Criar tremendo é complicado
Sobre fotografar as ruas sendo mulher
Lembro bem do dia em que, em um encontro online com outras mulheres, discutimos a tese Paradoxos na representação documental. O trabalho fotográfico de Maya Goded, tese de dissertação de Benjamin Alcántara. Na pesquisa, o autor discutiu, inicialmente, o sentido da fotografia documental no início do século XX para a política dos Estados Unidos.
Da Grande Depressão até a criação de planos para a tentativa de reativação econômica, esses programas foram bem mais conhecidos por conta da fotografia do que por seus próprios feitos. As imagens eram construídas e distribuídas com um cunho ideológico específico, aquele em que se abordava as situações de miséria em uma ótica colonialista, de superioridade e que se distanciava do sujeito-objeto sem nenhum compromisso com essa realidade.
“Textos como os de Susan Sontag, Allan Sekula e também Martha Rosler, colocam o dedo na ferida, mostrando os abusos e a incoerência de muitos trabalhos documentais, que se valem do poder de estar por trás de uma câmera e se aproveitam de situações degradantes, as representam esteticamente, e as apresentam em contextos artísticos disfarçados de crítica social”
Esse estudo foi necessário para que eu entendesse um dos solos em que a Fotografia se formou. Hoje, apesar das preciosidades que o caminho mostra, alguns pontos (me) gritam que temos muito o que discutir. Questionamentos como: é fácil construir uma imagem? É fácil sair com um equipamento para a rua e sentir segurança ao fazer isso? me rondam e permeiam discussões nos grupos de estudos formados por mulheres que frequento. A resposta é simples e complexa, pois depende para quem você está fazendo a pergunta.
Estou no Brasil, em Maceió, capital de Alagoas. É inegável a importância da cidade para a construção da História e também para a memória das pessoas. No texto que agora escrevo falo enquanto mulher cisgênera e pessoa que ama fazer imagens. No entanto, dois dias antes de sair de casa para registrar o acaso das ruas me pego pensando no que pode acontecer caso eu seja roubada, assediada, etc. Ou quando, ainda no trajeto, vou retirando a câmera cuidadosamente da sua capa para deixá-la o mais alcançável (e discreta) possível durante os segundos que tenho para fotografar. Meu foco fica dividido entre o enquadramento e o que está ao meu redor, já que fico completamente vulnerável se presto atenção apenas na imagem que estou construindo. Criar tremendo é complicado.
Aqui, quando chego em casa (depois de muito comemorar), percebo que outra cena foi formada no fim de cada registro — tudo bem diferente do que pensei outrora. Me agarro a esse resultado na certeza de que ele também importa, já que registrar a rua depende muito daquilo que é inesperado. Nesse ponto, o que é inesperado, é mágico para a fotografia, porém, ser mulher e registrar a rua traz um acaso diferente. É o acaso de quem teme estar ali. E isso não é bonito, não é poético. Nunca foi.
Imagino as mulheres que vieram antes de mim. As ruas que elas ocuparam com uma câmera na mão. Os olhares que as encaravam, os receios que elas sentiram. Tudo isso me reforça: a imagem não teria sentido sem as mulheres que vieram antes e nos deixaram os seus olhares. Quando as contemplo sinto elas soprarem à minha alma: “estamos juntas”.
Por isso, às que fizeram, às que foram silenciadas, que fazem e farão imagem… todas essas palavras são para vocês. Abaixo, trago nomes que movem e iluminam. Nomes que são sopro de força, poder e amor durante a caminhada. Afinal, a rua também é nossa. Precisamos ir construindo esse direito de fotografá-la.
Helen Levitt
Conhecida como a poetiza da fotografia, Helen registrou as ruas de Nova Iorque durante muitas décadas. O olhar dela acolheu crianças e o acaso nova-iorquino com sensibilidade.
Vivian Maier
Nascida em Nova Iorque no ano de 1926, Maier fez inúmeros registros do cotidiano. Das fotografias de ruas estadunidenses às de viagens feitas, Maier também dedicou boa parte da sua vida ao trabalho de babá e até a sua morte nada se sabia sobre as suas fotografias, pois ficavam guardadas.
Berenice Abbott
Nascida em Ohio, nos Estados Unidos, Abbott ficou conhecida por registrar prédios e o movimento urbano durante muitas décadas. A fotógrafa foi a primeira mulher a ser admitida na Academia Americana de Artes e Letras.
Lisette Model
Fotógrafa de rua, Lisette foi uma austríaca americana nascida em 1901. Ensinou na New School for Social Research, em Nova Iorque, no período de 1951 até 1983, ano da sua morte.
Vitória de Alencar
Também conhecida como Power Vitória, se dedica às artes visuais e tem formação acadêmica em Jornalismo pela Ufal. Integra o grupo de estudos Imagens e Feminismos (GIF) e é cofundadora do Punho. Os registros urbanos de Vitória caminham entre os analógicos e digitais. Falo com afeto o tanto que o olhar dela me lembra o de Vivian Maier.
Júlia Paredes
Pesquisadora em Antropologia Visual e graduanda em Ciências Sociais, Júlia documenta o cotidiano (pessoal e urbano). Sua série fotográfica mais recente se chama Trilhos Urbanos.
“o tempo em degredo falará dos roteiros esquecidos de cada mulher; abismo de se saber sozinha e, todavia, ressoar” — Neide Archanjo