O realismo e a imaginação do surreal.

Matilde Magro
Community Lotus
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7 min readJul 27, 2021

Eu escrevo desde que comecei a ler. Mal ou bem, é talvez a capacidade que nunca parei de desenvolver. E questiono muito o papel social da literatura, da escrita de argumentos para filme ou televisão. Foi talvez a primeira vez que verdadeiramente assisti ao poder da ficção quando vi o caos que era a desinformação e a paranóia no tempo do governo de Passos Coelho, Obama, Merkle, e tantos outros abutres da boa vontade humana. O poder da narrativa, e como se consegue construir ideias baseadas em nada de concreto, muitas vezes vindas de nada mesmo, mas usado como uma ferramenta da utilização da imaginação humana para a gestão social.

Foi quando escrevi para a revista Metrópolis, com uma coluna de análise cinematográfica, que percebi a ideia latente que mais que ideias de elites ou poderes financeiros, a ficção comanda tanto a opinião pública como na generalidade dos pensamentos solitários do indivíduo, humano e cidadão, e que também age na vida individual de cada um de nós.

A história da literatura diz mais sobre a história da humanidade que a ciência humana da história propriamente dita. É um fenómeno interessante, a introdução do cinema, da televisão e da ficção em vídeo, e outro mais recente do Reality Show. O espectáculo e o espectador têm uma relação simbiótica de associação livre, ou seja, a escolha de nos identificarmos com devidas correntes ou mesmo filosofias antiquíssimas, muitas vezes vem de uma identidade primária a qualquer personagem ou linha de enredo que gostámos, queríamos ser, ou encarnar. Há quem leve isso demasiado a sério.

É muito interessante a vaga anti Romcom, ou dito de forma brejeira "dos filmes de gaja", porque na verdade o irrealismo da romcom bate directamente nas dificuldade que se criam nas relações pessoais menos saudáveis, mais patriarcais ou violentas, não se encaixa nessas dificuldades, porque no romcom o "mau" perde sempre, é certamente humilhado, falha.

Nas realidades das relações saudáveis, amáveis e boas, parecemos estar a viver uma história cómica e romântica, vivemos felizes, mesmo com as devidas dificuldades acrescidas às relações pessoais, sejam elas de amizade, familiares ou românticas. A ideia do irrealismo romântico, vem de uma atitude feminista na verdade, e o romcom evolui para centrar a protagonista feminina quase numa tragédia da solidão para o companheirismo. Algures na história do feminismo isso tornou-se chato, porque há mulheres que querem ser independentes de relações, há mulheres que querem salvar-se a elas próprias e há mulheres que querem viver a solidão. Que as ideias patriarcais do companheirismo de casal, destrói a ideia da mulher forte e com independência. É algo que discordo absolutamente, não é isolando a mulher que se consegue a igualdade, mas sim mostrando o caminho da igual cooperação. Algo que o romcom é mestre.

Acho, principalmente, que a Romcom age como crítica social muito dura, e muitas vezes catalisadora de mudanças sociais necessárias, desde a aceitação da homossexualidade á aceitação de casais "interraciais", a abordagem inicial da aceitação positiva destas questões sociais começaram pela Romcom. O cinema de terror e tristeza, a literatura de terror e tristeza, vive da angústia social como o médico de quem está doente, mas ao contrário do médico não tende a resolver a doença, mas a perpétua-la, ajuda a criar no imaginário humano a possibilidade do "mal necessário", que leva á depressão, á tristeza e á chamada tendência negativa do pensamento. O romcom age como um antídoto, a um relaxamento que pode tudo correr bem, queiramos acreditar no amor e na cooperação.

Proponho que o romcom é a crítica mais construtiva á sociedade e às suas relações pessoais, pois é no romcom que vemos espelhados o que temos de resolver para conseguirmos ter relações compassivas.

O romantismo literário tem sido atacado por várias frentes, por tentar criar uma ideia da sociedade do bem absoluto que não está em consonância com as realidades do dia a dia comum, mas vou mais longe: o romantismo literário eleva-nos a um lugar conhecido de relaxamento, de compaixão absoluta por tudo, é uma forma de iluminação. Foi só a partir de Duchamp é que se aceitou largamente, ou publicamente, que a arte serve como crítica, até aí haviam correntes de críticas sociais através do belo (Bosch, como exemplo, entre muitos outros), mas a Arte servia primeiramente a função de mostrar o belo. Gauguin foi um activista da arte da diversidade humana no contexto Europeu, criticando o imperialismo e mostrando a beleza do corpo nu nativo, o considerado selvagem que era mais harmonioso que o nojo da sociedade Europeia da altura, e junto dos nativos foi onde não só encontrou o amor, mas o romantismo. Um cómico e romântico, anti-imperialista, criticado por ser colonial de qualquer forma.

Vários artistas ao longo da história da arte mostram-nos como o amor se encontra na paisagem, nas configurações naturais da sociedade, na beleza da chamada natureza morta, ou no olhar vago e sorriso incerto de uma Mona Lisa ou do olhar maroto da rapariga de Brinco de Pérola, que nos criam a curiosidade de saber mais sobre a história da beleza humana, e criam acima de tudo compaixão por aquelas pessoas. Defender a integridade moral da Mona Lisa, não se sabendo exactamente se era boa pessoa ou não, nem isso interessa. É belo, provoca amor.

A frase a que mais me agarrei e que me encaminhou para a arte quando era miúda foi de uma professora de EVT extraordinária que tive em Macau, que dizia que é arte aquilo que revela a verdade do amor sobre forma de ferramentas criativas.

Por isto, acho que a imaginação humana tem levado um rombo estes últimos séculos. Principalmente considerando que desde que foram abertas as portas às "massas" sobre criação, produção e desenvolvimento e critica de conteúdos, que muitas coisas têm vindo a mudar no que se considera arte, há muita gente a posicionar-se na arte fofinha, mais considerada artesanato que outra coisa, com foco nas coisas positivas, no imaginário do mágico belo.

Estava no CCB á frente de uma obra da Paula Rego e de um lado os eruditos usavam as palavras "genial" e "innenarrável" e do outro tinha uma família de origens claramente não eruditas, cujo pai das crianças aos berros e marido da senhora que estava com uma cara visivelmente chateada de ali estar, depois de largos minutos de observação simplesmente o homem diz: "no meio disto tudo, o rato está a mamar na teta da vaca". Nisto, eu que estava na onda do "eruditismo elitista" porque sentia-me especial por isso, consegui ver o horror para além da técnica, fiquei mal disposta e tive de seguir caminho. Vi a falta de amor que estava ali espelhada, claro objetivo da Paula Rego, e o horror deixou de ser belo, passou a deixar-me nauseada, incomodada, não quis continuar a ver aquilo. Desde aí que fujo da Paula Rego e digo sempre que sim com a cabeça quando á minha volta dizem que é das melhores artistas portuguesas. Mas é nesses momentos que eu tenho uma crise existencial, e sinto uma necessidade enorme de ir passear num bosque ou olhar para um Monet, ou ir ver uma telenovela... Não porque não a ache muito boa naquilo que faz, mas porque aquilo que eu considero arte, foge dos princípios que se constroem actualmente sobre a forma artística, que também permite que Koons seja considerado de alguma forma válido ou bom. Isto porque associo a arte á construção imaginativa da sociedade, e recuso aceitar o cinismo de uma sociedade de horror cujo destino apocalíptico não tem retorno.

Por isto, estudei muito Jung e o seu trabalho, e na última entrevista que Jung deu, estava já há décadas a viver com a sua esposa numa cabana de pedra isolada escondida no meio de uma floresta qualquer, e em tal entrevista diz que o resultado final da investigação da sua vida é que Deus é a beleza e o amor, e o que a restante sociedade e viver entre os eruditos e as consideradas elites não lhe interessava porque não viam o belo.

O estudo de Jung, apesar das concepções erradas da pop psychology e das correntes actuais da psicologia cognitiva, centra-se sobretudo na total ausência de condicionalismos, absolutamente contra as ideias de Skinner e Pavlov, mas num fluxo de co criação da realidade partilhada assente em sonhos, símbolos e o poder da imaginação, em constante reação a reações anteriores, que actuam sobretudo como resultado do medo. Está cada vez mais assente para mim, que a capacidade simbiótica do espectáculo e do espectador, mesmo no que é o espectáculo da sociedade humana espelhada na literatura, no cinema, na música e na televisão, há uma inerente capacidade de ver o bem e ir para além do cinismo do está tudo errado, que não é mais que o radar normal social e mental do que tem de ser resolvido.

As ideias de não tolerância da religião assentam sobretudo na exclusão do "eu não quero um deus assim". É o limite da imposição sobre a imaginação, que nos impõe um deus mau e que justifica claramente a maldade humana, um ser humano feito á imagem da perversão. O Budismo, as várias religiões que constituem o Hinduísmo, e as variadíssimas religiões deste mundo fora que assentam numa ideia de benevolência e compaixão (larga maioria espiritual) por outro lado, dá-nos a posição de acreditar num mundo melhor em que o horror não é regra mas exceção.

É por isso que sou assim, meia antagónica, meia gozona das "clarezas" e "lucidezes" e "iluminações" do mal necessário, da tolerância do intolerável e da ideia de uma imaginação humana e natureza humana inerentemente defeituosa. Porque o voto é sempre no "menos mau" e a ideia de menos mau muda muito consoante a temática cultural da literatura corrente ou das narrativas científicas.

O imaginário não é bem colectivo, como alguém diz sobre Jung verdadeiramente de forma errada, os símbolos são partilhaveis, é mais isso. A ideia simbólica de uma sociedade utópica e evoluída não está estabelecida, porque a literatura ainda não a estabeleceu, porque tem agido como crítica e antagonista das ideias do bem, como objectivo impossível, dentro da capacidade do autor torturado e não valorizado, mas influenciador da opinião pública. Uma pessoa tipo Jordan Peterson aproveita-se disso para questionar a sociedade e os seus horrores e dizer ou insinuar que ainda é pior que isso. Um outro tipo Alain de Botton que passa o seu tempo a dizer que o amor já não existe ou nunca existiu, ou que existe nas pequenas coisas quase invisíveis. Mas eu olho pela janela ou para o meu gato ou ao espelho, e vejo-o ali, tocável, concreto.

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