O Analfabetismo e o Fascismo na Arte

Letícia Kling
PULPLACE
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5 min readSep 13, 2017

Pois então, resumo básico, o Santander fez uma exposição intitulada Queermuseu, que foi fechada devido aos protestos violentos apoiados pelo Movimento Brasil Livre, que partilhava da opinião de que as obras eram agressivas por retratar cenas esdrúxulas e serem um desrespeito à moral e à religião. Essa situação envolve muitos temas que valem nossa reflexão, e vou tentar pontuar o que mais me soam relevantes em tópicos:

Analfabetismo

A gente sabe que saber ler, escrever, fazer uma continha de soma e subtração não é o suficiente, afinal, de quê adianta isso se você não souber interpretar uma questão, um texto, um poema, uma pintura? Infelizmente o ensino brasileiro está longe de conseguir transformar seus alunos em seres pensantes e capazes de absorver, ou ainda melhor, saber se expressar de uma maneira em que dominem a linguagem escrita, falada, pintada, esculpida. Estamos sentindo o efeito dessa educação precária agora. A aula de artes é pintar um desenho, a aula de literatura é decorar nome de movimento e autor, tudo assim, mecanizado, básico, sem instigar reflexões, isso gerou esses comentários feitos tanto pelos responsáveis pela “denúncia” quanto pelas pessoas que apoiaram o encerramento da exposição. O que faltou ali foi falta de interpretação, o propósito do que foi exposto não é fazer apologias, é fazer denúncias, é mostrar o que tentamos esconder, nada mais que uma denúncia da realidade que já foi feita em outros movimentos artísticos e causaram tanta polêmica quanto.

Não é de hoje que a gente vê falta de compreensão no que se refere à arte, desde que o mundo é mundo tem gente que prefere se fechar em sua bolha de ignorância do que abrir a mente um pouco para tentar entender propostas diferentes, realidades e colocações diferenciadas, no fim todas essas discussões acabam virando uma disputa pelo ego, que lado está certo e qual está errado. Ninguém é obrigado a gostar, a se sentir tocado, a gente pode até protestar contra, mas é importante manter em mente alguns pontos chaves sobre esse caso em específico: foi proposto por uma iniciativa privada e ninguém foi forçado a ir.

É simples não frequentar a exposição, uma vez que a pessoa já está ciente de seu conteúdo e sabe que se sentirá ofendida, mas o fundamentalismo não se contenta com isso e faz questão de censurar e cancelar a amostra de arte ao invés de estabelecer uma discussão sobre as questões contemporâneas. Tudo soa muito parecido com o que aconteceu na ascensão de regimes fascistas na Europa, os nazistas confiscaram obras de Picasso, Matisse, Klimt.

Considerados como pornográficos e difamadores, as forma e os temas retratados nas obras não são de hoje, sempre causaram polêmica, mas a hipocrisia reside em defender a arte clássica, a arte romântica, e rejeitar a arte contemporânea, que em sua essência nem diferem tanto dos movimentos citados.

Cena do Interior ll — Adriana Varejão

Apontado como pornografia, me fez lembrar de outra pintura muito famosa e antiga, do período de transição entre Idade Média e Renascimento:

Jardim das Delícias Terrenas — Hieronymus Bosch

Além das cenas explícitas de sexo ocorrerem no centro do quadro, a pintura tem temática religiosa, no primeiro plano deus criando Eva para Adão, no segundo o festival de pecado que virou a Terra, e por último um dos mais chocantes infernos pintados por Bosch.

A temática da zoofilia já se fez presente nas obras de um dos mais celebrados artistas, Leonardo Da Vinci, onde Zeus toma a forma de um cisne para fecundar Lena, rainha de Esparta.

Leda e o Cisne — Leonardo Da Vinci

E quem diria que até o próprio Michelangelo já esculpiu Jesus desprovido de roupas, posteriormente tamparam a genitália justamente pela polêmica.

Cristo della Minerva — Miguel Ângelo

A liberdade do Movimento Brasil “Livre”

O MBL surgiu há pouco tempo e já se meteu em vários casos polêmicos. Pregando a ideologia libertária em que o poder do Estado deve ser mínimo, eles se contradizem nesse caso (como já fizeram em diversos outros). É importante lembrar da Lei Rouanet, que é um incentivo fiscal à cultura, o Estado dá um desconto na quantidade de imposto que a empresa deve pagar, mas em troca 6% desse valor deve ser convertido em algum projeto cultural. Diversas empresas fazem parte deste programa, existem múltiplas opções acessíveis para o público, se essa em específico tem um tema que não lhe seja atraente, com certeza terá outra opção, todos os projetos passam por uma série de análises feitas por especialistas, são obras legítimas. Desta forma o MBL se contradiz exatamente quando incentivam a liberdade das empresas privadas mas condenam a curadoria da exposição. Criticam a nudez, a pornografia, a violência, apenas no mundo das artes, quando sabemos muito bem que esses conteúdos são comercializados por debaixo dos panos. Defender a liberdade é defender a pluralidade, as várias maneiras diferentes de se expressar, as opiniões divergentes, a oposição que tomaram vai contra o princípio da liberdade, defender a moralidade da família e os bons costumes é aceitar uma estagnação do pensamento, vai contra tudo que eles deviam defender, tanto que, com essa atitude, dentre outras, já passam a ser classificados como um grupo de extrema direita.

Toda a situação só reafirma o papel importante que a arte tem, mesmo na censura propõe a reflexão de temas que nunca deixam de fazer parte do nosso cotidiano, combater a polarização e a radicalização do pensamento só é possível com a acesso à cultura e educação, dois setores muito fragilizados no Brasil, com menos ignorância e mais mente aberta o progresso se faz possível.

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Letícia Kling
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