“O lugar que somos” é um poema visual sobre a saudade

PUNHO
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4 min readFeb 8, 2022

Laryssa Andrade fala sobre os processos de autoreconhecimento enquanto fotógrafa, memória e ancestralidade que permeiam seu primeiro filme.

Divulgação | “O lugar que somos” (dir. Laryssa Andrade)

Cresci perto da máquina de costura. Brinco que a trilha sonora da minha vida foi moldada pelo som do motor e da tesoura atravessando tecidos escuros e florais. As minhas tias, a minha avó, a minha mãe… desenhavam, esticavam panos, mediam e faziam acontecer o que queriam por meio da costura. Sempre achei mágica essa relação de planejar e executar, assim, na nossa frente. Nesse meio, a minha avó fazia surgir blusas e vestidos de quadrilha, se tornando a professora de todas as irmãs. Depois vieram as minhas tias-avós, mas antes delas, sei que vieram outras e outras e outras, até chegar na minha existência, que nada sei sobre a máquina de costura, mas tento entender sobre outro tipo de fazer: a imagem.

Mainha sempre me fotografou. Até os meus doze anos eu tenho fotografias cotidianas. Era costume dela tentar me registrar um pouquinho ao longo do mês. E ela conseguiu. Hoje guardo negativos e retratos numa bolsa que fica atrás da porta do meu quarto, mas só aos dezoito anos eu tive a minha primeira máquina fotográfica “de verdade”. E apesar de anos depois ter sentido dificuldade em definir o meu trabalho enquanto fotógrafa, eu sempre soube dizer que era fotógrafa da vida. Isso porque desde sempre eu gostei de reparar em tudo que fosse caminho para mim. “Pronto, é isso. Eu registro a vida”, sempre me justifiquei assim.

Foto: Laryssa Andrade

Observar e admirar a criatividade das mulheres Andrade desde a infância sempre foi comum, mas eu nunca pensei sobre como construir diálogos desse fazer com a fotografia. Tenho certeza que viver uma pandemia foi um ponto definidor para que essas relações ocorressem, uma vez que as vivências solitárias desses anos me apontaram a refazer lembranças que eu não pude viver.

Percebi que O lugar que somos nascera numa noite de agosto. Ouvi Priscila Buhr dizer em um evento sobre fotografias, memórias e afetos que nós deveríamos estar atentas às nossas histórias para criarmos novas memórias. Se antes eu não sabia explicar como a fotografia agia nas minhas representações com a arte, a memória e a saudade passaram a significar, finalmente, a essência de tudo o que eu crio, não representando um sentimento individual, mas uma memória coletiva.

A minha ideia era criar uma série fotográfica sobre a arte na vida das mulheres da minha família. Mas isso logo me levou a outro sentimento: a falta. Eu sentia muita falta de ouvir vozes que não cheguei a conhecer ou de guardar aquelas que estavam perto, mas que ainda não foram registradas o suficiente. Foi uma grande escalada até entender que a série fotográfica não poderia ser somente fixa, como também deveria estar num movimento constante entre presente e passado. Entre o que essas mulheres sentem ao estarem diante das criações que elas fazem até hoje.

Apesar de na nossa família haver o costume da conversa, do compartilhamento de lembranças, nós pouco temos isso em “evidência”. Temos o costume de sentar na calçada e tomar café até o sol sair e o vento da noite chegar, mas não temos o costume de registrar isso. Ser fotógrafa me fez sentir incômodo e querer preencher algumas lacunas.

Foto: Laryssa Andrade

Perdemos a minha avó há doze anos e para o documentário eu me apoiei na escuta de histórias. Eu não lembro direito da voz dela, nem de manias… de detalhes simples de convivência. O lugar que somos veio também como uma maneira de romper com isso. “O que eu posso deixar para quem fica?” foi a pergunta que eu mais fiz durante o processo criativo do documentário. Nessas horas a arte é a minha resposta.

Depois de vê-lo pronto, após observar pessoas assistindo e me deixando dizeres, eu penso ele como um poema. Mas não um poema finalizado, um poema em construção, sem fim. Ele foi feito para aquelas que foram, para as que aqui estão e para aquelas que serão. É um poema visual familiar que vai me abraçar para sempre. Algo como uma carta-lembrete sobre o que a fotografia consegue fazer com a memória, a nossa memória.

O lugar que somos evoca um espaço e muitos rostos que passaram, mas continuam sendo (e estão).

O Lugar que Somos, The Place We Are, 2021, 7'15" minutos, Alagoas, Brasil

SINOPSE: Fotografias e relatos breves resgatam poeticamente a memória afetiva de mulheres de uma mesma família atravessadas pela costura

FICHA TÉCNICA: Direção, Roteiro, Fotografia, Montagem: Laryssa Andrade / Elenco: Meran Andrade, Selma Alves, Vilma Alves / Título inspirado em poema contido na obra da escritora brasileira Ana Miranda denominada “Prece a uma aldeia perdida” (Editora Record, 2004)

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Coletivo alagoano de mulheres da imagem #punhocoletivo