(imagem: Federico Bur)

A melhor partida já jogada

Fede não soube responder porque demorou tanto tempo a escrever sobre uma noite reservada para ser eterna. Talvez apenas agora, passados quase cinco anos, ele finalmente caiu em si.

Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo
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12 min readFeb 27, 2019

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Nas conversas ao longo dos últimos dias para acertar os detalhes desta publicação, pode-se dizer que Fede pronunciou mais vezes "Estudiantes" do que a própria vogal A. Muito do relato a seguir cobra ainda mais sentido se o leitor guardar essa informação.

“É o clube com a mitologia mais marcada na Argentina, nos métodos de defender e explorar as debilidades do rival. A escola do Estudiantes levou a Argentina sempre ao primeiro plano. Quando Bilardo assumiu a Seleção, a Argentina foi campeã do mundo em 86 e jogou a final de 90. Inclusive foi com Bilardo que a Seleção se cruzou e eliminou a todos os campeões mundiais existentes naquela época: Uruguai, Itália, Brasil, Alemanha e Inglaterra. E depois, quando essa escola voltou em 2014 com o Sabella, a Argentina foi vice-campeã do mundo.”

Fede não deixa de ter razão.

Também jurou que eles venceram o jogo e que só começou a escrever tem pouco tempo; “coisa de uns dois anos pra cá”.

Difícil mesmo é acreditar que ele escreve há pouco.

Por Federico Gastón Bur

Primeira parte:

Eram seis. Essa noite era a última no Rio de Janeiro e estavam jogando um torneio de cobranças de pênaltis meio bizarro em um dos gols de um campinho iluminado em Copacabana. Jogavam com uma bola pequena porque era a única que haviam levado e porque, na verdade, os pênaltis eram a desculpa para ficarem largados ali tomando cerveja Skol. Muita cerveja Skol. Algo assim como um pack com 24 latas de meio litro que estavam no apartamento em que se hospedavam, a escassos 70 ou 80 metros deste gol onde aconteciam os pênaltis bizarros. De vez em quando, um dos seis saía correndo para buscar algumas latas para que não perdessem o gelo.

Passada uma hora, ou algo assim, um grupo começou a chutar no gol do outro lado. Os seis amigos que disputavam o torneio de pênaltis olharam para eles, mas sem dar muita importância à situação e continuaram o que estavam fazendo: pênaltis e cerveja. No dia anterior, a Argentina havia jogado em Brasília e dois deles estiveram a ponto de viajar para acompanhar a partida. Neste ponto abro um parênteses para mencionar que se isso tivesse acontecido (e agradeço que não) não existiria o torneio de pênaltis bizarro, Skol gelada, golzinho de Copacabana iluminado e tudo o que virá a seguir. Quero dizer, nem uma única linha desta história. Fecho parênteses.

Continuaram jogando e comentaram que os caras no outro lado faziam embaixadinhas, dominavam com o peito, chutavam no ângulo, etcétera. Não importava, o torneio de pênaltis bizarros seguia seu rumo. Quase todos os mini chaveamentos foram vencidos pela mesma dupla. Acho que foi durante o quarto ou o quinto torneiozinho o exato momento no qual um dos caras do outro gol se aproximou. Ele veio falar comigo. Utilizando um espanhol improvisado que expunha claramente o seu sotaque italiano, perguntou se queríamos jogar uma partida. Eu respondi que não, estávamos apenas brincando e tomando cerveja, no que ele me agradeceu, sorriu e voltou ao gol onde estavam seus amigos.

(Ponto a parte. Façamos um arranjo literário e viajemos alguns anos atrás para nos localizarmos neste momento exato no qual o italiano volta ao seu gol para dominar a bola com o peito e jogar uma espécie de "três dentro, três fora" com seus amigos. A partir de agora, a história será narrada no presente. Novo ponto a parte.)

Termina esse quarto ou quinto torneio, começamos mais um e o mesmo sujeito torna a se aproximar. Pergunta se nós queremos jogar e dizemos outra vez que não, mas agora um pouco mais duvidosos. Quase todos começamos a sentir vontade de jogar um pouquinho, menos um de nós que está inflexível em sua decisão de não jogar. Não quer saber nada de correr e não quer mais a gente enchendo o seu saco. E nós não fazemos isso momentaneamente. Depois disso, se produz a terceira oferta e já estamos todos com muita vontade de jogar menos ele, o sexto. Eles são sete e sem ele não podemos jogar, não há como. Jogaríamos seis contra seis, pensamos todos, com eles contando com um reserva. Mas se ele não joga, se o sexto sujeito que se recusa não declina de sua posição, a partida é inviável porque o campinho é muito grande para jogar com cinco jogadores por time. Além disso, os italianos, ou O italiano, começam a ficar um pouco incomodados com a nossa presença porque eles querem jogar futebol e há seis estúpidos que estão chutando uma bola de criança enquanto tomam cerveja. Suponho que devem estar pensando “se não vão aceitar, então vão à merda e deixem a gente jogar”.

Convencemos o sexto de que jogue na frente, como um nove, de costas, fazendo o pivô, buscando faltas e chutando forte quando a bola sobrar perto do gol, e chegamos a um acordo com os italianos (porque sim, eram todos italianos): vamos jogar dois tempos de 15 minutos sem trocar de lado no intervalo. Parece justo. Acho que querem 20, mas nossas pernas apenas conseguem suportar os 15 que foram combinados.

A bola rola e nós estamos bem organizados porque, já sabemos, aqueles caras fazem embaixadinhas, dominam com o peito, chutam no ângulo, etcétera. Todas as qualidades carentes em nosso time e que devem ser compensadas com organização, picardia e sacrifício. Um time, o nosso, composto por apenas um jogador autêntico de futebol, um goleiro bastante aceitável no futsal e quatro deformes que não contam com nenhum tipo de talento.

Nos posicionamos no 3–1–1 para esperá-los e jogar toda bola que tenhamos em nossa posse na área rival. Qualquer tiro de meta ou lateral é lançado diretamente à área rival, na posição do sexto para ver se ele, com a ajuda do melhor dos nossos jogadores que está no meio, possam armar alguma escaramuça que impulse essa coisa redonda para dentro do gol. É isso, conseguir uma falta ou algo que nos dê a chance de meter a bola pra área, esperar por um erro do rival e fazer um gol de merda.

Passaram cinco minutos e já estamos perdendo por 1 a 0. Foi um magrelo de camiseta azul que levou a bola pela esquerda, cortou para dentro e chutando de direita colocou no segundo pau. Um golaço no ângulo. Poucos minutos depois, esse mesmo sujeito de camiseta azul dá uma meia bicicleta lá do meio de campo e a bola passa muito perto do gol. Estamos sofrendo? Sim. Decidimos seguir do mesmo jeito: 3–1–1 e esperar. Achamos que sair para buscar o jogo pode nos fazer passar uma vergonha histórica.

Estão nos dando um baile e estou concentrado em que não nos humilhem mais. Eles têm um arremesso lateral do lado esquerdo do ataque, perto da avenida Atlântica e chega o nosso melhor jogador, o único autêntico, a me dizer alguma coisa. Não lhe dou bola e respondo pedindo para que jogue com raça e se concentre que eles vão cobrar o lateral. Ele se aproxima novamente e torna a me dizer alguma coisa mas desta vez eu não respondo, apenas o observo. Não entendo o que ele me diz. Na terceira vez, me segura pelo braço e fala “é o Del Piero”. Fico meio congelado e o sujeito de camiseta azul passa correndo por mim. Nem consigo marcá-lo, somente tento ver seu rosto para confirmar o que acaba de me dizer o meu amigo, o nosso melhor jogador. Parece que sim, que é ele. A bola vai para escanteio e caio em mim. Sim, cacete, é ele. Ou seja, não sei se é ele mas meu amigo disse e eu o vejo parecido, então para mim sim, é ELE. Conto para nosso goleiro, que me olha com os ombros caídos e a boca entreaberta, como todos imaginamos que seria a reação de uma criança ao ver o Papai Noel pela primeira vez.

Segunda parte:

Acho que neste ponto nenhum de nós quer continuar jogando. Queremos que isso termine para garantir uma foto, um abraço ou algo com o Del Piero. Enquanto isso, um dos meus companheiros na zaga me diz “o que joga atrás é um zagueiro da Itália dos anos 90”. Não sabe me dizer o nome e eu respondo que está delirando porque o entusiasmo nos consome. O jogo continua e fico em um mano a mano com Del Piero pelo lado direito de seu ataque, do lado do mar, enquanto se escuta ao fundo as ondas do Rio quebrando com força. Ele me espera e deixa a bola à mostra mas não toca nela. Estico a perna para tirá-la de biquinho e passo no vácuo. Ao me virar, o sujeito de camiseta azul já está a uns dez metros de vantagem.

A jogada do primeiro gol se repete mas o goleiro, esse que é bastante aceitável no futsal, se agiganta e salva um chutaço que ia no segundo pau. É, talvez, o maior momento de sua vida. É o gol contra o River na final intercontinental de 96 que o Bonano não conseguiu salvar. O tempo passa, eles continuam nos dando um baile e marcam o segundo. Não foi do Del Piero, mas de um magrelinho com uma barbinha e que também joga muito bem. Parecia que nós não queríamos jogar por estarmos com a cabeça em qualquer lugar, em refletir esse momento em uma foto ou algo que o imortalizasse. Termina o primeiro tempo.

Terceira parte:

É intervalo e estamos falando sobre tudo isso, respirando e começando a deixar de lado a loucura do que estamos passando para fazermos o melhor possível. Quantas chances mais teremos de jogar contra Del Piero e seus amigos? Nos propusemos a jogar com tudo. Decidimos mudar a formação tática e passamos para um 2–2–1 porque percebemos que estamos perdendo o meio de campo. É perigoso, mas também pode servir para colocar um tampão na metade do campo que nos permita parar um pouco as descidas deles. Quem vai para o meio é o nosso jogador mais alto, a intenção é que nas bolas ofensivas que lançamos desde o nosso gol e também nos laterais, ele esteja junto do sexto para tentar alguma jogada forçada.

Começa o segundo tempo e estamos melhor posicionados. Gritamos entre nós e nos incentivamos a jogar pra frente para descobrir até onde podemos chegar. Passa o tempo e nada, mas pelo menos conseguimos parar um pouco o domínio deles e meter alguma bomba na área que crie certo incômodo nos rivais. Meu amigo de zaga central que joga de volante continua me dizendo que um dos defensores jogava na Seleção Italiana na década de 90. Eu sei lá.

Em uma dessas disputas quentes que acontecem nas areias dos campinhos de praia do Rio de Janeiro, o nosso melhor jogador leva a bola pela direita, consegue deixar um rival para trás e faz um cruzamento meio rasante que bate no jogador mais alto do nosso time, aquele que o tempo todo repete “esse de trás jogava na Seleção Italiana dos anos 90”. É gol e o placar aponta 1–2 sem nenhum tipo de merecimento. Mas estamos 1–2 e restam uns oito minutos. Sim, sabemos que é quase impossível. E?

Resta pouco tempo, três ou quatro minutos. Estamos chegando mas muito pouco e o mais provável é que eles marquem mais um em algum ataque. O nosso pior jogador, heroicamente, consegue desarmar duas vezes seguidas o Del Piero. Se amanhã contarmos que ele fez isso, ninguém vai acreditar. Acho que exagero se digo que ele jogou futebol cinco vezes em toda sua vida. Temos um escanteio a favor. Quem vai cobrar é o nosso melhor jogador e deixamos duas pessoas dentro da área: o sexto, esse que se recusava a jogar; e o alto, o que era zagueiro central, que passou pro meio e que sabe que um deles é um zagueiro da Seleção Italiana dos anos 90. O cruzamento é do tipo chuveirinho, a bola cai e quica na área, no meio de uma área que é pura areia fofa. Todos tentam chutá-la mas ninguém consegue. Não dá pra ver a bola, está tapada por pernas, areia que voa e uma bruma. De repente há um grito de gol. É o sexto, esse que não queria jogar. Não a chutou, mas graças ao empurrão com os rivais e ter levado a bola numa espécie de scrum no meio de uma formação de rugby, ela atravessou a linha e nos deu o empate. Empatamos, sim.

Restam dois minutos e temos que resistir. Na prévia não combinamos nada com relação a uma definição em caso de empate, mas não importa: o empate é heróico e temos que nos concentrar ao máximo em nossas carentes possibilidades de manter esse 2 a 2 histórico.

Alguém grita do lado de fora, é o reserva deles com o cronômetro na mão avisando que o jogo acabou. E agora?

O campinho de areia em Copacabana, palco da melhor partida já jogada (imagem: Federico Bur)

Quarta parte

Acontece que o Del Piero fala muito bem espanhol. Fala bem e descobrimos isso porque ele se aproximou para dizer que o jogo continua até que um time faça dois gols. No way, Alex. Não há chances de que este time de merda, ou seja, o nosso, faça dois gols. Nossa única chance, nossa utópica chance de ganhar esta prorrogação, se resume a fazer um gol do jeito que for, um verdadeiro GOL CAGADO. Não temos talento algum para fazer dois gols antes que vocês consigam. Ocorreu uma vez, no segundo tempo deste jogo de praia que está acontecendo graças ao alinhamento de todos os planetas e não vai voltar a acontecer. Se um eu dia for ao cassino e consigo o prêmio acumulado ou algo assim, vou pegar as minhas coisas e ir para a casa do caralho já que isso acontece uma e apenas uma única vez na vida. Del Piero aceita nossas condições e vamos jogar o famoso quem fizer ganha, o de Laurent Blanc na França 98 que deixou o glorioso Chilavert destroçado. Não há tempo de jogo, quem fizer o gol, ganha.

Começa a prorrogação e estamos jogando vida ou morte. Céu ou inferno. O empate foi maravilhoso e glorioso mas do segundo ninguém se lembra. Provavelmente eles nos vençam, mas terão que arrancar as nossas pernas porque isso, para nós, ESTA MERDA QUE ESTAMOS VIVENDO, é o ponto máximo de nossas inexistentes carreiras esportivas. Somos um grupo de seis Zé Ninguém na vida que está diante da situação histórica de sair da mediocridade de sua existência por uma vez.

Eles atacam por todos os lados, mas nós resistimos. Se o Reverendo Lovejoy dos Simpsons narrasse este momento ele diria “italianos a minha esquerda, italianos a minha direita, o time rival avança como uma locomotiva”. Mas nós aguentamos e esperamos qualquer lateral ou tiro de meta para jogar a bola na área e que esse suposto zagueiro dos anos 90, o goleiro ou algum outro italiano se equivoque e faça um gol contra.

Sobra uma bola quicando no meio de campo e um deles vai buscá-la. Eu me atiro nela em um carrinho pelo lado esquerdo e faço ele cair. A bola continua em jogo, girando sobre um montículo de areia e o sexto, esse que quase evitou que esta experiência existisse, domina com seu pé direito. Um deles chega fazendo um jogo de corpo. O sexta cai empurrando um pouco a bola e grita “faaaaaalta”. A bola está com o nosso melhor jogador e eu vejo tudo do chão. Ele a controla e eu grito “CHUTAAAAAA”, e o nosso melhor jogador chuta no segundo pau, no ângulo, convertendo, talvez, o gol mais lindo e importante de sua vida. E digo talvez porque eu não posso falar por ele mas sim por nós, pelo grupo. E quando alguém é capaz de gerar isso em seus amigos, essa alegria e esses abraços que seguiram durante horas e esses relatos que relembram essa anedota em cada reunião até o dia de hoje, quando já se passaram quase cinco anos, o feito pessoal é empurrado pelo coletivo e ganha maior relevância.

Sim, ganhamos uma partida impossível. Ganhamos uma partida que era impensada ter sequer a chance de jogar e que recusamos duas vezes por estarmos tomando cerveja e chutando uns pênaltis bizarros. O quê ou quem nos colocou neste preciso momento neste lugar? Por que o sexto finalmente declinou de sua ideia de não jogar? Qual foi a razão que levou dois dos nossos a não viajarem para Brasília? O quê, quem e por que tantas coisas. E o nosso defensor que passou pro meio, esse alto que gritava sem parar que o zagueiro central deles era da Seleção Italiano dos anos 90 tinha razão: era o Alessandro Costacurta. Ah, mais um detalhe, o rapaz que jogava muito bem e que fez o segundo gol é um tal de Daniele Adani, ex-jogador da Inter e Fiorentina.

Um dia fui com meus amigos à Copa do Mundo no Brasil e vencemos uma partida impossível. A melhor partida já jogada. Uma partida mais heróica que o Maracanazo de 1950.

*texto original em espanhol aqui

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