico é coerente epistemologicamente com a história da Psicologia e a formação de um poder de justiça, integrando diferentes saberes na construção da ordem social. Essa relação não é neutra, mas sim marcada por debates e relações de poder, que influenciam tanto a produção de conhecimento quanto às práticas jurídicas. Três marcos fundamentais delineiam essa relação: o desejo de verdade, que orienta a produção de conhecimento e a busca pela verdade nos processos judiciais; a judicialização das relações, que amplia o escopo de intervenção do sistema de justiça na vida cotidiana; e a defesa dos direitos, que enfatiza o alcance da Psicologia na promoção da dignidade e na luta contra as desigualdades. Esses marcos refletem uma lógica contemporânea na qual o direito desempenha um papel central na configuração da justiça e na garantia dos direitos dos cidadãos, enquanto a Psicologia contribui para a compreensão dos processos subjacentes e para a promoção de uma justiça mais equitativa e inclusiva (DINIZ; CARBÓ, 2022).

Conforme destacado por Melo (2020), a psicologia social jurídica enfrenta o desafio de contextualizar a relação entre psicologia e direito, sopesando os determinantes econômicos, políticos e sociais que influenciam a prática das profissionais de psicologia no campo do sistema de justiça. É essencial reconstruir métodos e práticas da psicologia jurídica em diálogo com a psicologia social, promovendo assim uma atuação mais ética e inclusiva no sistema de justiça.

Moreira e Soares (2019) ressaltam a importância desse diálogo entre produção acadêmica e práticas psicológicas no campo jurídico para a construção de uma identidade genuína da psicologia social jurídica, que vá além de meras respostas tecnicistas às demandas legais, priorizando o cuidado e a atenção às pessoas envolvidas nos processos judiciais. Essa atuação comprometida com os direitos humanos e sociais requer uma reflexão crítica sobre o papel da psicologia enquanto ciência e profissão na interface com o sistema de justiça, para evitar que as práticas psicológicas não passem de reflexos das demandas do direito, desconsiderando as conjunturas e particularidades das pessoas.

No exercício dessa atuação, é crucial direcionar ações para garantir direitos, repensando políticas públicas de segurança com ênfase na prevenção à violência e na proteção dos mais vulneráveis. As reflexões atuais sobre o papel da psicologia na interface com a justiça apontam a necessidade de um posicionamento crítico da disciplina frente às demandas do direito, evitando que as práticas psicológicas se tornem apenas reflexos das necessidades de outras ciências, negligenciando os contextos e as particularidades das pessoas.

Esses desafios incluem questões como a necessidade de garantir a confidencialidade e privacidade dos envolvidos, ao mesmo tempo em que se busca a justiça no processo judicial. Além disso, há o dilema de equilibrar a busca pela verdade com a proteção das pessoas, especialmente quando se trata de crianças e adolescentes, que podem ser vulneráveis a pressões externas durante o processo de investigação e julgamento.

Outro dilema ético surge da necessidade de equilibrar o respeito à autonomia das pessoas envolvidas com a responsabilidade de agir em seu melhor interesse. Isso pode ser especialmente complicado em casos de violência sexual infantojuvenil, nos quais as vítimas por vezes demonstram dificuldade em entender completamente as implicações de suas escolhas e decisões.

Além disso, as profissionais enfrentam o desafio de lidar com sistemas de poder e hierarquias dentro do sistema de justiça, que podem interferir em suas condutas e decisões. É pertinente que os profissionais estejam cientes dessas dinâmicas e trabalhem ativamente para garantir que suas ações sejam guiadas pelos princípios éticos da profissão.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Primeiramente, fica claro que a atuação da psicologia na relação com o sistema de justiça demanda uma compreensão das complexidades sociais, culturais e históricas que permeiam os casos de violência sexual infantojuvenil. É essencial reconhecer a importância da interdisciplinaridade e do diálogo entre diferentes campos do conhecimento para um enfoque dialético, integral e contextualizado desses casos.

Além disso, é fundamental destacar a necessidade de uma atuação ética e sensível por parte dos profissionais da psicologia social jurídica. Isso envolve mais do que o simples cumprimento dos princípios éticos estabelecidos pelos códigos de ética profissional, como especialmente a reflexão constante sobre as implicações éticas de suas práticas e decisões. Os profissionais devem estar cientes do poder que detêm e das responsabilidades associadas à sua posição, buscando sempre agir em prol do bem-estar das pessoas envolvidas nos casos.

Uma perspectiva eminentemente ética na psicologia social jurídica também requer uma compreensão crítica das questões de poder e hierarquia presentes no sistema jurídico. Os profissionais devem estar atentos às dinâmicas de poder que influenciam suas práticas e buscar maneiras de mitigar o impacto dessas dinâmicas nas decisões tomadas. Isso inclui promover a equidade e a justiça em suas intervenções, garantindo que todas as partes envolvidas sejam tratadas com respeito e dignidade.

A concepção da psicologia como uma “ciência aplicada” ao direito frequentemente obscurece a complexidade das dinâmicas de poder presentes na interface com o sistema de justiça. Ao adotar essa perspectiva, corre-se o risco de reduzir o papel das psicólogas a meras técnicas que aplicam seus conhecimentos de forma pretensamente neutra e objetiva. No entanto, essa visão ignora as relações de poder entre os profissionais e as instituições envolvidas, bem como o contexto político, social e econômico em que estão inseridos. Essas dinâmicas de poder podem influenciar significativamente o serviço prestado à população, afetando desde a seleção de casos até a formulação de pareceres e recomendações. Além disso, a ideia de uma psicologia “aplicada” ao direito pode perpetuar relações desiguais de poder, em que determinados grupos são privilegiados em detrimento de outros, prejudicando a busca por uma justiça verdadeiramente equitativa. Portanto, é fundamental problematizar essa concepção e buscar uma abordagem mais crítica e reflexiva sobre o papel da psicologia no sistema de justiça, visando garantir uma atuação ética, sensível e comprometida com os direitos e interesses da população.

É indispensável ainda ressaltar a relevância de um olhar contextualizado na psicologia social jurídica, que se atente às especificidades culturais, sociais e históricas dos casos avaliados. Isso significa reconhecer que não existe uma solução única ou universal para os problemas enfrentados no sistema jurídico, e que as intervenções devem ser adaptadas às necessidades e circunstâncias individuais de cada caso.

Por fim, deve-se enfatizar que a psicologia social jurídica tem um papel fundamental na promoção da justiça e no combate às desigualdades sociais. As profissionais dessa área têm a responsabilidade de contribuir para a construção de um sistema jurídico mais justo, inclusivo e ético, que respeite os direitos humanos e promova o bem-estar de todos os cidadãos. Isso requer um compromisso constante com a ética, a justiça e a equidade em todas as áreas de atuação da psicologia jurídica.

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