Sonhando num quarto vazio

Gabriel Thomé
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Metal Gear Solid 2 é extremamente irracional.

E eu adoro. No final das contas, como muitos dizem, ele é bem caricato. E… até certo ponto, bem assustador.

Quando tinha quatorze anos e um QI do tamanho da minha altura (eu era uma criança grande), me peguei em um estado de confusão enquanto assistia o filme “Jogos Patrióticos”.

Digo — que que tá rolando? Tem tantas reviravoltas — todas elas com nexo — e, até certo ponto, é ridículo. Esses filmes sobre terroristas e armas nucleares e/ou terroristas com armas nucleares… são tão sérios que chegam a ser ridículos.

Tendo vinte e dois anos e morando num apartamento precário situado ao norte de Tóquio, fiquei profundamente confuso durante o final de Metal Gear Solid 2.

Fazendo uma alusão a Cypher em “Matrix”, que responsabilidade.

Não sabia ao certo se era um jogo bom ou ruim.

E agora, espero que Metal Gear Solid 3 conte com uma batalha contra o fantasma ninja do Gray Fox em cima de um trem bala em direção a um local de aterragem alienígena em Yukon.

Como eu fui de um extremo a outro? Simples, rejoguei o jogo, sem pular as cenas de história. Reli um pouco de literatura japonesa. Achei uma foto da Yoko Ono numa Rolling Stone antiga, recortei e colei na minha parede. Sentei, olhei para a Yoko e pensei.

Em muitas entrevistas, Kojima afirma ter concebido a história de Metal Gear Solid 2 lendo um artigo sobre o processo contra o Napster. A ideia do governo dos EUA querer impedir o mundo de compartilhar música soou para ele como um passo na direção do mundo de uma ficção de controle mental. Ele teve essa ideia ao mesmo tempo que jogava a cópia de Pokémon Silver do amigo do seu filho. Hideo Kojima, pelo que me disseram, tem todos os pokémons de todas as versões de Pokémon existentes. A maioria deles está nível 100.

Metal Gear Solid 2 demorou pra ser desenvolvido porque Kojima gastava cerca de seis horas por dia jogando Pokémon Crystal, segundo ele próprio. Ele o chamava de seu “emprego de meio período”. Talvez tenha sido uma piada, talvez não.

Mas, esse é o tipo de cara que queremos que faça nossos jogos?

Digo, ele senta e… fica jogando o dia todo!

… Exatamente.

Como um admirador do jogo que sou, admito: A história de Metal Gear Solid 2 é tão esburacada que parece uma sequência de piadas ruins.

Ainda assim, considero-o cerca de 100 vezes mais “literário” que a maioria dos RPGs garbosos — mais que Final Fantasy X, que lida com temas de pai e filho de forma surpreendentemente madura.

Metal Gear Solid 2 pega as convenções dos videogames e as retorce. Ele dilacera o gênero de espionagem e o remonta de volta.

Digo, pelo amor de Deus, uma das pessoas monitorando o nosso herói em sua missão é sua noiva, que não para de falar dos filmes que assistiram juntos. Uma música de piano cafona começa a tocar ao fundo.

A Eletronic Gaming Monthly imprimiu uma imagem na sua resenha. Comprei a edição por dez conto numa livraria de literatura estrangeira em Tóquio e li a resenha.

“Uma música de piano cafona chega a tocar ao fundo durante esse interlúdio romântico, aff”, dizia a legenda.

Pensei comigo mesmo: paguei dez conto pra ler uma resenha de um pessoal que não “entendeu” a piada. Claro, eles deram uma pontuação alta o suficiente. Porém, a pontuação não importa aqui. O importante é a história, ou mais especificamente, a iniquidade do julgamento em cima dela. Portanto, eu pergunto:

Seria eu a única pessoa que a entendeu?

Seria eu a única pessoa que achou o jogo ousado e aventureiro? Seria eu a única pessoa que pensou “Se Haruki Murakami escrevesse um drama de espionagem ele seria assim?”?

Kojima fez o primeiro jogo pós-moderno.

Tá, Earthbound foi o primeiro jogo pós-moderno. Na verdade foi Mother, se você quiser se apegar às tecnicalidades.

Ninguém critica Earthbound. Eles sabem que seu propósito é ser esquisito e irracional.

As pessoas criticam Metal Gear Solid 2. Não sabem que ele está no mesmo barco que Earthbound.

Isso é o que faz dele tão brilhante.

Metal Gear Solid 2 não é uma continuação do primeiro. O primeiro teve sorte de não ser pós-moderno demais pra cair em esquecimento. Kojima só está deixando suas tendências mais literárias emergirem agora.

Por que eu chamaria o primeiro MGS de “agradavelmente pós-moderno”? Vejamos: ele é um drama militar semi-realista sobre terroristas com armas nucleares e reféns — e com uma curiosa adição do protótipo do primeiro tanque robotizado do mundo, o místico mais poderoso do mundo, um xamã Esquimó gigante e um ninja ciborgue.

Tudo que a sequência faz é empurrar os limites um pouco além.

O célebre escritor japonês Haruki Murakami falou uma vez sobre a criatividade do povo japonês. Por mais que quisesse, não pude ouvi-lo falar sobre isso pessoalmente. Então deixe-me parafrasear suas ideias principais.

“O japonês, por natureza, não é criativo. Aqueles que são, são muito criativos. Aqueles que querem ser criativos pois não querem trabalhar numa empresa só conseguem imitar os que são verdadeiramente criativos.”

Observe qualquer um das inúmeras cópias de Gundam(n). Observe Yu-Gi-Oh, Digimon e Monster Rancher (os desenhos) e compare com Pokémon.

De certa forma, acontece até com Sonic the Hedgehog e Mario.

Legend of Dragoon e Final Fantasy VII.

O Mother original e o Dragon Quest…?

Mother traçoua linha dos jogos pós-modernos. Ele era obviamente pós-moderno. Mother é uma xícara de chá que a Yoko Ono cortou pela metade. É a música “Kangaroo Pocket Calculator”, de Takako Minekawa, cuja letra é: “47 é um número mágico. 47 mais 2 é igual a 49. 47 vezes 2 é igual a 94. 49 e 94. 94 e 49. A relação entre 47 e 2: É… mágica.”

Ouvindo isso, a gente pensa: “Engraçadinho. Fofo.”

Metal Gear Solid 2 é outro nível de pós-modernidade. Metal Gear Solid 2 é o remix de sete minutos do Yasuharu Konishi da marcha de um minuto “Filho do Godzilla”. Por quatro minutos, ouvimos uma mulher brasileira narrando um filme do Godzilla em português, com sons de ambiente ao fundo. Por três minutos, ouvimos a marcha do Godzilla, com batidas eletronicas ao fundo.

Ouvindo isso, a gente pensa: “Mas que porcaria é essa?”

Tem algo de… errado nessa cena. Você não entende o porquê. Talvez nem deva.

Não ousarei em dizer que Metal Gear Solid 2 foi “esculpido de forma impecável”. Sua história não foi “bem construída”. Seu propósito não era esse.

Essa é a natureza do pós-modernismo: atacar os dogmas sociais/literários que foram seguidos desde o início dos tempos: “Todas as histórias devem fazer sentido, todo amor deve ser verdadeiro, todo final deve ser feliz e fácil de entender.”

MGS não é fácil de entender. Ele mergulha no absurdo. Ele lhe fará levantar as mãos para cima e gritar, “Mas que diabos?!?!”

O começo de Metal Gear Solid 2:

Um espião solitário pula de uma ponte, sobe num transatlântico e começa uma missão.

O final de Metal Gear Solid 2:

Um robô gigante, um superespião acorrentado, um cara com uma espada, o Doutor Octopus, uma moça com uma arma gigantesca, todo mundo no convés de um navio à vista do horizonte da Cidade de Nova Iorque.

Sinceramente, foi x-men demais pro meu gosto.

Ainda assim, a confusão não me fez ficar desagradado com o jogo. As pessoas que não gostam de Metal Gear Solid 2 porque não o entenderam me lembram do meu pai. Ele não suporta assistir filmes legendados.

Eles me lembram de alguns alunos de inglês que tive no Japão. Temem errar. Temem não entender.

A pós-modernidade agride as pessoas que temem o que não entendem. Ela diz “Ei, você aí! Se você odeia tanto esse jogo, por que continua jogando?”

(Ok, a jogabilidade é perfeita. Já falamos disso.)

Pode-se dizer que o que te faz continuar jogando são os elementos espalhados naquela bagunça toda que te envolvem.

Foram tais cenas individuais que me fisgaram. Lutar contra o Vamp — um vampiro, cacete, um vampirooo — usar o rifle de alta precisão, derrubar o caça. Lutar contra o Fatman — um gordinho-bomba que anda de patins, pelo amor de Deus! Naquelas cenas, me senti num filme de ação.

A cena toda do papagaio. A cena que você mais odeia. Da primeira vez que assistiu, não conseguiu virar o rosto, conseguiu? A confissão do semi-incesto (foi com a madrasta, gente — não era mãe). As inquietantes analepses ao primeiro jogo. Os interlúdios românticos…

DESLIGUE O VIDEOGAME AGORA!!!

Isso é literatura japonesa moderna, pessoal.

Conforme os desenvolvedores japoneses se aprimoram em fazer jogos que são melhores que filmes, pode apostar que 25% deles serão assim.

Recomendo que comece a ler. Haruki Murakami é um bom começo. Passe na Borders, pegue o Caçando Carneiros e veja se ele consegue te envolver.

E de novo, tem uma perguntona a ser feita. Uma resposta negativa pode me fazer parecer incorreto e idiota. Tal pergunta é: O Kojima quis que o jogo fosse desse jeito?

Acho que o Kojima é um dos raros japoneses “criativos”. Ele é um Haruki Murakami, um Akira Toriyama, um Yu Suzuki, um… atrevo-me dizer… Shigeru Miyamoto.

Caso não tenha entendido, defendo que:

Kojima quis que Metal Gear Solid 2 fosse esquisito do jeitinho que é.

Aqui está a minha prova:

Haruki Murakami diz que seu romance Crônica do Pássaro de Corda, começou com uma ideia: um cara na cozinha fazendo espaguete. Pra onde essa história iria nas próximas 607 páginas? Bem, ele não sabia até começar a escrevê-las. Isso é pós-modernidade de estilo livre, que funciona quando você

Já escrevi histórias assim e elas ficaram legais. Uma delas até me deu uma bolsa de estudos para uma conferência de escritores há um tempo. Então esses métodos de Pássaro de Corda funcionam com histórias ou romances, onde uma única pessoa é responsável por ela.

Eles não funcionam, porém em situações coletivas. Eles não funcionam em projetos jornalísticos onde você quer detalhar os modelos de moralidade de reality shows e as suas colegas são universitárias que querem “lacrar” em cima de anúncios de lingerie — “Eles são feitos para homens! Olha só! Eles mostram mulheres vestindo lingerie!”

(… minhas colegas se chamavam Holly, Chrissy e Angie).

Algo me diz, vendo que mais de uma dezena de pessoas estiveram por trás de Metal Gear Solid 2, que o pós-modernismo foi realmente bem pensado.

De novo, Kojima, sendo o capitão da sua equipe, pôde fazer mais do que queria do que eu pude numa sala cheia de patricinhas e garrafões de água.

Elas adoram garrafões de água. Adoram dar uma golada e fazer aquele barulho de plástico estalando quando estou tentando falar alguma coisa.

Mas isso já é outra história.

Enfim. Pós-modernismo.

Preste atenção em Shigesato Itoi, o produtor de Mother e Mother 2.

O pós-modernismo nesse caso é uma sátira. “Sátira? Num jogo?”, pensaram as pessoas.

O pós-modernismo de Metal Gear Solid 2 é a sua estrutura.

Veja bem, o Snake é um sem-amigos até o final de MGS1. Não importa se a Meryl ou o Otacon sobrevivem, ele deixa de ser solitário no final.

Em Metal Gear Solid 2, vemos um cara que é sem amigos, mas de um jeito diferente. Sim, o Snake está sempre lá — e talvez fosse finalidade do Kojima fazer o Snake ser ainda mais amado não nos deixando controlá-lo. Talvez fosse intenção do Kojima fazer-nos sentir a imensa diferença entre os dois personagens. O Snake é o estereótipo do militar casca grossa. Raiden é só um cara.

Raiden me lembra dos dois personagens principais do filme “Amores Expressos”, do Wong Kar-Wai.

Lembre-se de quando a Rose diz para o Raiden (paráfrase): “Fui no seu apartamento. O seu quarto é vazio. Não tem fotos, pôsteres — só uma cama.”

E Raiden se defende: “Só uso aquele quarto para dormir.”

Kojima está dizendo algo sobre alguma coisa com Metal Gear Solid 2 e ele diz com tanta astúcia que você talvez nem perceba.

E sobre que é essa tal “coisa” que ele diz?

O exército dos EUA?

Claro, vou engolir essa. Hideo Kojima leu o que tinha que ler. E eu não to falando só de Tom Clancy.

A “coisa” sobre qual ele fala são os agentes das Forças Especiais dos EU? Os Navy SEALS? Eles seriam o tipo de gente que teria um quarto vazio “só pra dormir”?

Claro, vou engolir essa também.

No entanto, se levarmos em conta que Metal Gear Solid 2 é só uma reconstrução do Metal Gear Solid que por sua vez é só um jogo, podemos dizer que:

Snake é uma pessoa.

No Metal Gear Solid, jogamos com um tal de Snake.

Em Metal Gear Solid 2, jogamos como Raiden, um novato, um solito num quarto vazio em casa e que está operando numa missão de treinamento baseada em acontecimentos de outro jogo.

Raiden — Jack — é um personagem de videogame.

Jack se enquadra na descrição de um personagem de videogame?

Se Jack é um personagem de videogame, quem são os “Patriots”? Os jogadores? O que tudo isso tem a ver com o Napster?

Mais importante, se um personagem de videogame tivesse um quarto, como ele seria?

Como é o quarto do Mario?

Como é o quarto do Sonic?

Aliás, como é o quarto de uma pessoa de carne e osso?

Por que você teria pôsteres na parede do seu quarto?

Achei essa linha de raciocínio muito profunda. Quando joguei Metal Gear Solid 2, morava num apartamento em Tóquio do tamanho do meu armário em Indianápolis; no meu cômodo único cabiam apenas um futon e uma televisão de nove polegadas no chão.

Na minha parede não tinha nada além da etiqueta da Muji que veio no meu travesseiro, que por acaso eu o tinha por… Eu nem sei o porquê. Faço coisas assim, às vezes. Vivo uma vida pós-moderna. Jogar Metal Gear Solid 2, pra mim, é dormir — sonhar — num quarto vazio. “Sonhando num quarto vazio”, é assim que chamarei meu modelo.

Existem dois requisitos para se sonhar num quarto:

1. O sonho

2. O quarto vazio em que você se vê acordando.

Nem o sonho nem o quarto vazio são inteiramente “reais”. O “sonho” não é real porque estamos no controle dele, mas parece que não estamos. O “quarto vazio” não é real porque podemos colocar qualquer coisa nele. As coisas meio que ficam plásticas quando não as personalizamos. Essa é a reclamação da Rose no Metal Gear Solid 2. Ela acha que posteres ou traços de personalidade fariam do Jack mais “real”.

Nesse sentido, podemos comparar Metal Gear Solid 2 com Ico. Podemos dizer que a natureza da realidade não é explanada nem em Metal Gear Solid 2 nem em Ico. Ico me lembra de a parte do “End of the World” [fim do mundo] no romance Hard-Boiled Wonderland and the End of the World de Haruki Murakami.

A “natureza da realidade” não é explanada no “End of the World” de Murakami — um homem num vilarejo em que unicórnios são rebanhados todas as noites, em que ele e uma garota tem que “ler sonhos velhos” em crânios para descobrir seu “eu” perdido, seus “sonhos” perdidos e sua sombra perdida, literalmente amputada do seu corpo assim que ele adentra.

Essa história tecida na história da “Hard-boiled Wonderland”, onde um contador futurista foge de gânguesteres e demônios kappa no abaixo do sistema de metrôs de Tóquio, procura livros com uma bibliotecária bem-apresentada e passa seus últimos dias na Terra botando pra lavar roupas que não são suas numa máquina de lavar.

“Hard-boiled Wonderland” é repleto de detalhezinhos — gânguesteres do tamanho de gorilas, roupas sujas demasiadamente rosas de uma gordinha, a coleção de uísque estilhaçada do narrador.

“The End of the World” é muito avulso, com um narrador que fala em frases curtas e não contraditórias.

Normalmente, na literatura japonesa, existem dois tipos de pós-modernismo: O “Hard-boiled Wonderlands” e o que é mais “The Ends of the World”.

Chamá-los-ei, respectivamente, de “sonhos” e “quartos vazios”. O que pode ou não ser irônico — a parte “End of the World” de Hard-Boiled Wonderland and the End of the World é de fato o mundo dos sonhos do narrador. No meu exemplo, é um “quarto vazio”. A “Hard-boiled Wonderland”, a realidade do romance, é o que chamarei de “sonho”.

Nesse exemplo:

Metal Gear Solid 2 é um “sonho”.

Ico é um “quarto vazio”.

Ambas são obras-primas pós-modernas do seu jeito único.

Agora, se os seus sonhos estão mais pra Ico que para Metal Gear Solid 2, meus parabéns. O termo “sonho” não se aplica aos seus sonhos, ou aos sonhos de alguém em específico. Ao se deparar com um termo usado para descrever algo pós-moderno fique ciente de que ele será usado de forma pós-moderna.

O quarto vazio é um quadro em branco. Dá pra pôr qualquer coisa num quarto vazio.

Até mesmo um menino chifrudo guiando uma princesa por um castelo. Até mesmo uma língua que não existe.

Um sonho, entretanto, sempre se pauta na realidade. Sonhos têm algo que… não são bem regras. Nem estrutura. Nem mesmo “lógica”. Tudo que precisam para não nos acordar é uma percepção de realidade.

Sonhos têm terroristas. Sonhos têm presidentes, reféns.

Já chegou a sonhar que estava presenciando um assalto a banco? Eu já.

Nos sonhos os terroristas/reféns têm ligação com vampiros, se bobear.

Sonhos misturam o real e o irreal. Sonhos misturam qualquer coisa que está nas nossas mentes. Dá pra pegar no sono numa poltrona, semilendo O Senhor dos Anéis e semiescutando o jornal da noite da NBC. Pode ser que Tom Brokaw esteja falando sobre um grupo de reféns em Israel e em seguida sobre uma descoberta da medicina. Dá pra cair no sono e ouvir sua voz dizendo: “Ninjas sequestraram o presidente às seis da manhã”. Isso já aconteceu comigo, uma vez (só que eu não tava lendo O Senhor dos Anéis).

Os seus sonhos chegam a uma resolução, sem erros, antes de acordar?

Os meus não.

Ico é um garoto num quarto vazio. Ele é um personagem de videogame que não sabe que é um personagem de videogame. Não somos levados a olhar para ele como um personagem de videogame. Ele é o Ico.

O jogo nos absorve. Já ouvi muitas pessoas dizerem “esqueci que estava jogando um jogo”.

Ora!

Metal Gear Solid 2 reverbera tanto em si mesmo que começamos a achar “Nossa, mas isso aqui é ridículo!”

Você já teve um sonho esquisito? Tipo, um sonho esquisitaço?

Já sonhou que estava num elevador subindo pela lateral de um arranha-céu e acordou depois de pular pelo vidro porque um helicóptero estava atirando em sua direção?

Você sempre vai acordar antes de cair porque sua mente não possui memórias da morte, logo não pode recriá-la. Nossos sonhos usam peças cognitivas das quais não sabemos que eles fazem uso.

Metal Gear Solid 2 usa clichês de drama de espionagem, cenas de ação e terrorismo de telejornal para te contar uma história.

“Bem, não é o tipo de história que quero ouvir!”, você pode estar exclamando.

Tudo bem. O quão interessante você quer que seu drama de espionagem seja?

“Metal Gear Solid 2 é uma anomalia!”, disseram alguns.

O que esperava? “Reviravoltas surpreendentes”? Queria “segredos”?

Bem, ele te deu uma pancada de segredos, não deu?

Lembre-se da cena de “confissão” do Otacon. Lembre-se do papagaio. E pense:

Já sonhou que era um caubói/atendente de posto num deserto futurista, acabou sofrendo assédio sexual numa entrevista de emprego e foi forçado a transar com a CEO, que felizmente é a Michelle Yeoh?

Já sonhou que gritava e corria da Michelle Yeoh enquanto ela queria transar com você?

Bem, às vezes o pós-modernismo nos mostra o que não gostaríamos de — ou não estamos prontos para — ver.

Como o Otacon chorando no corpo da sua irmãzinha porque ele fez sexo com sua mãe. Bem no meio de uma confusão terrorista com reféns e armas nucleares.

A arte imita a vida, não é mesmo? Talvez.

Alguém diz que “Sintonia de Amor” imita a vida dela.

Outra pessoa me diz que “Sintonia de Amor” é arte.

O pós-modernismo trata de algo diferente. Que não é a lógica. Deixe que Final Fantasy VII e Chrono Cross cuidem da lógica [foi uma piada]. O pós-modernismo não liga pra lógica. Ele liga pra outra coisa.

Eu poderia explicar. No entanto, precisaria revelar o grande segredo.

Tá, eu não sei pro que o pós-modernismo liga. Mas esse não é o ponto. O ponto é que toda essa teoria de “Sonhar em um Quarto Vazio” pode parecer só uma conjectura para muitas pessoas. Concluo que a maioria das pessoas descartaria essa teoria. Elas dirão “Eu achei uma aberração. A história era horrível. Poderia ter sido tão melhor. ‘literário’? Não era pra ser literário; era pra ser um jogo.”

Já me deparei com pessoas assim na vida real e tentei explicar algumas coisas pra elas. São essas as pessoas que dizem que a “história” é “uma aberração” e que “não era pra ser literário”. Essas também são as pessoas que ainda falam sobre o relacionamento de Zack e Cloud no Final Fantasy VII. Essas são as pessoas que se esforçam pra convencer seus companheiros e amigos de que jogos são uma forma de entretenimento legítima.

Estou confuso, caro gamers, pois a mesmo tempo que querem que os jogos sejam aceitos como forma legítima de entretenimento, não aceitam que eles podem ter aspirações artísticas. Isso não vai contra a tendência do homem de exaltar como arte aquilo que ele não entende? O que Mark Twain diria sobre isso? Quem se lembra do “Camelopardo do Rei” em As Aventuras de Huckleberry Finn?

Se Mark Twain estivesse vivo hoje ele com certeza estaria fazendo jogos que dessem dinheiro. Que fizessem as pessoas xingar umas às outras em fóruns. Que todo mundo jogasse e ninguém entendesse de verdade.

Com a atual onda de consoles, veremos muito mais jogos feitos por muito mais gente, muitas no Japão, muitas em outros lugares. Nós ainda não vimos o primeiro Mark Twain dos videogames — embora Mother 2 e Metal Gear Solid 2 tenham chegado perto disso. Infelizmente, não tem muita gente esperando a vinda desse gênio do design.

Você acha que o pessoal da época da Murasaki Shikibu reclamou do “primeiro romance do mundo”, O Conto de Genji, dizer que “Livros devem ser divertidos e não ficar fazendo esses comentários políticos sutis sobre o período Heian!”?

Jogos são uma forma de entretenimento jovem. As crianças que cresceram com eles estão adultas. Muitas são cegas à ideia de jogos artísticos, assim como nossos pais são ao Eminem e como os pais deles eram aos Beatles e como os fãs dos Beatles eram ao conceitualismo de Yoko Ono. Graças a Deus as crianças de hoje enxergam a genialidade de Pokémon. Um deles foi o primeiro Tolstói dos jogos.

Mas isso já é história pra outro dia.

Aqui, no final desse ridículo “texto” pós-moderno, gostaria de tomar partido de algo: Sou um ávido defensor da Nova Escola de jogos. Sim, consigo zerar Gradius III com uma vida. Sim, meu jogo favorito é Super Mario Bros. 3. Sim, eu jogo Street Fighter II Turbo Hyperfighting e Gunstar Heroes ao menos duas vezes na semana. Sim, gosto mais de Landstalker que de Final Fantasy X. Isso não importa. Tenho esperança no futuro. Talvez mais do que você.

Ou eu só tenho uma queda pelo Colonel.

DESLIGUE O VIDEOGAME AGORA!

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Gabriel Thomé
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Game Designer de papel e caneta, às vezes de mouse e teclado também.