UMBERTO ECO E SEU LEGADO PARA OS JOGOS DE MUNDO ABERTO

Brent Ables— 30 de Abril de 2016

Gabriel Thomé
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10 min readJan 12, 2018

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O texto a seguir é uma tradução não oficial de “UMBERTO ECO AND HIS LEGACY IN OPEN-WORLD GAMES”, originalmente escrito por Brent Ables. Para ler o texto original clique aqui

No finalzinho do seu Posfácio de O Nome da Rosa(1980), Umberto Eco fez, descontraidamente, um gesto profético em direção ao futuro da ficção interativa. “Parece”, escreveu Eco, “que o grupo parisiense Oulipo construiu recentemente uma matriz de todas as possíveis situações para uma história de assassinato, e ainda há de ser escrita uma história em que o assassino é o leitor.” E poucas linhas depois, uma piscadela: “Qualquer detecção verdadeira deverá revelar que somos o culpado.” O texto ou começa ou terminar aqui, depende da sua interpretação.

OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle) foi um coletivo de matemáticos e escritores experimentais, que, na década de 1960, desenvolveu uma nova forma de “literatura potencial”, onde a imposição de regras arbitrárias tornavasse parte constituinte do significado da obra. La Disparition(1969), de George Perec, por exemplo, foi uma novela de 300 páginas escrita sem a letra “e”. Os personagens na novela procuram pela letra perdida, mas sem de fato usá-la por temor de se ferirem fatalmente. Enquanto isso, A Hundred Thousand Billion Poems(1961), de Raumond Queneau, oferecia só isso: 10 sonetos impressos em linhas de texto diferentes poderiam ser viradas individualmente a esmo, produzindo 100.000.000.000.000 de poemas diferentes para o prazer do leitor. Ao adaptar os métodos aleatórios (ou baseados em chance) de compositores como John Cage à esfera mais nebulosa do significado literário, escritores como Queneau atualizaram de maneira inédita as conveções de literatura clássicas para civilizações devastadas por conflitos de liberdade e ordem.

DSCN0389 por Pantarei Live

Embora muito de sua obra como filosofo tenha sido dedicada a explicar como tais experimentos eram linguisticamente possíveis, Eco nunca impôs essas limitações na sua própria ficção. Ao invés disso, ele jogou outros tipo de jogos. Na sua novela de 1988 O Pêndulo de Foucault, Eco pôs três homens para fornecer a um computador uma extensiva quantidade de curiosidades esotéricas–envolvendo Templários, Rosa-cruzes, Maçons, Illuminatis e mil outras seitas ocultas– para que ele as sintetizasse aleatoriamente para gerar um “plano-mestre” para explicar o curso da história europeia. A tensão aumenta quando, conforme o passar do tempo, cada um dos três começa a acreditar no seu próprio Plano. A realidade e a ficção miscigenam-se em conjunto: “o jogo”, ele escreve, “não era mais um jogo.” Consequências trágicas se encadeiam, mas parece que a moral da história não colou: Eco, algumas décadas depois, brincou que um dos personagens que não foi creditado n’O Pendulo de Foucault foi O Código Da Vinci (2003) de Dan Brown.

O Nome da Rosa foi escrito baseado numa reinterpretação similar. Um detetive monge levanta a hipótese de que uma série de homicídios desconexos em um mosteiro tem inspiração nos eventos dos Sete Dias de Revelação. Mas quando ele profere essa errônea teoria, outro monge obtém a iluminação para enxergar o padrão que leva à conclusão sangrenta. Isso marca um tema comum tanto na ficção de Eco como em sua obra filosófica: nossas interpretações do mundo são ferramentas necessárias para ver sentido nele, mas se prender a essas crenças como se elas revelassem a real natureza das coisas, pode ser perigoso. O mundo é sempre mais caótico do que a ordem que o nosso sistema de signos impõe.

O mundo é sempre mais caótico do que a ordem que o nosso sistema de signos impõe

Olhando por esse lado, o ludismo da ficção de Eco serviu a um propósito sério. O autor era famoso por encher suas novelas com uma interminável série de digressões, missões secundárias, efêmeras, debates arcanos, e listas inacreditáveis de tudo que é coisa. (Eco uma vez escreveu que “gostamos de listas porque não queremos morrer”). Mas ao oferecer tantos pontos de bifurcações em potencial e caminhos para expandir o aprendizado do leitor curioso, Eco, que cresceu sob a sombra de Mussolini, estava travando uma batalha feroz por liberdade artística e intelectual tal como o mais radical dos vanguardas franceses. Sem sacrificar seu dom de contar ótimas histórias, ele garantiu que seu próprio texto fosse mantido como trabalho em aberto, portanto preservando um espaço para a possibilidade de um mundo aberto.

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Quando Eco morreu de câncer em fevereiro, foi como um lúgubre ponto final na sentença de morte das palavras impressas. É quase impossível de imaginar uma novela como O Nome da Rosa vendendo 50 milhões de cópias em 2016. Sim, seu apelo resistiu à passagem dos anos o bastante para inspirar dois jogos espanhóis, um jogo de tabuleiro, e a peculiar ideia de que Christian Slater poderia se passar por um monge alemão. Mas Eco os sancionou. Ele sempre insistiu na autonomia da literatura, mesmo tendo ajudado a mudar a noção do que a literatura poderia ser. E não é concreto dizer que sua ficção exerceu a mesma influência na estética dos games que as de Philip K. Dick ou William Gibson, que por sua vez, fizeram-no incontestavelmente.

Mas no seu trabalho como um crítico filosófico e cultural, Eco ajudou a criar um mundo onde fornecer informação codificada a um computador operado por um usuário pode produzir algo de valor artístico. Décadas antes da sua ascensão à fama literária, ele enfatizou a necessidade de romper a distinção entre “alta cultura” e “cultura popular”, tratando ambas como objetos de analise de significância igual. Consequentemente, alguém pode encontrar, em qualquer dissertação, alusões a Tomás de Aquino, Ferdinand de Saussure e Bach comparadas a intrincadas reflexões sobre Disneylândia e James Bond. Este tipo de polimatia não era só uma deixa para que Eco ostentasse sua erudição ímpar; era um desenvolvimento natural das suas convicções teóricas de que, já que todo significado surge da interação entre estruturas simbólicas, a verdadeira distinção entre alta cultura e cultura popular é pautada por gosto, e não pela forma.

O trabalho de Eco na semiótica — um campo que ele não inventou, mas que sustentou fortemente desde a década de 80 — era voltado a classificar e avaliar as formas dessas estruturas simbólicas. Este trabalho poderia ter sido assustadoramente técnico tal como os dos pensadores medievais que Eco adorava, mas a ideia principal é simples. Pense em linguagem: Por si só, as 26 letras do alfabeto são só formas vazias sem nenhum significado. Mas quando as combinamos em estruturas maiores (palavras e orações) seguindo regras fixas (de gramática), acabamos com uma fala com significado e comunicação eficaz. A semiótica pega esse conceito básico e aplica em todas as coisas do mundo humano — partidas de futebol, costumes de casamento, propaganda. O mundo é um texto incompleto a espera de ser interpretado.

O efeito revolucionário dessas ideias é o de que a criação do significado artístico se tornar algo tão natural para os seres humanos quanto a habilidade de usar línguas. Como Cage e Queneau já deduziam, nós não precisamos mais nos restringir ao clássico cenário estético de uma autora divina que incute significados profundos através do conhecimento e técnicas disponíveis apenas à ela. Ao invés disso, temos a possibilidade de uma obra de arte democrática onde os espectadores se tornam participantes. Uma obra onde você pode ser o assassino e o detetive.

O MUNDO É UM TEXTO INCOMPLETO A ESPERA DE SER INTERPRETADO

Seria difícil sobreavaliar a importância que essa transição tem no desenvolvimento dos jogos de mundo aberto. Sejam os símbolos em questão manticoras pixeladas, ogros ou os arranha-céus de uma Boston pós-apocalíptica, o que distingue esses jogos é o fato deles permitirem que uma definição recursiva das estruturas do próprio jogo seja feita pelo jogador. (Perceba que aqui eu não diferencio jogos de mundo aberto de jogos “sandbox”). Todo jogo necessariamente dá ao jogador certo elemento de escolha, mesmo que seja só um “Aperte A para continuar”. Mas jogos abertos nos dá opções de que tipo de escolha nós podemos fazer — Eles não nos dão um mundo de possibilidades, eles nos dão milhões de mundos possíveis. O prazer não vem do número de opções, mas de ver a identidade autoral de um ser se manifestar como uma criação que subsiste mais que o mesmo.

Claro, nem toda colaboração vai produzir uma ótima história. Se, como Eco, acreditarmos que deve ser possível diferenciar o “lixo” da arte verdadeira dentro da ficção interativa, como então saberemos a diferença? Podemos beliscar uma resposta da diferença proposta por Eco entre um código e um labirinto. Um código, segundo Eco, é um conjunto de convenções que permite que a mensagem de um remetente seja entendida pelo destinatário num ato de comunicação. A minha escrita deste parágrafo presume que você seja capaz de ler inglês, que seja capaz de mexer num computador, e daí por diante. Códigos montam um contexto específico para a troca de informação, eliminando a ambiguidade. Labirintos, em contrapartida, são situações de ambiguidade irredutível que surgem de quebras de convenção. Códigos nos fazem parar em luzes vermelhas e nos deixam olhar a hora. Cidade dos Sonhos (2001) nos convida a um labirinto. A convicção de Eco é a de que a arte deve lutar ativamente para diferir e atrasar a concretização de significados a objetivo de restaurar nossa percepção da essencial estranheza do mundo.

Um quadro de Cidade dos Sonhos, de Davd Lynch

A ambiguidade dos jogos de mundo aberto, contudo, não é simbólica. Ao invés disso, ela é o que só pode ser chamado de ambiguidade ontológica: qual história irá transparecer? Quais eventos virtuais serão consumados? Quais soldados levaram uma flechada no joelho? Conforme você cria seu mundo, num decreto onipotente de cada vez, sinais naquele mundo começam a adotar seus próprios significados como parte do plano maior. Mas fazer isso de fato envolve navegar por uma série de diferimentos e atrasos. Conforme você progressivamente monta seu labirinto, onde todo ponto está conectado a um outro ponto, você cria várias zonas de expressão interligadas para dar aos códigos programados um contexto.

Fãs de jogos de mundo aberto já sabem que pegar caminhos paralelos é o ponto do jogo. Mas os melhores jogos desse tipo, talvez, são aqueles onde as missões secundárias são tão importantes quanto a história principal, e onde todas os segmentos da história podem ser entrelaçados para formar o que Eco chama de “desordem controlada”, ou uma “fusão orgânica de diversos elementos”. O sucesso de The Witcher 3 no ano passado parece ser muito ligado à sua proeza de ter um balaceamento precário. Isso pode ter algo a ver com as origens novelescas do jogo, mas mérito de verdade vai para seus criadores. Chris Breault explicou bem nessa análise dele para o Kill Screen no ano passado: “Em quase todas as missões secundárias e contratos de caça de monstros que você faz, tem rastros de alguém da CD Projekt Red que suou a camisa ali”.

IR PELOS CAMINHOS PARALELOS É O QUE IMPORTA

Sob essa perspectiva, talvez não devêssemos nos precipitar em celebrar a badalada morte do autor. Pode até ser verdade que as obras modernas deve ser abertas, mas para serem arte, ainda precisam dos artistas no outro lado da tela. E precisamos de artistas pois nossas histórias não são sempre nossas. Se fossem, viveríamos mais que elas.

Sob essa perspectiva, talvez não devêssemos nos precipitar em celebrar a badalada morte do autor. Pode até ser verdade que as obras modernas deve ser abertas, mas para serem arte, ainda precisam dos artistas no outro lado da tela. E precisamos de artistas pois nossas histórias não são sempre nossas. Se fossem, viveríamos mais que elas.

Isso parece ser o que Eco queria transmitir quando, em uma palestra de 2003 na “The Future of Books”, ele tocou nas possibilidades que foram abertas pelas novas formas de mídia narrativa. Esse direcionamento parece cativantemente datado agora, tanto pelo dialeto da era dial-up, quanto pela talvez inocente crença na firmeza da ficção impressa. Mas com a sua combinação lúdica e irreverente de pesos-pesados da literatura clássica e entretenimento moderno de curto prazo, faz ele ser algo tão, mas tão Eco de se dizer… Como um somatório das participações da ficção interativa, ele é perfeita. E como uma epifania inconsciente desse que é um dos autores mais livrescos, é inesperadamente cativante:

Se você tivesse um Guerra e Paz num CD-ROM hiper-textual e interativo, você poderia reescrever sua própria história a gosto; poderia inventar inúmeros Guerra e Pazes, onde Pierre Besuchov tem êxito em matar Napoleão, ou, dependendo da sua predileção, Napoleão derrotaria o General Kurusov de uma vez por todas. Quanta liberdade, quanta empolgação! Qualquer Bouvard ou Pécuchet poderia se tornar um Flaubert!

Infelizmente, com um livro já escrito, cujo destino é determinado uma decisão autoral opressora, não podemos fazer isso. Somos obrigados a aceitar o destino e perceber que não podemos mudar o destino. Um novela hiper-textual e interativa nos permite usufruir da liberdade e criatividade, e eu espero que tal atividade incentivadora seja implementada nas escolas do futuro. Entretanto, a novela definitivamente escrita Guerra e Paz não se opõe a nós com as possibilidades ilimitadas da nossa imaginação, mas com as severas leis que governam a vida e a morte.

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Gabriel Thomé
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Game Designer de papel e caneta, às vezes de mouse e teclado também.