NO MAN’S SKY E O BATISMO DE DEUS

Brent Ables — 14 de Setembro de 2016

Gabriel Thomé
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10 min readOct 3, 2016

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O texto a seguir é uma tradução amadora de “NO MAN’S SKY AND THE NAMING OF GOD”, um texto originalmente escrito por Brent Ables. Para ler o texto original clique aqui

No filme Pi, de 1998 dirigido por Darren Aronofsky, um matemático é amaldiçoado pela citação do nome divino. O jovem Max Cohen, o Ícaro de New York City, é um rapaz introvertido com transtorno de ansiedade que dedica o seu tempo e o computador ultra sofisticado a achar um padrão de previsibilidade no mercado de ações. Cohen nomeia seu computador de Euclides; tanto o nome de um matemático grego quanto o da galáxia inicial de No Man’s Sky. Sua convicção, expressa como um silogismo ordenado em um fragmento de gravação de voz recorrente é que, já que a natureza é feita de padrões, e a matemática é a linguagem da natureza, tudo na natureza tem um padrão. O universo é um autêntico teatro de processos, governado apenas pela pureza dos números e pela inimaginável infinidade de possíveis relações entre eles.

Cohen, eventualmente, acha o tal padrão na forma de um número de 216 dígitos. Como ele internaliza os numerais e suas relações, isso o destrói: um uma enorme dor de cabeça se acentua sobre ele, alucinações perturbam a sua rotina e a paranoia se institucionaliza em uma perseguição. Apesar dele querer prever o mercado de ações, Cohen não tenta lucrar em cima de seus avanços. Ele até se recusa a explicar o padrão para o grupo de investidores que ofereceu a ele um artefato tecnológico de altíssima importância, até mesmo quando o ameaçaram com uma arma de fogo. Cohen é salvo dos investidores por um grupo de Judeus Hassídicos que revelam que o número de 216 dígitos que ele achou é nada mais, nada menos, que o nome verdadeiro de Deus. Mas ele não está impressionado com o pedido deles pelo número, nem com a Era Messiânica que este anuncia: “Eu o achei”, ele diz. “Foi dado à mim”. No final, entretanto, ele o devolve. No clímax do filme, nós vemos uma cena de Cohen contra uma serena e pura luz branca que recita os dígitos divinos. Daí ele acorda, atormentado pela pior das enxaquecas, e perfura a própria cabeça com uma furadeira.

Qual foi o pecado de Max Cohen? Os investidores queriam lucrar com o padrão, mas mesmo se eles tivessem uma cópia do número, eles seriam incapazes de usá-lo corretamente: ao invés de conquistar o mercado de ações, eles o romperiam. Eles são vítimas do seu próprio senso de direito, esperam que o mundo vá obedecer suas expectativas caso taquem dinheiro nele. Enquanto isso, os judeus tinham uma cobiça por algo que lhes foi negado desde que o império romano destruiu a Judeia. Quando eles recorrem à violência e ameaças ao receberem um não de Cohen, eles contradizem a própria legitimidade autoproclamada. Opondo-se a esses dois grupos, Cohen não queria dinheiro nem poder — apenas conhecimento. Mas ao recusar compartilhar seu magnífico conhecimento, Cohen perdeu tudo que tinha a oferecer, e o mundo perdeu junto a ele. Se fosse alguns anos mais tarde, ele poderia ter evitado toda essa confusão sem nem precisar sair do apartamento. Não tem nada mais fácil que postar um número de 216 dígitos no Reddit.

O UNIVERSO É UM AUTÊNTICO TEATRO DE PROCESSOS

No Man’s Sky é um jogo sobre nomear coisas. Ele pode ser sobre muitas outras coisas, se você quiser: descobertas, peregrinação, ansiedade existencial, atirar em coisas, subir de nível, panteísmo, crafting, não subir de nível, escangalhar sua mochila a jato e cair no chão repetidas vezes, alimentar cachorros, luta de cachorros, lutar com cachorros. Porém, muitas pessoas parecem ser incapazes ou relutantes em ver o que o jogo é, no lugar de ver o que eles queriam que ele fosse, ou pensavam que ele fosse. Como os investidores em Pi, eles estão focados demais nos resultados imediatos dos seus temporais e momentâneos investimentos, como se eles estivessem salivando em No Man’s Sky nos últimos três anos, como se isso fosse um favor a Sean Murray. Um crítico até chamou o jogo de “anti-consumidor”, presumivelmente com a premissa de que isso é uma coisa ruim. E por baixo de todo descontentamento está o refrão insistente de que não tem nada para fazer nesse jogo do tamanho de uma galáxia.

Aqui vai uma dica do que você pode fazer em No Man’s Sky: você pode nomear coisas. Você nomeia sistemas estelares, você nomeia planetas, você nomeia plantas e animais de todos os tamanhos e tons de cor. Você tem a oportunidade de nomear mais coisas que você pode imaginar que podem ser nomeadas. E você ganha pontos por nomear coisas, mas esse não é o objetivo. O objetivo é nomear bem. E isto requer um pouco de reflexão sobre do que é feito um nome, e o que um nome faz.

Na cultura ocidental, o paradigma de nomeação mais famoso é as primeiras páginas da Bíblia. Aqui, Deus cria o mundo ao nomeá-lo parte a parte: “Que haja luz”, ele diz, então houve luz. Esse ciclo se repete até ele criar Adão, o primeiro homem, que vive no Jardim do Éden. Adão, feito na imagem de Deus, é o sucedâneo de Deus na criação, logo ele adota parte de sua autoridade. Deus dá a Adão o domínio sobre as “aves dos céus, e a todo o animal do campo”, e marca este domínio ao obrigar Adão — que não tinha nada para fazer mesmo — a dar um nome a todo tipo de criatura que existe.

Existem duas funcionalidades que os nomes exercem nesses versos do Livro de Gênesis. Quando Deus nomeia algo, ele traz algo à existência. Essa associação de Deus com a língua e seu poder criativo é embasada num famoso e obscuro evangelho de João: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. Este verso faz parecer que até Deus é subordinado ao “Verbo”, como se seu próprio nome o antecedesse. Por outro lado, mortais não são dotados do poder da criação. Nós somos dotados do poder da apropriação. E para Adão no Jardim do Éden, o ato universal de nomear é supor uma posse em cima da natureza. Essa função do ato de nomear, mitificada por Gênesis, serviu depois como um exemplo para a apropriação colonial de terras indígenas pelo mundo: coloque uma bandeira em algum lugar que você visitou, chame de alguma coisa nova, e é tudo seu.

Não é difícil imaginar o universo de No Man’s Sky como um novo Jardim do Eden virtual, repleto de mais animais que Adão teve tempo de conhecer. As faunas incivilizadas e as solitárias feitorias fortalecem a sensação de que você é um dos poucos a ter acabado de acordar na existência pela primeira vez. Mas No Man’s Sky constantemente te encoraja a extirpar e explorar, enquanto o Eden visava ser um paraíso permanente. O Jardim era resplandecente de luz, a primeira criação de Deus, enquanto No Man’s Sky te faz sentir a distância entre o seu personagem e o brilho no centro do universo. Durante todo o tempo que você gasta atirando raios lasers em plantas e rochas para transformá-las em recursos, o jogo não te permite manter a posse de planetas. E o seu inventário limitado não te deixa carregar mais do que você precisa para a tarefa atual. Você, frágil e necessitado, não é um conquistador; No Man’s Sky não é uma campanha. Se existe qualquer significado por trás dos nomes que você deixa para trás, não é elucidado pelo paradigma de Gênesis.

NO MAN’S SKY CONSTANTEMENTE TE ENCORAJA A EXTIRPAR E EXPLORAR

Em O Feiticeiro e a Sombra (1968), o primeiro volume da série de fantasia de Ursula K. Le Guin, nós achamos uma funcionalidade mais velha e mística para o ato de dar nomes. No mundo de Le Guin, criaturas humanas e diversas outras são tipicamente conhecidas por muitos nomes. O protagonista começa como Duny, depois se torna Gavião, e é rebatizado como Gued quando ele adquire idade suficiente. Porém, Gued é o seu “nome verdadeiro”, e qualquer um que o conhece por esse nome pode assumir controle de suas ações. Gued recorre a esse poder mais tarde, quando ele afasta o dragão Yevaud ao citar o nome dele: “Quando ele falou o nome do dragão, foi como se ele tivesse domado o enorme ser com uma boa coleira fina, apertando sua garganta”. A nomeação, aqui, funciona mais como um mecanismo de poder do que como meio de possessão. Mas a estrutura do ato é diferente. Para Adão, a posse era co-igual do batismo; para Gued, o poder vem do conhecimento do nome verdadeiro que, por vez, é co-igual da existência do dragão.

Esse conceito tem raízes em diferentes tendências de pensamento religioso, recorrentes em diferentes formas, que passam pelo Judaísmo, Ortodoxia Russa, e Islã. Nessa tradição, o dragão é Deus. Deus tem um nome de verdade, e quem sabe e fala esse nome impõe uma espécie de poder sobre Deus. Esse é o motivo pelo qual os Hassides são tão determinados em adquirir o padrão de Max Cohen em Pi: ao traduzir o padrão em letras e pronunciá-lo através da obscura arte da gematria, eles esperam trazer Deus à Terra para começar uma apocalíptica Era Messiânica. Esse cenário fictício ilustra a crença real no Judaísmo de que o nome de Deus de alguma forma contém a essência de Deus, e deve, portanto, ser tratado com cautela. Enquanto isso, uma seita de Cristãos Russos Ortodoxos chamados de “Adoradores-De-Nomes”, concedem um poder ainda maior ao nome de Deus. Para esses fiéis, “o nome de Deus é Deus”, e ao repetir isso ritualisticamente, podemos ganhar esclarecimento e melhor entendimento. Além do que, se o nome Dele realmente é Deus, então proferir esse nome é o mesmo que recriar o nosso criador continuamente.

A ponte que liga adoração-de-nome e No Man’s Sky é a matemática. Quando Georg Cantor desmonstrou, no final do século XIX, que existem infinidades diferentes, matemática e teologia começaram a se misturar de maneiras estranhas. Se nós pudermos provar que, por exemplo, o conjunto de todos os números naturais e o conjunto de todos os números reais são infinitos, mas que sempre deve haver algo mais real que os números naturais, logo, devemos reconhecer a existência de infinidades diferentes. Mas o que é essa “existência”? Uma infinidade específica possui uma realidade própria ou é uma construção do pensamento? Para a Escola de Matemática de Moscou, cuja lista de fundadores inclui vários Adoradores-de-Nome, ambas as respostas são verdadeiras: objetos matemáticos como infinidades diferentes são reais porque nós podemos nomeá-los. Nesse sentido, eles não são diferentes de Deus.

No Man’s Sky não é um jogo infinitamente largo, mas seu universo excede tanto os padrões de compreensão humana que poderia muito bem ser. Algumas pessoas argumentaram que o tamanho é irrelevante para julgar a qualidade do jogo, como se um jogo com 18 quintilhões de planetas procedurais não fosse mais interessante que um jogo com oito. Na minha opinião, este argumento não se sustenta porque o ser humano não é infinito, e nem nossas memórias ou imaginação são infinitas. A infinidade reside apenas nas nossas equações, e pode apenas ser aproximada através das tecnologias que fazem o que nós não conseguimos.

A equação no núcleo de No Man’s Sky que gera a inimaginável diversidade do jogo oferece tal aproximação, mas é dependente do jogador para fazer isso por completo. A maioria das coisas as quais nós dissolutamente referimos como, o universo de No Man’s Sky, existe só como uma forma puramente virtual, potencial — Até os próprios criadores do jogo não sabem o que está lá, porque o que está lá ainda não está “lá”. Só existe como uma pura variação de um algoritmo. Não é até que o jogador acabe surgindo no lugar certo, seja pela loteria de pontos de spawn ou por exploração deliberada, que os sistemas correspondentes são gerados — e o jogador pode ser qualquer um. Você é o catalisador ontológico.

VOCÊ É O CATALISADOR ONTOLÓGICO

Isso põe uma reviravolta democrática na teologia da nomeação, e cria um novo modelo com poucos precedentes. É um modelo de pura descoberta, imaculado de possessão ou poder. Nomear alguma coisa em No Man’s Sky não é uma questão de dizer “Eu estive aqui primeiro”, ou “Isso é meu”. É uma afirmação limpa: “Isso existe”. E “isso”, individualmente separado do processo que o criou, é o que você ajudou a determinar ao nomeá-lo. Um jogador que aterrizará num futuro distante em um planeta que você nomeou terá uma experiência diferente do ambiente dependendo se você o nomeou “Céu”, “Inferno”, ou “Harambe”. Então quando você deixa o sistema ou desliga o jogo, os objetos que você atualizou não deslizam de volta para o éter virtual porque eles não são mais os mesmos objetos. E a marca da mudança, que você escolhe deixar, é um nome.

Isso deixa um espaço para Deus no cosmos de No Man’s Sky? Se um deus é um criador, logo todos que jogam o jogo são deuses e o apostolicalmente barbudo Sean Murray é meramente nosso pastor. Ou talvez Deus está contido na própria equação, como esteve no padrão de 216 dígitos de Max Cohen. Eu não sou nenhum Cohen, mas minha convicção pessoal é a de que Deus está em todos os lugares desse jogo, tal qual a equação. Nós não precisamos ansiar pelo brilho no centro da galáxia, pela luz que permeie o cosmos. O nome para tal crença é panteísmo. Porém, se Deus é tudo, esse nome também é. Como o universo desse jogo generoso, ele fala, e diz que tudo novo é um retorno. Não importa se você não joga No Man’s Sky, porque você é, e você tem, e você irá perlongar. Chame-o de esboço, se quiser. Mas chame de algo.

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Gabriel Thomé
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Game Designer de papel e caneta, às vezes de mouse e teclado também.