(Imagem: Arquivo Nacional)

1919: O Brasil nasce para o futebol

A Copa América de 1919 marca a primeira conquista do futebol brasileiro numa época em que o esporte era dominado por uruguaios e argentinos

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11 min readMay 14, 2019

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por Maurício Brum

Dizem que o Brasil, naqueles tempos, era governado por um doido varrido. Caso clínico. Seu governo não durou muito e, sobre ele, a história guarda menos registros de realizações e mais notas sobre greves gerais, insatisfação popular e, é claro, da sua bruteza simplória, meio jeca, meio lunático. Pelo menos, é isso que contam do efêmero Presidente da República que ocupava o palácio quando o País sediou a Copa América de 19. O outro dezenove, no caso. Há cem anos, entre 11 e 29 de maio de 1919, o Rio de Janeiro testemunhou os melhores times do continente (que também eram os únicos) em uma batalha quase sem fim pelo terceiro Campeonato Sul-Americano de Futebol. Era o primeiro grande evento do tipo que o Brasil sediava, e seria também o primeiro título.

O presidente Delfim Moreira se fez presente na estreia. Dele, contam que tinha um sotaque carregado do interior de Minas — eram tempos do café-com-leite no comando do país — e que era completamente maluco. Uma anedota famosa relata que, certa feita, Rui Barbosa aguardava o presidente para uma audiência e, enquanto matava tempo na sala de espera, via a porta do gabinete se abrir a cada tanto e um nariz bigodudo despontar na fresta, acima dele um par de olhos espiando a visita. Era Delfim Moreira, desconfiado. Rui, que havia perdido as eleições presidenciais recentemente, teria então comentado a um jornalista que o acompanhava: “que estranho País, onde um louco pode ser presidente, mas eu não”.

Mas Delfim Moreira, que alternava horas de lucidez com o caos absoluto de seus sentidos, não havia sido exatamente eleito para o alto cargo. O motivo de estar no Palácio do Catete em 1919 era o mesmo de a disputa do Sul-Americano estar acontecendo naquele ano, e não no anterior, como previsto originalmente: o surto de Gripe Espanhola que avassalou o Rio — e o País — em 1918 não fez distinção entre poderosos e paupérrimos, ceifando vidas em todos os bairros e classes sociais. Um dos mortos foi Rodrigues Alves, ex-presidente do Brasil nos anos iniciais do século (1902–1906), que havia se tornado o primeiro político reconduzido ao cargo máximo. Não chegou a tomar posse, porém, nessa segunda oportunidade: combalido pela gripe, seu cargo foi ocupado pelo vice até Alves eventualmente morrer e novas eleições serem convocadas. Assim, Delfim Moreira vestiu a faixa. Mas, pouco lúcido, quem mandou mesmo foi seu ministro mais poderoso, Afrânio de Melo Franco.

Tribuna de imprensa no Estádio de Laranjeiras. (Imagem: Arquivo Nacional)

Por medo do surto de influenza, também o Sul-Americano foi afetado — e adiado em um ano. Ele havia sido disputado pela primeira vez na Argentina, em 1916, com o pretexto de celebrar o centenário da declaração de independência do país anfitrião. Campeão da disputa, o Uruguai foi honrado com a condição de sede do torneio seguinte, um ano mais tarde, que também venceu. Como só quatro países do continente tinham seleções na época, não havia muita dúvida para a sequência do rodízio: a Copa América, que então era apenas o nome do troféu (mas não da competição) finalmente desembarcaria no Rio. O Chile seria a última parada do ciclo, em 1920, e últimos colocados também seriam invariavelmente os chilenos naqueles quadrangulares pioneiros da mais antiga taça continental do mundo.

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Para receber seu primeiro Sul-Americano, o Brasil precisava de um palco à altura das necessidades da época. O futebol ainda não arrastava as multidões que levaram à construção de canchas gigantescas nos anos 1940 e 1950, e longe estavam as exigências luxuosas da FIFA do século 21, mas era preciso ir além dos campinhos quase varzeanos que ainda recebiam o Campeonato Carioca, na sua então capital federal. Na Argentina, a Copa havia sido jogada no Estádio do Club de Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires (GEBA) e na antiga cancha de madeira do Racing, onde hoje se ergue o Cilindro de Avellaneda; no Uruguai, os jogos de 1917 aconteceram no velho Parque Pereira, próximo à localização do atual Centenario. Eram estádios com capacidades entre 20 e 40 mil lugares, e foi nisso que os brasileiros miraram quando decidiram transformar o campo do Fluminense, no bairro de Laranjeiras, em seu estádio nacional.

Não era um local novo para jogos: partidas de clubes e seleções estaduais já eram disputadas por ali desde 1904, e aquele era o gramado onde a incipiente Seleção Brasileira mandava seus jogos, inclusive o primeiro de todos, contra o Exeter City inglês, em 1914. O tão celebrado centenário do Estádio de Laranjeiras (e não “das” Laranjeiras, como se costuma dizer), no último dia 11 de maio, não foi exatamente o início de sua história. Nem mesmo na época os jornais trataram como uma inauguração de fato — era, isso sim, a abertura de sua ampliação. Aquele foi o dia em que a Copa América de 1919 começou, e a novidade na cancha do Flu eram as suas importantes obras: grandes arquibancadas cercando o gramado e novos vestiários subterrâneos, construídos especialmente para a ocasião.

Estádio "de" Laranjeiras, a forma correta de chamar a casa do Fluminense. (Imagem: Arquivo Nacional)

Com a Primeira Guerra recém-concluída, o Brasil ainda sentia os efeitos da recessão causada pelo conflito: carestia e greves gerais tinham se tornado comuns desde 1917. Mas os primeiros sinais de recuperação se avizinhavam, pelo menos para a elite agrário-exportadora. Responsável por dois terços das vendas brasileiras ao exterior, o café tinha subido de preço nos últimos tempos — e o PIB acompanhava o momento, crescendo quase 8% no ano da Copa América e cerca de 12% no seguinte. Como se tornaria cada vez mais comum com eventos desse tipo, o futebol era uma chance de exibir, com pompas, o que o país podia fazer de bom. Fora de campo, na recepção aos visitantes e na organização do torneio; e dentro, com uma equipe competitiva. Era, afinal, o maior cenário possível para o futebol brasileiro se apresentar, em um tempo ainda sem Copa do Mundo e no qual nem mesmo as façanhas olímpicas haviam começado (o pioneirismo celeste só viria em 1924).

Dessa forma, para evitar frustrações, a tabela brasileira foi cuidadosamente montada num crescente de dificuldade: a estreia contra os lanternas das duas edições já disputadas e a segunda rodada contra a vice-campeã. Só no fim, esperando transformar aquele jogo em uma espécie de final, o jogo contra os bicampeões. Em 11 de maio, diante do Chile, a Seleção não teve problemas para vencer por 6x0 na abertura do estádio ampliado, com Delfim Moreira presente, embora talvez sem entender muita coisa do que via. O mandatário, de todo modo, já estava com os dias contados, na política e na vida: seu substituto, Epitácio Pessoa, havia sido eleito em abril e assumiria em julho; o próprio Delfim Moreira, cada vez mais debilitado pela doença que provocava sua aparente insanidade, viria a falecer no ano seguinte.

Recorte do segmento esportivo do jornal "Correio da Manhã".

Na estreia, Arthur Friedenreich, que marcou três, anotou o primeiro gol do novo Estádio de Laranjeiras. Dois dias depois, o Uruguai estreou fazendo o que então era sua especialidade: bater os argentinos, ainda que com sofrimento — 3x2 com um gol em cima da hora. O Brasil derrotar o Chile não era surpresa, mas o fator local começou a aparecer na segunda rodada, quando aplicou 3x1 nos argentinos e garantiu que, pela primeira vez, ficaria acima deles em um Sul-Americano. As duas campanhas anteriores haviam terminado com um terceiro lugar. Agora, finalmente, haveria uma disputa de título contra os uruguaios, que também fizeram o que se esperava deles e derrotaram o Chile. Como o torneio era em tiro curtíssimo, no dia 26 de maio já era hora de decidir o título, na terceira e última rodada, mas a disputa acabou se estendendo um pouco mais: após abrir 2x0 em apenas 18 minutos, a Celeste viu o Brasil buscar uma igualdade heroica, com dois gols do corinthiano Neco. Empatados em pontos, os dois times teriam que fazer um jogo extra, três dias depois.

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O governo anunciou ponto facultativo nas repartições públicas, os bancos fecharam as portas e os jornais conclamaram o comércio a fazer o mesmo: os empresários estavam na “obrigação moral de acompanhar com sympathia franca tudo quanto para o seu paiz representa progresso material”, demandava O Paiz, do Rio, em suas páginas esportivas — que destacavam, além do foot-ball, o rowinge o turf, as preferências cariocas do início do século. “Appellamos para o commercio desta cidade, no sentido de encerrar as suas portas ás 12 horas, cooperando não só para o brilho do grande match, como tambem rendendo uma homenagem á nação uruguaya, ora entre nós, representada pelos seus valorosos sportsmen”, prosseguia.

Nessa época, os registros de público não costumavam ser muito precisos: à imprensa era informada a renda, mas não havia um controle rígido sobre quem efetivamente havia entrado, ou em quais setores do estádio o público se concentrou. Acredita-se que Laranjeiras recebeu entre 30 e 35 mil torcedores naquela tarde de 29 de maio de 1919, uma quinta-feira transformada em feriado informal na então capital do Brasil. Sem iluminação e com possibilidade de prorrogações ilimitadas em caso de empate, o jogo tinha seu início marcado para às duas da tarde, buscando aproveitar o máximo da luz natural do fim de outono.

Já não era apenas um jogo, evidentemente, mas uma mobilização de todo um povo. A ausência de rádio (tecnologia que só começaria a funcionar no país em 1922) ainda não permitia que fossem “30 milhões em ação”, a população brasileira da época, mas no Rio de Janeiro ninguém pensava em outra coisa. Os bondes da Light tiveram uma frequência especial naquele dia, saindo de 10 em 10 minutos da Praça da Bandeira, e os ônibus ganharam linhas expressas até o estádio. O público carioca também precisou aprender a driblar um problema não muito comum na época — cambistas vendendo ingressos falsificados na porta do estádio, com vários talões de bilhetes impressos da noite para o dia na febre que a final causou.

Mesmo para quem não conseguisse entrar nas Laranjeiras, haveria maneiras de acompanhar o jogo: linhas telefônicas foram instaladas especialmente na tribuna de imprensa para levar as notícias da partida, tão frequentemente quanto possível, para todos os cantos do continente. Correspondentes internacionais faziam contato com seus países, e o minuto a minuto era transmitido por telegrama para os diferentes rincões. No Rio, o diário O Paiz convidou os torcedores sem ingresso a se concentrarem na porta de sua redação, na avenida Rio Branco, onde atualizações minuto a minuto eram afixadas em um quadro e “narradas” conforme chegassem do estádio.

Brasil x Uruguai pela final da Copa Amérida de 1919. (Imagem: Arquivo Nacional)

Era uma batalha praticamente à morte, e a tarde seria longa tanto para aqueles que estivessem nas arquibancadas quanto para os que tentavam acompanhar o jogo em outros cantos da cidade: caso terminasse empatado, o jogo teria uma prorrogação de meia hora. Após isso, se necessário, outro prolongamento de meia hora seria disputado e, se nem assim um campeão fosse definido, mini-prorrogações de quinze minutos seguiriam sendo jogadas até que a partida completasse três horas de duração. Caso o empate permanecesse, haveria um novo jogo em outra data, começando do zero, exatamente com as mesmas regras. Não havia previsão de algo equivalente a decisão por pênaltis ou gol de ouro. A única morte súbita, em 1919, talvez viesse a ser de algum jogador, com o limitado preparo físico da época e a exigência de um jogo potencialmente infinito.

Quando chegou a hora, Brasil e Uruguai realmente jogaram pelo que pareceu ser uma eternidade, mas não para sempre. O resultado do regulamento que hoje não passaria por uma junta médica seria a Seleção da casa conquistando seu primeiro grande título com o gol decisivo mais tardio da história das Copas América: Friedenreich, que, segundo a lenda, estava de ressaca após virar a noite dançando em um baile no Catete, marcou o gol do título aos 2 minutos do 3º tempo de prorrogação — ou, mais exatamente, aos 122 minutos de um jogo que ainda seguiria até os 150. Sem pernas, os visitantes não conseguiriam buscar mais.

Antes disso, com os times já exauridos pela batalha de três dias antes, o jogo se arrastou em um renhido 0x0. Os brasileiros, porém, tentaram mais. O scout da época registra 17 impedimentos do time local e 21 defesas do goleiro uruguaio Cayetano Saporiti, contra 10 off-sides charruas e 13 defesas do arqueiro brasileiro, Marcos Carneiro de Mendonça, que depois seria presidente do Fluminense. Foi justamente em uma das intervenções de Saporiti, aliás, que o gol do título saiu: após o oriental dar um soco para afastar a bola, o bem colocado Friedenreich emendou de primeira no canto. Aquela tarde ajudou a transformá-lo no primeiro grande craque da Seleção Brasileira a ganhar destaque internacional. Na Banda Oriental, sua garra incansável rendeu-lhe o apelido de “El Tigre”.

Capa do jornal "O Paiz" após a conquista da Seleção Brasileira.

Aquela vitória rendeu o célebre choro “Um a zero”, de Pixinguinha e Benedito Lacerda, composto para comemorar o título — mas a letra, de Nelson Ângelo, só viria muito tempo mais tarde, nos anos 90. Considerada por vezes a primeira música dedicada ao futebol no Brasil, “Um a zero” não foi a única representação da vitória na arte popular. Já no dia seguinte à conquista, o samba “Goal brasileiro”, assinado por “Feijoada” e Luiz Nunes Sampaio, exaltava os campeões: “Os dianteiros / Fazem entrar / Tiros certeiros / De assombrar”, dizia o refrão de uma música que listava, nome a nome, os jogadores envolvidos na decisão.

Pontualmente às 17 horas e 27 minutos, quando o árbitro argentino Juan Barbera encerrou a disputa com a vitória pelo placar mínimo, os brasileiros já não colocariam seus pés no mesmo País que havia começado a partida. Enquanto a torcida invadia o gramado e as ruas do centro do Rio se enchiam de anônimos pulando de alegria pelo primeiro título de sua Seleção, começava a nascer aquele que depois viria a se proclamar “o País do futebol”.

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