Children of Men — Como o Fascismo Emerge na Europa

Letícia Kling
PULPLACE
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6 min readOct 16, 2017

Você talvez nunca tenha ouvido falar desse filme, realmente eu mesma até alguns dias atrás era completamente alheia à sua existência, mas desde o momento que eu apertei o play até agora, alguns dias depois, ele ronda a minha cabeça e por isso acho relevante refletir sobre os temas que eles apresenta e mostrá-lo para outras pessoas.

Children of Men é um filme inglês-americano de 2006, passa-se na Inglaterra no ano de 2027, 18 anos após o nascimento do último humano, a humanidade esta passando por uma crise humanitária, além de perdermos nossa fertilidade a crise migratória faz com que toda a sociedade se torne um caos, isso altera as vias políticas e sociais, todos os imigrantes no território inglês são considerados ilegais. É chocante ver como os imigrantes são literalmente enjaulados no meio das ruas e levados aos guetos, semelhante ao que faziam com os judeus no começo do século passado.

O filme tem ótimos aspectos técnicos que merecem nossa atenção: as cenas de tensão têm takes muito longos que fazem com que tudo pareça mais verídico, isso exige muito dos atores, que mandam muito bem, criam um clima de imersão em que no último ato do filme estamos tão aflitos que não conseguimos tirar os olhos da tela. O desenvolvimento do personagem principal, Theo, é algo que também vale ressaltar; no começo ele é completamente indiferente à crise humanitária, apesar de já ter sido um revolucionário ele se acomodou em seu cargo público e foge a qualquer custo de discussões políticas. Mas isso tudo muda quando ele vai parar no meio de um grupo de revolucionários que têm uma mulher grávida, a única do mundo. À partir de dado momento ele deixa sua apatia de lado e luta com tudo o que tem para salvar essa mulher e o bebê, ele atravessa o país para entregá-los a um projeto humanitário.

Logo no primeiro ato do filme me veio à mente dois partidos: o britânico UKIP (United Kingdom Independent), e o alemão AfD (Alternative für Deutschland — Alternativa para Alemanha), ambos são de extrema direita, conservadores, pregam a saída da União Europeia, o fechamento das fronteiras, tendo o nacionalismo como principal meio de atrair o povo, que dizem não se sentirem ouvidos no atual cenário político. Vamos chamá-los do que eles são, fascistas.

O UKIP, partido criado em 1991, é considerado como direita radical, é populista, economicamente liberal porém socialmente conservador, é um partido relativamente novo, ainda não tem tanta influência, mas mesmo assim eu particularmente considero-o um risco, eles apoiaram fortemente o Brexit, junto com os Tories (principal partido de direita do Reino Unido), vale ressaltar que não só eles defenderem o nacionalismo britânico, eles defendem fortemente o nacionalismo inglês; são expressamente contra o multiculturalismo, e isso tudo bate com as idéias do AfD, só que a problemática na Alemanha é ainda maior devido ao passado traumático com o nacionalismo.

“Novos alemães?” Fazemos nós mesmos.

Essa onda conservadora na Europa tem a característica muito forte de ceticismo quanto à União Europeia, um argumento que de certa forma ajuda a reforçar esse posicionamento é o sentimento de falta de legitimidade da união, sendo ela, portanto, antidemocrática, são recorrentes as reclamações de europeus que sentem que sua voz não é ouvida, o processo burocrático faz com que o desejo do povo se perda no caminho, o sistema judiciário supranacional coopera com isso, é compreensível que esse fator assim como a diferença econômica entre alguns países pode ser vista como prejuízo para as os mais ricos, o debate acerca desses temas é extremamente relevante, o problema é quando o foco dos movimentos pró saída da UE são baseados em argumentos xenofóbicos.

É importante ressaltar que essas alas conservadoras da política são apoiadas em grande parte por pessoas mais velhas, e essa é uma rua sem saída: a Europa é um continente velho, o número de jovens (esses sim com ideais mais humanitários) é muito menor que o número de idosos. Querer banir a imigração nessa situação é pedir para que aconteça o que acontece hoje com o Japão, lá a aposentadoria é um problema real, ao ponto de idosos se suicidarem para fugir da miséria. No Japão a imigração não é proibida, mas o número de imigrantes é muito pequeno, isso aliado às baixas taxas de natalidade ocasionam a situação que vivem hoje.

É no mínimo uma hipocrisia que os europeus, famosos pelo seu imperialismo que destruiu a cultura de diversos povos, roubou-lhes as riquezas, hoje se incomode com as consequências da destruição que causaram na África nos últimos séculos. “Eles abusam de nossas mulheres, roubam nossos empregos, agridem e furtam nosso povo” é só uma reformulação do que os movimentos que buscavam a independência de nações africanas falavam durante o século passado.

Nas ruas de Children of Men constantemente esbarramos em televisores que exaltam a superioridade britânica, que pedem que denunciem os imigrantes, todos esses imigrantes são levados aos guetos, isso quando não são mortos no caminho, e nesse campo de concentração se organizam igualmente àqueles que sofreram o holocausto, nos anos em que os campos de extermínio existiam na Europa a luta pela sobrevivência obrigou os homens a criarem uma organização social dentro desses campos, como foi bem demonstrado por Primo Levy. Com a migração em massa é inevitável que forme-se bairros com maioria de imigrantes, esses guetos existem e podem ser vistos por exemplo em “Samba” filme francês que trata dessa problemática. O sentimento de ódio pelos europeus que se cria nessa situação é um auxílio para os grupos terroristas, inclusive.

Ninguém sabe muito bem o que fazer na situação que estamos, mas algumas coisas nós devemos aprender com nosso passado, a radicalização e polarização da política nunca deu muito certo, muito menos quando se trata do âmbito social. O estado de guerra do Oriente Médio obriga que aqueles que querem sobreviver emigrem de seu país, ninguém esta deixando seu país, sua família, sua cultura, por vontade própria, para serem marginalizados como estão sendo. Por outro lado, abrir mão das fronteiras de países e continentes é concordar com o caos, desde que a propriedade existe as federações são separadas, com organizações e culturas diferentes, cada uma com um ritmo de crescimento (econômico e populacional) diferente, a chegada de milhões de novos habitantes também é um processo caótico, não sejamos inocentes, mas novamente, a maioria nem queria estar ali.

O problema do conservadorismo, na minha opinião, é sempre querer achar uma solução rápida para a consequência, sem pensar na causa. As nações europeias e os EUA têm uma dívida enorme para com a África, não só por serem nações ricas mas também por uma questão histórica, e a solução está longe de ser fechar as fronteiras. A única maneira de acabar com a guerra na Síria, por exemplo, é parar de apoiar o lado X ou Y, e apoiar o povo, fazer o possível para tirar os líderes sádicos do poder, e isso só será possível com apoio mútuo internacional, e não com o que vemos acontecer hoje com Estado Unidos e Rússia na questão Síria.

Enfim, tem-se muito a discutir sobre a questão da imigração e como a política europeia esta lidando com isso, vê-se que a onda conservadora está começando a quebrar no Brasil também, por alguns motivos diferentes mas tão problemáticos quanto, nesses momentos de instabilidade é importante que a população esteja engajada o suficiente para não cair na falácia do fascismo como aconteceu no começo do século passado e começa a acontecer hoje. Que a história e a política andam juntas e ambas são cíclicas a gente já sabe, mas acredito que com tanto acesso à informação que temos hoje é possível diminuir a destruição que movimentos de extrema direita propagam.

O debate não para por aqui, se alguém discordar ou quiser se aprofundar em algum ponto, podemos debater e crescer juntos. Obrigado por ler até aqui e até a próxima :)

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Letícia Kling
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