Aquele Sobre Dark Souls

Doc — 11 de Janeiro de 2018

Gabriel Thomé
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11 min readJan 14, 2018

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O texto a seguir é uma tradução não oficial de “The One About Dark Souls”, originalmente escrito por Doc. Para ler o texto original clique aqui

Este artigo estava previsto para sair numa outra publicação a cerca de um ano atrás. Me pagaram uma taxa de cancelamento e disseram que ele era “emocionalmente cru demais”.

Então.

Lá vamos nós.

Dessa vez, tenho certeza que peguei ele. O Padre Gascgoine tem me atormentado por várias semanas, mas agora eu já saquei. Eu entro na arena, animado e pronto pra fazer isso. Durante alguns minutos, fica tudo bem, mas aí eu sinto uma pontada prenunciante na minha mão. Antes de notar, a dor ardorosamente se alastra até meu braço e depois até o meu pescoço. Eu tenho que largar o controle. Minha saúde pobre me traiu de novo. Nunca serei bom o bastante para zerar um Souls.

Dark Souls é difícil. Ele é famoso por isso. Num mundo onde os maiores e mais sucedidos jogos se alicerçam em promessas de te deixar jogar do seu jeito, Dark Souls é brutal e implacável. A magnum opus da FromSoftware exige que você a aceite seguindo as regras dela, uma estratégia que se provou extremamente popular; poucos jogos podem bradar-se de uma comunidade tão apaixonada e leal quanto a de Dark Souls.

Um debate que se fervou durante anos foi o de se Dark Souls se beneficiaria ou não de um modo fácil. Fãs irão lhe dizer que não, que a dificuldade é um elemento essencial na experiência Dark Souls, que muito da diversão do jogo se encontra em sua dificuldade, e eles tem razão. Outros, pessoas, que queriam aderir a série, mas que não conseguem extrair prazer nenhum de desafios nos jogos, acreditam que Dark Souls seria melhor se tivesse um modo fácil.

Dark Souls une clássicos eternos como Doom e Donkey Kong para estabelecer sua própria fórmula. Desenvolvedores de jogos Indie e AAA têm pegado emprestado igualmente coisas da série Souls, em jogos como Salt and Sanctuary, Lords of The Fallen e Nioh. Antes de nos perguntar-mos se os Souls deviam ter um modo fácil, precisamos entender como os jogos Souls funcionam.

Os Souls funcionam assim: você, o jogador, tem de viajar pelo mundo do jogo, superando seus chefes desafiantes. Toda vez que você derrota um inimigo, você ganha uma moeda de troca, chamada “almas”, ou “blood echoes”, ou algo similar, que você usa pra comprar melhorias. Se você morrer, você perde sua coleção de almas, e renasce no último save point, geralmente uma locação física como uma fogueira. Você crucialmente não pode armazenar almas. Isso significa que conforme seu poder aumenta, também aumenta a necessidade de explorar o mundo, se pondo em risco, até que você tenha almas o suficiente para comprar melhorias mais poderosas.

O combate requer que você jogue atenciosamente. Você precisa ficar de olha na barra de energia, que se esvazia conforme você ataca e se movimenta. Gastar energia num momento inoportuno pode resultar numa morte trágica. Seus ataques geralmente são baseados na animação, o que significa que quando você aperta um botão para atacar, você não pode interromper a animação de ataque até que ela termine. Um ataque na hora certa é a diferença entre a vida e a morte em um Souls.

Essas mecânicas são então postas num mundo feito para acomodá-las. As mecânicas de um Souls nunca funcionariam num jogo como The Witcher 3, onde os jogadores poderiam simplesmente observar os inimigos e rodeá-los, evitando completamente o confronto. Os mapas dos Souls, pelo contrário, são feitos com um plano de confronto explícito em mente. Tem um confronto inicial em Dark Souls 3 que conta com um dragão que irá facilmente torrar qualquer jogador descuidado. Você corre pelas escadas, é torrado, morre, e volta pra fogueira, mais perspicaz do que jamais fora. Conforme progride, você descobre atalhos que facilitam consideravelmente a travessia.

Com o passar do tempo, você assimila o mundo do jogo. O que parecia ser crueldade no começo agora é uma brincadeira malandra. O mundo se torna mais compreensível. Dark Souls floresce na surpresa inicial e no domínio gradual. “Git gud”, o mantra da comunidade, não é tanto uma demonstração de desdém quanto é uma descrição da evolução do jogador. Quanto mais você joga, melhor fica.

Um dos maiores atrativos de jogos de turno como XCOM e Civilization é o jeito que eles convencem o jogador a persistir. “Só mais um turno”, você diz a si mesmo, e antes que perceba, tá dando 5 da manhã e você virou a noite sem nem ter conseguido libertar a Terra de uma ameaça alienígena. Os jogos Souls são assim também, mas eles usam a dificuldade para alcançar a mesma coisa. Foi morto de cara por um chefe estrategicamente posicionado? Antes que perceba, já vai estar de volta para a fogueira mais próxima. “Essa morte foi nada a ver”, você diz a si mesmo, “eu posso passar daí com certeza”.

Dark Souls é um jogo de perícia, que habilmente tece uma narrativa para acompanhar o desenvolvimento da sua habilidade. Superar aquele chefe aparentemente impossível é arrebatador. Rir das armadilhas jocosas do designer é apetecível. Os Souls te envolvem, te puxam, e entregam alguns dos melhores clímaxes dos jogos.

É injusto dizer que Souls é só um jogo difícil; Tem milhares de jogos desafiadores por aí. Dead Rising 2 cria seu desafio através do gerenciamento do tempo. A dificuldade de Ikaruga é baseada no reflexo do jogador. Souls é um jogo que usa seu ajuste de dificuldade para ajudar a estabelecer sua fórmula irresistível. Sem a dificuldade, muito do que faz Souls ser uma série brilhante se perderia.

Apesar disso, gostaria que os Souls tivessem um modo fácil, porque eu não consigo jogar igual vocês. Eu quero compartilhar as histórias e estratégias. Eu quero vencer o Padre Gascoigne com um controle de Donkey Conga e upar o vídeo no Youtube. Eu quero dominar os sistemas do jogo. Eu quero tanto ser parte dessa comunidade apaixonada e fervorosa, mas não posso.

Eu não posso porque meu corpo está se desligando.

Doze anos atrás, fiquei doente. No começo, foi um cansaço de leve. Os médicos disseram que era um mal-estar e que passaria. Minha família achou que era preguiça de adolescente. Daí piorou. Antes de ficar doente, eu estava aprendendo a pilotar aviões. Eu costumava escalar regularmente no YMCA. Eu amava canoagem–não importa se fosse uma viagem de 80 km para acampar ou rafting, eu topava. Dentro de meses, eu perdi quase que completamente minha habilidade de operar meu corpo. Um médico me disse que, depois de olhar meus exâmes, ela ficou surpresa que eu tinha forçar para sequer levantar da cama.

Levou quatro anos para receber um diagnóstico, mas ao invés de saber o nome da minha doença, como câncer, lúpus ou algo do gênero, fui comunicado que alguns genes simplesmente não estavam funcionando direito. Na verdade foi muito mais complicado, mas em resumo foi isso. Como resultado, sofro de dor crônica e fadiga crônica, e também tenho todos os sintomas causados por carência extrema de magnésio, porque meu corpo não o absorve corretamente.

Fadiga crônica é uma doença profundamente mal-entendida. As pessoas não a entendem. Se você contrai câncer ou esclerose múltipla, dá pra entender um pouco. Fadiga crônica é muito mais difícil de explicar. Muitas pessoas não acreditam que é real. Alguns países classificam como distúrbio mental, ao invés de físico. Tudo que eu sempre quis fazer na vida foi me privado por essa doença. Sem escrever sobre jogos, que é uma coisa que sou privilegiado o bastante para poder fazer de casa, eu sei como sobreviveria.

Durante sua TED talk sobre fadiga crônica, a documentarista Jennifer Brea pausa e simplesmente afirma “meu cérebro não é mais o que era antes”. Eu entendo o que ela diz, porque passei na pele. Eu era muito mais do que sou hoje. A fadiga crônica consome tudo. Tenho sorte, porque pra mim, existe uma saída. Com tratamento regular, eu posso voltar a viver algo parecido com uma vida normal, mas como a doença limita a quais trabalhos posso me candidatar, minha renda é limitada, o que limita minha viabilidade de pagar pelo tratamento da minha doença. A resposta pra minha doença é só um empregador me dar uma oportunidade para que então eu possa ganhar dinheiro o bastante para pagar pelo tratamento. Eu não sei nem como vou conseguir arrumar um emprego que possa bancar um tratamento constante, mas espero que um dia eu consiga.

Até lá, eu vou jogar, o que é uma fuga incrível da dor crônica e da fadiga crônica. Um fisioterapeuta uma vez me falou que pessoas como eu dispõem 90% da sua atenção a manter a dor afastada. Jogar ajuda a descarregar um pouco do estresse. Mas, como pode imaginar, jogar jogos tipo Dark Souls pra mim é mais difícil do que é para a maioria das pessoas, o que dificulta o escapismo. Vários amigos meus adoram entrar na onda de Dark Souls e jogar o jogo por horas. Eu adoraria experienciar isso também.

A maioria de vocês provavelmente não fica com as mãos travadas depois de jogar meia hora, muito menos exaurido por um fim de semana inteiro depois de falhar ao tentar eliminar o Padre Gascoigne de Bloodborne. Um modo fácil para mim significaria que eu poderia apreciar esse jogos com o mesmo esforço que vocês fazem para apreciá-los.

Mas não é tão simples assim. Deficiências não é um assunto em que a maioria de nós tocamos abertamente. Falar sobre isso tende a fazer as pessoas se sentirem incomodadas; alguns até lamentam por ter que lidar com isso. Na maior parte do tempo é difícil sair de casa, sabendo que a maioria das pessoas não tem a compaixão ou paciência para tolerar a minha doença. Pior ainda, muitas pessoas se esforçam para piorar as coisas, com umas justificativas estranhas e presunçosas que eu nunca entendi.

Já tive empregadores que me forçavam trabalhar em condições que atiçavam meus sintomas porque eles achavam que poderiam me convencer que minha doença era coisa da minha cabeça, independente do que os médicos haviam dito. Caçamba, eu até fui expulso de um podcast; dois dos meus colegas de podcast me disseram que estavam me fazendo um favor. Aparentemente, cortar qualquer relação magicamente me ajudaria a superar minha doença e cuidar melhor da minha vida. Quando o assunto é deficiência, pessoas que podem até ser boas, podem fazer coisas horríveis, dando voltas só pra justificar seu abuso com um “é pro seu bem”.

Jogar com os meus amigos ou conversar sobre jogos em fóruns, no twitter e skype me permite socializar com outras pessoas sem ter que me preocupar com a minha doença me atrapalhando. Enquanto não faço tratamento, vou ficar trancado dentro de casa, mas ainda posso ter contato humano através da internet.

Enquanto estou falando detalhadamente das minhas experiências, preciso ressaltar que nem de longe sou a única pessoa cujos problemas de saúde limitam as opções de gameplay. Muitas deficiências limitam as opções de gameplay. Eu tenho um amigo com artrite severa que faz com que jogar em consoles seja impossível para ele. Dois amigos meus têm epilepsia, que pode ser provocada por certos jogos. Eu já conheci pessoas daltônicas e surdas; todas essas coisas impactam em suas experiências de gameplay.

O quão longe um desenvolvedor deve ir para garantir que a sua audiência pode apreciar seu trabalho? Num geral, acho que é melhor pecar pro lado da acessibilidade; se um jogo pode dar suporte a daltonismo, ele deve fazê-lo. Se um designer pode assegurar que jogadores com deficiência auditiva tenham boas legendas, o jogo dele se beneficiaria da sua inclusão.

Com os meus problemas de dor crônica e fadiga crônica, apertar botões rapidamente em jogos como Bayonetta ou God of War pode ser fisicamente exaustivo; alternar opções de QTE seria um baita avanço para fazer os jogos mais acessíveis. Eu fiquei pasmo em saber que Dragon Age: Inquisition, um jogo de mundo aberto enorme, tinha um botão de corrida automática. Splatoon oferece aos jogadores uma ampla variedade de estilos de jogo, permitindo os jogadores a serem úteis, independente de habilidade.

Ao mesmo tempo, reconheço que nem toda solução é perfeita; shoot-em-ups como Ikaruga são feitos para serem brilhantes e piscantes. Os projéteis tem de ser grandes e brilhantes o suficiente pra desviar deles. Esses jogos podem provocar sintomas em portadores de epilepsia, e eu não acho que tenha uma maneira de evitar isso sem mudar estruturalmente o game design.

Não tem resposta fácil, mas oferecer modos de dificuldade, modos de visualização, e permitir personalizar os controles, tudo isso é uma grande contribuição para manter os jogos acessíveis.

Alguns desenvolvedores e publicadoras estão fazendo essa contribuição para garantir que gamers deficientes sejam amparados. A Microsoft Introduziu recentemente o modo copiloto, que permite que dois controles diferentes controlem o mesmo jogo. O controle Xbox One Elite é ótimo para jogadores com deficiências garças às suas diversas opções de personalização. Infelizmente, a Sony não oferece um suporte para deficientes parecido, mas graças a aparelhos como o Cronusmax Plus, você pode usar o Xbox One Elite no Playstation 4, ou até mesmo um mouse e teclado.

À medida que minha saúde veio se deteriorando com o passar dos anos, minha capacidade de jogar foi junto. O Trials of Osiris, do Destiny, é um evento competitivo multiplayer onde os jogadores tem que ganhar nove partidas de cinco rounds cada contra um time adversário. Eu executei uma performance perfeita lá em 2015, mas desde então não consegui mais. Os controles são horríveis pra mim; jogar com eles geralmente acaba em cãibra nas mãos e espasmos musculares. É bem menos doloroso mirar com um mouse, então eu tenho visado um Cronusmax na intenção de usar o mouse e teclado para jogar o Trials of Osiris mais uma vez.

Eu fiquei profundamente preocupado quando ouvi que Jeff Kaplan, Vice Presidente da Blizzard, se pôs contra o use desses aparelhos. Se a sugestão míope de Kaplan tivesse se tornado realidade, gamers deficientes que usassem tecnologias de assistência teriam seus consoles inutilizáveis, não só para Overwatch, mas para qualquer jogo. Kaplan também sugeriu deixar que todos os consoles usassem mouse e teclado nativamente, o que seria fantástico para jogadores deficientes, mas é frustrante ouvir que ele sequer considerou a primeira opção.

Como um modo fácil funcionaria em Souls? Simples: deixe que os jogadores levem muito mais dano antes de morrer. É maravilhoso assistir os meus amigos na luta de chefe dupla contra Ornstein e Smough, mas aquela luta requer uma sincronização perfeita que eu não posso executar sempre. Eu tensiono meus músculos quando tento sincronizar algo perfeitamente; não ter que se preocupar com o tempo me ajudaria a evitar um posterior desencadeamento de dor.

Obviamente, tem jeitos melhores de ajustar a dificuldade, mas eles exigiriam muito mais trabalho por parte dos desenvolvedores. Ajustar as animações dos inimigos para que evidenciassem mais um ataque quando este está por vir seria um grande passo. Os movimentos de Dark Souls são baseados na animação, ao invés de em comandos, o que significa que quando você pressiona um botão, seu personagem tem que completar a animação antes de fazer outro movimento. Priorizar os comandos do jogador à animação deixaria que os jogadores corrigissem erros muito mais facilmente.

Para um ferrenho jogador de Dark Souls, tenho certeza que tudo isso soa como uma heresia. As sugestões são discutíveis, é claro–A From tá cheia de fazer jogos de Souls, e é improvável deles adicionarem um modo fácil numa de uma atualização. Os Souls são só um exemplo, algo que eu espero que os desenvolvedores do futuro possam usar para aprender. Eu queria gostar do seu jogo favorito do jeito que você gosta, mas não posso, não do jeito que tá agora.

Jogar jogos literalmente salvou a minha vida. Nos meus piores dias, os jogos fizeram minha vida tolerável. Os jogos me dão uma comunidade e distração. Então, quando o assunto é se Dark Souls deveria ter um modo fácil, acho que a resposta óbvia é sim. Pra mim, um modo fácil me permitiria jogar o jogo como ele foi feito pra ser jogado, sem se preocupar com espasmos musculares devastadores no dia seguinte. Eu só quero aproveitar a vida e passar tempo com amigos; jogos que eu posso jogar sem agonizar me deixam ter isso.

Por fim, desenvolvedores são livres para fazer o que quiserem com os jogos que eles fazem. Minha esperança é a de que este artigo inicie uma conversa sobre como abrir portas para todos que queiram jogar ou fazer jogos. Viver a vida com uma deficiência é um modo difícil, e não tem uma opção de mudar de dificuldade. Se você pode nos ajudar, você ajudaria?

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Gabriel Thomé
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Game Designer de papel e caneta, às vezes de mouse e teclado também.