As apostas frustradas da Máfia do Apito

Em 2005, um dos mais famosos juízes brasileiros aceitou dinheiro de apostadores para manipular jogos da Libertadores, Sul-Americana, Paulistão e Brasileirão — um esquema que deu errado para contraventores e para o Ministério Público. Conheça os protagonistas e os bastidores do maior escândalo de arbitragem da história do futebol brasileiro

Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo
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33 min readNov 24, 2017

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Reportagem: Felipe de Queiroz
Edição: Alexandre de Santi e Maurício Brum
Colaboração: Henrique Kanitz

Santos e Guarani empatavam sem gols aos 26 do primeiro tempo quando Paulo César chutou de fora da área. O goleiro do Guarani, Jean, espalmou, mas a bola chegou aos pés de Basílio. Sozinho, o goleador santista empurrou para as redes.

Naquela noite de 10 de fevereiro de 2005, o time da Vila Belmiro jogava em casa e tinha tudo para fechar o sábado com três pontos. Líder do Paulistão, bastava ao Peixe derrotar o time de Campinas para seguir na ponta, empatado com o São Paulo. Robinho, em viagem com a seleção brasileira, desfalcava o alvinegro praiano, mas o time de Oswaldo de Oliveira ainda contava com outros craques que haviam levantado o troféu de campeão brasileiro de 2004, como Léo, Ricardinho, Deivid e o próprio Basílio. Além disso, Henao estreava como o novo titular debaixo da trave. Os sites de apostas — que eram incipientes no Brasil de 12 anos atrás — davam grande favoritismo para o time do litoral paulista: para cada 1 real apostado, a vitória do Santos pagava apenas 1,2. Tudo parecia conspirar a favor do Peixe.

Mas, assim que Basílio marcou o gol, o auxiliar levantou a bandeira. O árbitro, Paulo José Danelon, teve um instante para tomar uma das decisões mais difíceis da sua vida. Ele podia seguir a orientação do auxiliar e anular o gol. Ou validá-lo e embolsar R$ 10 mil. Se o Santos vencesse a partida, Danelon cumpriria a sua parte no esquema de manipulação de resultados no qual havia recém ingressado. O dinheiro viria das mãos de Nagib Fayad, um apostador bonachão, bem humorado e carismático, também conhecido como Gibão. Era uma figura popular no meio de jogos clandestinos de Piracicaba. No início dos anos 2000, sites de apostas já recebiam o dinheiro de apostadores brasileiros, mas boa parte dos negócios era feita fora da internet, com os bookmakers, os bancadores de apostas, que atuam informalmente no Brasil desde o final do século 19. Gibão era um homem de pequenos empreendimentos, em busca do “negócio de sua vida”. Junto de um grupo de apostadores, teria investido R$ 100 mil na partida na tentativa de lucrar com uma vitória do Santos.

Mas Danelon decidiu seguir a orientação do auxiliar e anular o gol. Os bandeirinhas Francisco Rubens Feitosa e Nelson Souza Góis não faziam parte do esquema, e o árbitro optou por aguardar um gol legal no resto da partida e não comprometer o trabalho dos colegas. Ainda era o primeiro tempo, e o campeão brasileiro tinha tudo para superar o Guarani. O auxiliar, no entanto, havia errado. Basílio estava em posição legal.

Danelon invalida gol de Basilio na Vila Belmiro. Foto: Fernando Pilatos/Gazeta Press

Dez minutos depois, Serginho entrou forte em Rossini, do Peixe. O meio-campista já tinha recebido cartão amarelo quando atingiu o santista na lateral direita do campo. Danelon decidiu cumprir sua parte no trato com Gibão e puxou o cartão vermelho. A falta poderia ter passado despercebida por um juiz menos rigoroso, mas Serginho foi para o vestiário antes do intervalo.

O Santos, que chegara à sexta rodada empatado na liderança com o São Paulo em 14 pontos, aproveitou o jogador a mais e pressionou o Guarani. Mas a equipe de Oswaldo de Oliveira foi incapaz de superar o adversário — mesmo com o apoio do juiz. A partida acabou empatada, sem gols. No dia seguinte, a Folha de S. Paulo destacou a má atuação do time santista e, principalmente, a pressão da torcida sobre o técnico. “A partir da metade até o fim do segundo tempo o treinador ouviu o grito de ‘burro, burro’ que partia das arquibancadas”, descreveu o jornal.

O grupo de Gibão perdeu os R$ 100 mil da aposta. Danelon tentou favorecer o Santos, mas o acordo previa pagamento apenas por resultado entregue, e a ineficiência do alvinegro praiano lhe custou o dinheiro prometido. Assim, de maneira atrapalhada, a quadrilha que mais tarde seria batizada de Máfia do Apito estreava dando prejuízo.

Paulo José Danelon apita Palmeiras x Mogi Mirim em 2003. Foto: Djalma Vassao/Gazeta Press

Danelon nasceu e cresceu em Piracicaba, uma das principais cidades do interior de São Paulo, onde ganhou seu sotaque caipira. O juiz nunca frequentou a elite da arbitragem e costumava ser escalado para jogos de campeonatos estaduais — muitas vezes em divisões inferiores. Mas ele transitava com facilidade entre os colegas de arbitragem. Em Piracicaba, promovia cursos de atualização profissional, que contavam com palestras de árbitros renomados.

Um dos seus alunos foi Vanderlei Pololi, um conterrâneo de Piracicaba. Era um pupilo estranho: aos 51 anos, Pololi estava impedido pela idade de arbitrar profissionalmente. O homem havia sido funcionário de uma agremiação esportiva da cidade de Piracicaba e tinha por tarefa comparecer com frequência à sede da Federação Paulista de Futebol, em São Paulo, levando documentos e pagamentos diversos relacionados com as obrigações do clube. Com as visitas à FPF, aproximou-se de pessoas do futebol. Pololi fazia o tipo falastrão. “Contava várias histórias do passado, dizendo que trabalhou na Federação Paulista de Futebol e conheceu muitos árbitros corruptos e que, inclusive, levava envelopes da escala com resultado pronto para esses árbitros”, contou Danelon à Polícia Federal, em setembro de 2005.

Pololi também conhecia Nagib Fayad. No curso, o caipira tagarela não queria se atualizar sobre as regras do futebol: ele estava tentando cooptar Danelon. Depois de se aproximar do árbitro, o homem deixou a porta aberta para que a quadrilha fizesse uma proposta pela lealdade de Danelon. O juiz recebia, na época, R$ 1 mil por jogo apitado e passava por dificuldades financeiras. A parceria foi fechada por Daniel Gimenes, um advogado amigo de Gibão — e apostador contumaz — , que ofereceu um “empréstimo” de R$ 7,5 mil. Danelon aceitou.

Aos poucos nascia a Máfia do Apito.

Depois de Santos e Guarani, Paulo José Danelon foi escalado para apitar Corinthians e Ponte Preta, em 23 de fevereiro. O grupo de apostadores orientou o árbitro a favorecer o time da capital paulista, que venceu por 3 a 0.

Naquela noite de quarta-feira, Banfield e Alianza Lima jogavam pela segunda rodada do grupo 6 da Copa Libertadores da América. O juiz era Edilson Pereira de Carvalho, outro árbitro do interior paulista e um dos maiores nomes do apito brasileiro na época. Aos 32 minutos, Edílson advertiu com cartão amarelo o meio-campista argentino Gustavo Barros Schelotto, destaque da equipe peruana. O Banfield executou uma cobrança rápida enquanto Schelotto e os companheiros discutiam com o árbitro. O argentino Jorge Cervera recebeu desmarcado na grande área e marcou 1 a 0 para o Banfield. O árbitro validou o gol. No gramado do estádio Florencio Sola, acanhada cancha localizada na grande Buenos Aires, o time peruano entrou em revolta.

O tento foi decisivo na vitória dos argentinos por 3 a 2 e acabou sendo fundamental para a classificação final daquela chave. Com a vitória, o Banfield chegou a quatro pontos, assumiu a segunda colocação do grupo e abriu três pontos de vantagem para a equipe peruana. Também foi a primeira atuação de Edilson Pereira de Carvalho pela Máfia do Apito — como o próprio admitiu meses depois à Polícia Federal. O árbitro recebeu R$ 10 mil pela vitória dos argentinos.

Edilson havia entrado para o grupo em setembro de 2004, quando recebeu uma visita na sua casa, na cidade de Jacareí. À sua porta, num condomínio de classe média alta na rua Sebastião Vitalino, um homem de 52 anos, cabelos brancos, estatura média e aspecto idoso o esperava. “Um tal Vanderlei”, como descreveu Edilson na época.

Era Vanderlei Pololi. Ele e Nagib tinham convicção de que Edilson poderia ser útil para os apostadores. Seu nome havia sido indicado por Paulo José Danelon. Quando se aproximou de Edilson, Pololi tinha uma proposta modesta: queria contratar o árbitro para atuar em jogos amadores em Piracicaba. Como árbitro do quadro da Fifa, Edilson cobrava uma taxa de R$ 2.500 por jogo. Mas, se concordasse em favorecer os interesses do time preferido de Pololi, o juiz poderia ganhar um troco extra. Edilson mantinha um padrão de vida confortável. Era casado, com uma filha de nove anos. Mas, embora fosse árbitro de primeira linha no Brasil, devia R$ 40 mil. Um dia, comunicou à esposa: “De repente, ele me disse. ‘Eu vou fazer. Vou aceitar o dinheiro’. Eu não sabia de nada”, lembra Márcia Aparecida Miguel, hoje divorciada do juiz, 12 anos depois do caso. A esposa não foi a favor, nem tampouco interferiu na decisão. Esperou, resignada, pelo desfecho.

Depois das primeiras experiências no Paulistão e na Libertadores, a quadrilha seguiu pincelando partidas para investir. No jogo entre Guarani e Atlético Sorocaba, em 13 de março, o combinado era que Danelon facilitasse um empate ou vitória do Galo — e a partida terminou 1 a 1. Em 3 de abril, a máfia orientou o árbitro a favorecer o União São João contra a Portuguesa Santista. Deu certo: o time de Araras venceu por 1 a 0.

Muito atrativo

Ronaldo trabalhava no mercado paralelo de apostas de São Paulo quando recebeu um email curioso no começo de 2005. Ele foi alertado por um apostador mexicano, acostumado a investir em jogos com altas recompensas (cotação maior que 1,8 no jargão do meio), que alguns jogos do Campeonato Paulista poderiam estar sob suspeita. “Ele disse: provavelmente tem alguma coisa errada no futebol brasileiro, porque os jogos desse juiz têm sido muito atrativos”, lembra Ronaldo, um nome fictício (a fonte pediu para ter sua identidade preservada). Ao referir-se a jogos “muito atrativos”, o mexicano falava não das cotações, mas de valores apostados, mais altos do que o esperado. O árbitro em questão era Paulo José Danelon.

Apesar de bancar com frequência apostas de futebol, Ronaldo ainda não havia percebido qualquer anormalidade. “Eu nunca tinha tido esse nível de conversa com ele. A gente discutia bastante futebol. Ele me dava dicas do México. E eu o orientava nos jogos do Brasil”. Além disso, a manipulação de resultados no futebol brasileiro era uma hipótese que parecia remota. Fazia mais de 20 anos do primeiro grande caso de corrupção envolvendo arbitragem no país: a chamada Máfia da Loteria Esportiva, revelada pela revista Placar em 1982. E o último caso a provocar dúvidas, em 1997, jamais havia sido comprovado. Na época, suspeitou-se da existência de um esquema de manipulação de resultados envolvendo Ivens Mendes, então presidente Comissão Nacional de Arbitragem de Futebol. As investigações nunca chegaram a qualquer conclusão, mas serviram de pretexto para a CBF cancelar os rebaixamentos de Fluminense e Bragantino no Brasileirão de 1996.

As suspeitas ficaram restritas ao submundo das apostas. Trinta dias depois de estrear como árbitro da Máfia do Apito, Edilson voltaria a entrar em campo. Após derrota por 2 a 0 para o Corinthians, pela 11ª rodada do Campeonato Paulista, o Palmeiras fazia campanha decepcionante e ocupava a 10ª colocação no torneio estadual, com 17 pontos. Desacreditado, o time alviverde viajou a Rio Preto para encarar o América que, com 16 pontos, brigava diretamente no meio da tabela com o grande da capital.

Escalado para a partida, Edilson fora prometido novamente R$ 10 mil para interferir no desfecho. Diante da má fase palmeirense e da “boa atuação” do árbitro na Libertadores, Nagib e associados pediam por mais uma derrota da equipe alviverde, dirigida por Candinho. “Foram duas expulsões. Foram duas penalidades para cada lado e houve ainda uma penalidade para o Palmeiras que eu não dei”, disse o árbitro, em entrevista ao programa Fantástico, no final de 2005.

Manipular jogos, no entanto, não é tarefa fácil. A reportagem da Folha de S. Paulo publicada no dia seguinte descreve o momento da partida em que o árbitro se complicou e prejudicou o América, a quem deveria beneficiar. “Logo depois (do primeiro gol do Palmeiras, quando o América liderava por 2 a 1), um equívoco do árbitro fez o América ficar com um jogador a menos. O zagueiro Chicão parou um ataque palmeirense com falta. O árbitro o expulsou levantando primeiro o cartão amarelo e, depois, o vermelho. O zagueiro do América, porém, ainda não havia sido advertido”, diz a matéria, que traz a palavra de Edilson, explicando o lance, ao deixar o gramado: “Eu me equivoquei ao puxar o amarelo, mas o que vale é o vermelho, e a falta era para expulsão”. Mas Edilson cumpriu a missão: o Palmeiras voltou para a capital paulista goleado por 4 a 1, e o juiz embolsou o dinheiro.

Oito dias depois, o árbitro voltava a campo. Desta vez, para favorecer a vitória do Corinthians, que enfrentava o Guarani, em Campinas. O Timão saiu com a vitória por 2 a 0, em uma partida tranquila e sem maiores polêmicas. O árbitro abocanhou mais R$ 10 mil.

Em pouco mais de um mês a serviço da Máfia, a situação financeira de Edilson praticamente se resolvera. A dívida de R$ 40 mil fora reduzida em 75%. Mesmo assim, o árbitro não quis parar. “O dinheiro veio fácil. Uma nota em cima da outra. Dez mil reais, e eu me deixei corromper”, disse, na época.

O promotor José Reinaldo Guimarães (centro). Foto: Divulgação/MP-SP

Danelon, conforme ficaria comprovado meses depois, atuaria de maneira desonesta em pelo menos quatro jogos do Paulistão, tendo recebido dinheiro em três deles. “Os sites começaram a desconfiar do Edilson e do Danelon, porque percebiam uma movimentação diferente quando eles eram escalados”, lembra o promotor José Reinaldo Guimarães Carneiro, do Ministério Público do Estado de São Paulo, que atuou no caso da Máfia do Apito em parceria com Roberto Porto, ambos pelo Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco).

A suspeita de manipulação de jogos do Paulistão chegou à redação da revista Veja. No mês de abril, a editora Thais Oyama e o repórter André Rizek começaram a apurar a denúncia. Eles tinham uma evidência que levava a Paulo José Danelon, e compartilharam a informação com o Ministério Público. “Quando a Veja veio com a denúncia, a gente disse: você acredita em Papai Noel? Cegonha? Eu não acreditei”, lembra Guimarães Carneiro sobre o dia em que o caso chegou à sua mesa no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo.

Então, começou o Campeonato Brasileiro de 2005.

Em 8 de maio, Edilson entrou em campo para apitar Vasco e Botafogo, em São Januário. Naquele domingo de Dia das Mães, o clássico carioca teve um primeiro tempo movimentado, mas sem gols. Aos 17 minutos da etapa final, o botafoguense Rafael Marques entrou na área com a bola dominada, driblou Everton e foi derrubado. Edilson marcou pênalti, convertido por Alex Alves. O Botafogo ganhou o jogo por 1 a 0.

Meses depois, em entrevista à revista Veja, Edilson admitiu que a penalidade assinalada para o Botafogo não deveria ter sido marcada. E, em depoimento à Polícia Federal, confirmou ter recebido dinheiro para manipular a partida.

Edilson passou dois meses sem ser escalado para jogos do Brasileirão, e Danelon não fazia parte do quadro da CBF para o campeonato nacional. A máfia só voltou a atuar em 2 de julho, quando Edilson pisou no gramado do Moisés Lucarelli, em Campinas, para apitar Ponte Preta e São Paulo — com a missão de ajudar o time da capital paulista. O plano do grupo, no entanto, foi frustrado por erros improváveis do goleiro Rogério Ceni, que vivia grande fase.

O técnico do São Paulo, Paulo Autuori, decidiu poupar os titulares para a próxima rodada da Copa Libertadores. Ceni foi o único jogador do time principal a pisar em campo. Aos 33 minutos do primeiro tempo, o goleiro e capitão errou a saída do gol para interceptar um cruzamento, se chocou com o companheiro Flávio e deixou a bola livre para Evando marcar o gol da Ponte.

No final do jogo, Paulo Mattos arrancou com a bola área adentro e foi derrubado por Éverton. Edilson marcou pênalti para o São Paulo. Rogério Ceni foi para a cobrança, mas o goleiro Lauro pegou. O jogo terminou em 1 a 0 para o time da casa e deu prejuízo para Gibão e companhia.

Na sua terceira partida pelo Brasileiro, em 16 de julho, Edilson foi o juiz de Paysandu e Cruzeiro. Foi um jogo sem polêmicas, na qual a Raposa levou os três pontos com uma vitória por por 2 a 1. Mais tarde, Nagib sugeriu que a quadrilha perdeu dinheiro na rodada. Os prejuízos se acumulavam.

Edmundo em ação pelo Figueirense contra o Juventude. Foto: Jefferson Botega/RBS/Gazeta Press

A máfia seguia confiando em Edilson, mas então ressurgiu Edmundo na tarde de 24 de julho. O árbitro ganhou a missão de favorecer o Juventude contra o Figueirense, no Alfredo Jaconi. Mas, aos 34 anos, o Animal anotou três gols e garantiu a vitória de 4 a 1 dos catarinenses sobre os gaúchos. Uma semana depois, Edilson recebeu uma tarefa encrespada: garantir a vitória do Corinthians contra o Santos, o atual campeão brasileiro, na Vila Belmiro.

Aos 22 segundos de jogo, o ídolo Giovanni marcou o primeiro gol do Peixe. O veterano estava inspirado: no início do segundo tempo, fez fila na zaga do Corinthians e deu uma assistência perfeita para Ricardinho marcar 2 a 1. Aos 14 minutos, Giovanni fez um golaço de fora da área. A partida terminou 4 a 2 para o Santos — um jogaço. Na capa do caderno de esportes do dia seguinte, a Folha de S. Paulo estampava: “Até Pelé aplaude Giovanni”. Edilson não teve chance. Depois de quatro fracassos, a quadrilha acumulava mais de R$ 400 mil em apostas que foram para o buraco.

Ao fim de julho, o Ministério Público conseguiu na Justiça a autorização para grampear os telefones dos envolvidos.

Gibão: Aquele dia no Corinthians, também, você podia ter dado pênalti para o Corinthians, lá, né?

Edilson: Pro Corinthians eu vacilei, foi um… e talvez ficasse 2 a 2, né?

Gibão: Faz cinco, quatro jogos que nada dá certo. Quebrou.

Edilson: Amanhã eu faço Vasco e Figueirense.

Fayad: Qualquer coisa eu ligo pra ocê. Tô desanimado. (…) Faz o seguinte: deixa eu ligar pra ocê até meia-noite, deixa que eu vou ver o que fazer.

Edilson: Tá joia, o que você quiser. Pode jogar até os carros que você tem que amanhã eu saio de escolta (do jogo) do Figueirense.

Fayad: Não, beleza.

Edilson: Pode jogar até os seus carros pra gente tirar um pouco a diferença, pra mim e pra você, alguma coisa. (…) Vê o limite que você pode jogar e mete ferro, que eu meto ferro dentro de campo. Que eu tô invocado e você também, né?

A conversa foi gravada em 6 de agosto, na véspera de Vasco e Figueirense. O árbitro estava escalado para apitar o jogo. A partida em São Januário não representava muito para o Brasileiro, mas era decisiva para o esquema. Diante do prejuízo das últimas rodadas, Fayad estava cético sobre uma nova aposta. Mas ele liga de novo para Edilson e confirma o investimento.

Horas antes do jogo, os parceiros voltam a conversar:

Nagib: Meu amigo, pelo amor de Deus, filho, duas vez foi duzentos milhão (200 mil). Eu não aguento mais. É questão de vida ou morte. Eu não sei mais o que fazer.

Edilson: Hoje eu vou marcar falta no meio de campo. O cara reclama e eu já meto para fora. Vou forçar a barra rapidinho, eu já vou ficar provocando. Quando eu dou a falta, ele reclama e eu já vou para cima.

Nagib: Eu vou tentar ganhar um pouquinho, vou tentar salvar um pouco e vou deixar 10 mil pra você.

Edilson: 10 mil é complicado. 10 mil pela minha carreira.

Nagib: Você tem que me ajudar, porque “foi” duas pauladas que eu tomei, entendeu?

Edilson: Eu fico 3 (jogos) fora, aí já são 10 mil, né? Eu fico 3 fora de escala por causa de erros que eu vou cometer pra nós, né, se eu fico fora de escala três dá na mesma, meu amigo.

Em seguida, Gibão reclama da atuação do juiz no Santos e Corinthians, quando Giovanni fez chover.

Nagib: Contra o Santos, você não deu aquele pênalti para o Corinthians, pelo amor de Deus, rapaz!

Edilson: Nesse eu vacilei.

Nagib: Mas essas coisas que não podem acontecer, que eu fui para o buraco cada vez mais. Pelo amor de Deus, rapaz.

Edilson: Contra o Juventude você viu que não tinha jeito. Você viu que barbaridade que o Edmundo fez.

Nagib: Sabe o que tem que fazer? Não deixar a negada nem atacar.

Edilson: É como eu estou pensando em fazer hoje. Marcar uma falta que não existiu. O cara reclama eu dou amarelo. Uma falta que ele sofrer no meio campo eu não dou a falta e o Vasco vai para a frente. E já meto uns pênaltis. Mas, poxa, aumenta esse negócio aí, 10 contos é complicado.

Nagib: Eu vou tentar pegar 15 conto. Me ajude aí, pelo amor de Deus.

Minutos antes de embarcar para o Rio de Janeiro, Edilson se encontrou no Aeroporto de Congonhas e recebeu seus R$ 15 mil — dessa vez de forma antecipada. O incentivo ao juiz trouxe resultados: o Vasco abriu o placar aos 25 do primeiro tempo, em pênalti cobrado por Romário. O jogo terminou 2 a 1 para os cariocas, e a quadrilha voltou a lucrar.

Nagib Fayad deixa a Policia Federal em setembro de 2005, após o estouro do escândalo. Foto: Marcelo Ferrelli/Gazeta Press

No mundo das apostas

As gravações revelaram para os procuradores as entranhas do esquema. O grampo frequentemente fracassa nas investigações, mas prosperou no caso de Edilson, Gibão e companhia. “Muitas vezes você faz uma interceptação telefônica e nada acontece. A Máfia do Apito foi o contrário. Foi a interceptação mais surpreendente da qual eu participei, porque, na primeira semana, a gente já tinha muita coisa completa”, diz o promotor Guimarães Carneiro.

O gerente do esquema era Nagib segundo a denúncia do Ministério Público. “Ele tinha uma facilidade muito grande de cooptar as pessoas”, diz Carneiro. Mas, segundo a investigação da Polícia Federal, havia uma figura mais poderosa bancando as apostas do grupo: Pedro da Rocha Brites, um empresário rico e influente de São Paulo.

Na época, Brites era proprietário e diretor de um clube de sinuca, o Nineball, localizado na rua João Cachoeira, no Itaim, zona sul de São Paulo. O estabelecimento, na verdade, era uma casa de pôquer camuflada ou, dependo do olhar, um cassino ilegal. Naqueles anos, o “esporte da mente” (como gostam de chamar seus aficionados) era enxergado como jogo de azar, o que tornava seus praticantes e organizadores contraventores.

Na denúncia encaminhada pelo Gaeco à 2ª Vara Criminal da Comarca de Jacareí, em 2005, os investigadores afirmam que Nagib e Pedro Brites foram interceptados comentando os valores apostados e as dificuldades e soluções para o encaminhamento das fraudes — além deles, as gravações mostraram a participação de Fernando Catarino, técnico de informática de um site de apostas que servia como laranja e fazia apostas para Nagib em seu nome. “Pedro Brites foi interceptado orientando terceiros para que fizessem desaparecer de seus escritórios quaisquer evidências que o ligassem à organização criminosa”, diz a denúncia dos procuradores.

Brites era (e continua sendo) um protagonista do mercado dos clubes de jogos, nome ilustre entre apostadores. Seu Nineball teve importância para o desenvolvimento do pôquer no país — uma febre hoje. Além do Nineball, manteve outro estabelecimento, o Espaço Zahle, localizado numa travessa da Avenida Brigadeiro Luis Antônio, referência em sua gestão por sediar as mesas mais caras da cidade.

Embora tivesse notoriedade na jogatina, Brites passou despercebido pelo noticiário da Máfia do Apito. Mas, para o Ministério Público, ele tinha papel fundamental: era o homem poderoso por trás de Nagib. O empresário, popular e querido no meio do jogo, era o financiador do esquema — de seus cofres, saía dinheiro para os bolsos de Edilson e Danelon de acordo com os investigadores. “O Pedro era a interface do Nagib com os cassinos”, diz o promotor Guimarães Carneiro.

Pedro da Rocha Brites nasceu em Santos, em 1955, um de três filhos de Deolinda e Joaquim da Rocha Brites. Dezenove anos antes, seu pai, aos 13 anos, chegava ao Brasil vindo da comunidade de Bustos, Portugal, para fazer história e fortuna no Porto de Santos.

Como um Matarazzo da baixada, Joaquim personificou a história do imigrante que vence por meio do trabalho. Ao longo da vida, prosperou no mercado do pescado e se tornou o maior representante do ramo em Santos. O pai de Pedro é um dos homens mais ricos do litoral paulista — e um dos mais influentes. Coleciona cargos e honrarias em associações e sociedades ligadas à colônia portuguesa. Foi por muitos anos presidente da Associação Atlética Portuguesa, a Portuguesa Santista, considerado um dos homens mais importantes da história do clube, uma espécie de Vicente Matheus da Briosa.

A fortuna da família permitiu que Pedro perseguisse a paixão pelas apostas. Brites se tornou um grande operador do mercado, abriu casas de jogos e foi um pioneiro no pôquer no Brasil. Seus negócios foram muito além das fronteiras da cidade: Pedro foi um dos poucos brasileiros a trabalhar como casino junket, um profissional legalizado que trabalha como intermediário entre a casa e seus clientes mais ricos. Todo ano, milhares de pessoas viajam a Las Vegas, Macau e outros cassinos importantes pelo mundo, depositando dólares nas máquinas de caça-níquel, roletas e mesas de pôquer e baccarat.

Para atrair os endinheirados, os estabelecimentos contam com operadoras que, por sua vez, contratam os junkets ao redor do mundo. São pessoas que conhecem os endinheirados locais e formam os grupos para as excursões da jogatina. Milionário, influente no meio do jogo e amigo dos ricos e poderosos, Brites foi um dos poucos brasileiros a exercer a profissão. “Fui, por mais de 10 anos, representante dos principais cassinos do mundo”, me disse o empresário em entrevista por telefone. “Para ser junket você tem que passar por uma autorização minuciosa do governo dos Estados Unidos. Responder a um longo questionário”.

O dia a dia da profissão rendeu a Pedro uma rotina de glamour, ao lado do jet set internacional. Em um dos poucos registros jornalísticos das passagens da família Brites por Las Vegas, Pedro e seu filho Caio (que também atua como junket) posam ao lado do americano Phil Hellmuth, o Pelé do pôquer, após disputarem um torneio exclusivo para convidados no hotel Aria Casino, um dos principais de Las Vegas. São chamados para esses eventos parceiros do hotel ou clientes que tenham gasto no cassino uma pequena fortuna — geralmente em torno de US$ 1 milhão.

No início dos anos 2000, Nagib Fayad às vezes frequentava o Nineball, o clube de sinuca e jogos de Brites, palco das mais caras partidas de pôquer de São Paulo. Mas as suas visitas começaram a ficar mais frequentes em 2005 de acordo com Danilo (nome fictício), um empresário e jogador amador de pôquer desde o começo dos anos 2000, que pediu para se manter anônimo. O Nineball foi o primeiro clube de Danilo, e lá conheceu Pedro Brites e Nagib. “O Pedro tinha um escritório no segundo andar, junto com o Cash Game. Mas geralmente eles conversavam no meio do salão mesmo”, lembra Danilo. Para o Ministério Público, as investidas de Nagib ocorriam para garantir o dinheiro das apostas e do aliciamento dos árbitros.

No mercado de apostas, Pedro Brites era parceiro de Ronaldo, o apostador alertado por email que um escândalo se anunciava na arbitragem brasileira. “O Pedro sempre foi conhecido por ser uma pessoa muito correta. Por pagar corretamente os clientes”, conta Ronaldo. Em um negócio em que apostadores investem milhares de reais sem garantia legal, ser um bom pagador é uma qualidade primordial no ramo. O mundo das apostas era diferente em 2005, quando Danelon e Edilson começaram a adulterar resultados em campo. Os sites de apostas, hoje sucesso de público, eram embrionários no país. Atendiam poucos clientes e movimentavam quantias pequenas, se comparadas com os investimentos de milhares realizados no mercado informal, coordenado por bookmakers. “Nenhum jogador de verdade joga em site, pois eles aceitam até U$ 50. Os jogadores apostam R$ 100 mil, R$ 500 mil, R$ 1 milhão, com banqueiros de jogos, numa relação de confiança em que os acertos de dinheiro são quinzenais”, disse Nagib, em depoimento à Comissão de Turismo e Esportes da Câmara dos Deputados, em novembro de 2005.

Algumas apostas — e isso vale para a Máfia do Apito — eram feitas em sites. Mas as mais caras eram operadas no mercado informal, e os sites eram usados apenas como indexadores, indicando a cotação ideal para cada aposta. “Os contatos eram feitos por telefone. Os depósitos eram feitos de todas as maneiras: em conta, de empresa ou pessoa física”, conta Ronaldo. A divulgação se dava pelo boca a boca: “Os clientes contavam uns para os outros e você combinava um teto (para as apostas) com o cara”.

Como era confiável e rico, Brites era bastante requisitado pelos apostadores porque tinha fundos para bancar apostas mais altas. E, por ter bom relacionamento com o mercado, acabava ajudando outros bookmakers, com os repasses de apostas. Funciona assim: se um bookmaker tem R$ 100 de lastro, não pode bancar uma aposta com prêmio de R$ 200 para o apostador. Para atender ao cliente, ele recebe o dinheiro, mas repassa parte dos ganhos para outro bookmaker em troca da divisão dos lucros. “Todos acabavam trabalhando com ele”, diz Ronaldo, em referência a Brites. “Como tinha bastante dinheiro, recebia repasses de todos os bookmakers e lucrava com isso”. O empresário, no entanto, nega que fosse um bancador de apostas. “Eu gosto de apostar”, diz Brites, ao telefone, ao ser questionado sobre sua participação na Máfia do Apito. “Mas eu não bancava apostas”.

Edilson joga moeda para Tevez e Rogerio Ceni antes do clássico no Morumbi. Foto: Fernando Pilatos/Gazeta Press

Até o início de agosto de 2005, entre lucros e prejuízos, a máfia havia atuado em seis jogos do Brasileirão e começava a ruir por dentro. Em trechos interceptados, Edilson tentou extorquir seus próprios comparsas. “Havia coisas laterais. Ele dizia: ‘preciso de mais dinheiro porque o bandeira está no esquema’”, conta o promotor Guimarães Carneiro. “Você ia investigar e via que o bandeira não estava no esquema. Ele vendia (o bandeira) para conseguir mais dinheiro”.

Na rodada seguinte, o árbitro ofereceu Cruzeiro x Botafogo para os comparsas, mas não houve interesse dos apostadores. Edilson ainda apitou Juventude x Fluminense e Internacional x Coritiba ao longo de agosto.

No feriado de 7 de setembro, Corinthians e São Paulo se enfrentariam no Morumbi, com arbitragem de Edilson Pereira de Carvalho. Nagib já reclamava que o esquema estava saindo do controle. “Corinthians e São Paulo não tem cotação. É o juiz que vai apitar”, diz Gibão em conversa interceptada com um interlocutor não identificado. “A negada vê que o juiz vai apitar. A negada não cota mais o jogo”. A desconfiança estava no ar.

Em meio às investigações, ainda inconclusas, Guimarães Carneiro decidiu acompanhar, como torcedor são-paulino, o clássico paulista. Era uma situação insólita: o promotor sabia que Edilson havia oferecido o resultado para Nagib e sua turma. Todo torcedor suspeita da índole do árbitro no calor do jogo. Mas seria a primeira vez que Carneiro iria ao Morumbi sabendo que o juiz da partida era comprovadamente corruptível. Com grande atuação de Amoroso, o São Paulo superou o rival por 3 a 2.

Para o Ministério Público, a desconfiança virou certeza pouco mais de duas semanas após o clássico. Quando Guimarães Carneiro decidiu seguir em frente com as acusações, também deu luz verde para a revista Veja tornar o escândalo público.

Escândalo

Edilson apareceu na capa da maior revista semanal do país de uniforme azul, apontando para a frente com a mão direita, escudo da Fifa no lado esquerdo do peito. “EXCLUSIVO: A MÁFIA DO APITO”, era a chamada da Veja.

A revista chegou aos assinantes e às bancas numa sexta-feira, 23 de setembro de 2005. O texto assinado por André Rizek e Thais Oyama era explosivo: revelava a existência do maior esquema de corrupção descoberto no futebol brasileiro em mais de duas décadas. Edilson e Danelon eram os personagens principais da história revelada no texto.

Às 23h, os agentes da Polícia Federal bateram na porta da casa de Edilson, em Jacareí, com mandados de prisão e de busca e apreensão de seu computador. Mas, por norma constitucional, a PF só pode efetuar prisão em domicílio durante o dia. Edilson, acompanhado da ex-mulher e da filha, esperou, em claro e com policiais acampados em frente a sua casa, até as 6h. Só então foi encaminhado à cela 2 da Superintendência da Polícia Federal, na capital paulista. Na mesma noite, em uma boate em São Paulo, a Polícia Federal deteve Nagib Fayad.

Em um ano em que o Corinthians fazia manchetes pelas contratações de peso em parceria com a MSI, como Tévez e Mascherano, e o Inter disputava a liderança ponto a ponto sob o comando de Muricy Ramalho, o foco mudou de repente. Naquele final de semana, o que acontecia dentro de campo importava menos do que as decisões tomadas fora dele. Desde a noite daquela sexta-feira, o noticiário brasileiro havia sido tomado pelo caso.

Enquanto as páginas esportivas se misturavam com o caderno policial, a bomba caiu no colo de Luiz Zveiter, então presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD). Juntos, Edílson e Danelon haviam apitado 40 jogos suspeitos ao longo de 2005: dois pela Libertadores, um da Copa Sul-Americana, 22 no Paulistão, quatro da Série B nacional e onze pelo Brasileirão. Zveiter, no entanto, se focou apenas nas partidas da Série A nacional. A Libertadores e o Paulistão haviam terminado, o que serviu de justificativa para não alterar os jogos. Ainda em andamento, a Sul-Americana estava na alçada da federação do continente, a Conmebol. A Série B estava nas semifinais, e anular os jogos da primeira fase poderia alterar o chaveamento, mas não os participantes das finais.

Antes de tomar sua decisão, Zveiter procurou o Ministério Público e a Polícia Federal, buscando saber exatamente quais jogos haviam sido maculados. De início, o magistrado relutou em anular todas as 11 partidas arbitradas por Edilson naquele Brasileirão. “O Zveiter tomou a frente para entender o que está acontecendo. Ele veio com o pensamento de salvar o Campeonato Brasileiro”, lembra o promotor Guimarães Carneiro. Zveiter convocou o árbitro, policiais e procuradores para conversar na Polícia Federal, em São Paulo. Quando o presidente do STJD terminou de ouvir o juiz, decidiu, ali mesmo, na porta da PF, anunciar que cancelaria todas as partidas. “Conversando com o Edilson, em cinco minutos você vê que ele é um estelionatário absolutamente inconsequente. Não tem como delimitar o que ele fraudou. Fraudou tudo”, entende Guimarães Carneiro. Danelon e Brites e os outros envolvidos não foram presos no dia 23, mas também foram chamados a prestar esclarecimentos.

Edilson e Nagib ficaram cinco dias na Superintendência da Polícia Federal, em São Paulo. O árbitro pouco chamou a atenção naquela semana. Atrás das grades, se manteve abatido e calado. “Fiquei numa cela junto com dois delegados da Polícia Federal, que estavam presos também. Não lembro o nome deles. Eu só ficava na cela e não saía para nada. Eles ficavam jogando baralho, dominó e saíam para fazer exercício. Eu só fiquei na cela chorando”, me disse o ex-árbitro.

Na cela ao lado, estava Nagib, bem menos abatido. O apostador não abandonou seu estilo bonachão, falador e carismático. E ainda aproveitou o tempo para fazer contatos entre os outros presos. Um deles, bastante famoso: o tradicional cacique da política paulista, Paulo Maluf. O ex-governador de São Paulo e ex-prefeito da capital esteve, ao lado de seu filho Flávio Maluf, detido pela PF de 10 de setembro a 20 de outubro daquele ano. Os dois eram acusados de formação de quadrilha, corrupção passiva, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. “Quando venceu a temporada dele (na superintendência), Nagib saiu prometendo que no ano seguinte seria cabo eleitoral do Paulo Maluf em Piracicaba”, lembra o promotor Guimarães Carneiro (um ano depois, Maluf foi o deputado federal mais votado do país, com 739 mil votos).

Edilson e Nagib foram liberados em 28 de setembro e nunca mais foram detidos. Ao deixar a prisão, Edilson sentiu de cara o peso da condenação popular ao ser agredido por um torcedor em frente ao prédio da PF. Nos estádios, o grito “Edilson” se tornou por algum tempo o impropério favorito de torcedores insatisfeitos com a arbitragem: pelo resto do campeonato, seu nome seria usado no país inteiro como sinônimo de “juiz ladrão”.

Então presidente do STJD, Luiz Zveiter anuncia a anulação dos 11 jogos apitados por Edilson. Foto: Ivo Gonzalez/Agência O Globo

Zveiter confirmou a anulação das partidas no final de semana seguinte, na manhã do domingo 2 de outubro, anunciando que elas começariam a ser disputadas novamente dali a dez dias. A decisão foi polêmica, e muitos críticos discordaram da remarcação até mesmo de partidas em que, alegadamente, a manipulação não teria funcionado.

Pontos trocaram de mãos em nove das onze partidas remarcadas. O Cruzeiro foi a equipe mais prejudicada: perdeu cinco pontos. Mas, com ou sem anulação, os mineiros não mudariam seu destino na tabela: seguiriam apenas com uma vaga na Copa Sul-Americana. O grande perdedor após o escândalo foi mesmo o Internacional, que buscava seu primeiro grande título desde a Copa do Brasil de 1992. No final de semana da prisão de Edilson, os gaúchos estavam em segundo lugar, a três pontos do Corinthians. Zveiter anulou um jogo do Inter, um 3 a 2 colorado sobre o Coritiba. Com a nova partida, os gaúchos só podiam defender os três pontos. E foi o que a equipe de Muricy Ramalho fez: resgatou o mesmo 3 a 2, no único jogo que manteve o resultado entre as partidas refeitas a mando do STJD.

O Corinthians, no entanto, havia perdido suas duas partidas anuladas. A decisão de Zveiter veio como uma bênção ao Parque São Jorge. Dos seis pontos possíveis, o Corinthians recuperou quatro. Ao fim da competição, a equipe paulista teria um total de 81 pontos contra 78 dos colorados. Mas, pela tabela antiga, o Inter seria o campeão, já que o alvinegro pararia em 77 pontos.

Após a última rodada da competição, a equipe gaúcha deu uma volta olímpica constrangida. Comemorava um título que, já sabia, nunca seria reconhecido. Apesar da indignação colorada, prevaleceram os resultados obtidos após a anulação.

Arquivados

Edilson, Nagib, Vanderlei Pololi, Danelon, Pedro Brites, Francisco Catarino e Daniel Gimenes foram denunciados pelo Ministério Público pelos crimes de estelionato, formação de quadrilha e falsidade ideológica. O processo foi aberto na 2ª Vara Criminal de Jacareí e recebido, na época, pela juíza Antônia Brasilina Farah. Passados 12 anos, no entanto, a Justiça não condenou criminalmente os integrantes da Máfia do Apito. Após os recursos dos acusados, a prática de manipulação de resultados para enriquecimento por meio de apostas não foi considerada crime pelos desembargadores Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP).

O sepultamento do caso ocorreu em 20 de agosto de 2009, na 7ª Câmara Criminal do TJ-SP. Após vários adiamentos, o desembargador Cristiano Kuntz deu seu voto acompanhando a posição já demonstrada anteriormente por seus colegas: no seu entendimento, a Máfia do Apito não podia ser enquadrada nas infrações denunciadas pelo MP e acolhidas pela juíza de primeira instância. Os envolvidos no caso realmente eram culpados por “fraudar competições”, mas o ato não era tipificado em nenhuma lei da época.

Na véspera da decisão judicial, ironicamente, os dois times que disputaram o título de 2005 estiveram envolvidos em um novo jogo com arbitragem polêmica: no Beira-Rio, o Corinthians fez 2 a 1 no Internacional graças a dois gols que deveriam ter sido anulados por impedimento. O Inter acabaria perdendo o campeonato daquele ano, para o Flamengo, por dois pontos. Cristiano Kuntz usou o episódio para ilustrar o raciocínio que levou ao seu voto: “li nos jornais que o Corinthians ontem ganhou do Internacional com dois gols irregulares. Nem por isso alguém vai ser processado por roubo”, argumentou.

“Denunciamos por estelionato e por quadrilha. O TJ disse não ser uma infração penal. Pode ser reprovável do ponto de vista ético, mas crime não é. Trancou”, diz o promotor Guimarães Carneiro. Ele lembra, porém, que ainda existe um recurso a ser julgado no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A nova aliada da Máfia do Apito, agora, é a morosidade da justiça brasileira: o caso chegou às mãos do relator em Brasília em 2013 e ainda não tem data para ser julgado. Se o MP vencer o recurso, os envolvidos no escândalo ainda poderiam ser condenados pelos crimes da denúncia original.

O Congresso, no entanto, fechou uma das portas que levaram à impunidade da Máfia. Em 2010, a Lei 12.299 incluiu no Estatuto do Torcedor um artigo prevendo pena de dois a seis anos de reclusão para quem “fraudar, por qualquer meio, ou contribuir para que se fraude, de qualquer forma, o resultado de competição esportiva”.

Além do processo criminal, os acusados também enfrentaram um processo civil. Este avançou mais: em 2011, Nagib, Edilson, Danelon, a CBF e a FPF foram condenados a pagar conjuntamente indenizações milionárias por “danos morais e materiais causados aos consumidores” do Campeonato Brasileiro. Para a Justiça, a punição também cabia às federações por não terem cumprido o dever de garantir o “regular andamento dos campeonatos”. O valor total chegava aos R$ 180 milhões, mas dois anos mais tarde a pena foi reduzida para R$ 20 milhões no processo envolvendo a CBF e R$ 4 milhões no caso da FPF. Nagib, Edilson e Danelon continuam tendo que participar no pagamento das indenizações, ao lado das federações. O recurso ainda não foi julgado.

Em conversa por telefone comigo, Nagib deu a sua posição: “O caso (da indenização) está resolvido”, diz. “Não tenho dinheiro e não pago. Então está resolvido”. Por ser uma condenação em caráter solidário, se um dos réus não tiver condições financeiras de arcar com o valor, a conta recai sobre os demais.

Pedro Brites me procurou em uma manhã de quinta-feira, na última semana de 2016. Estava descontente por ter a vida investigada e queria esclarecimentos sobre o tema que havia motivado o contato original com um de seus escritórios. Brites não escondeu a irritação ao saber que a reportagem abordaria suas ligações com a Máfia do Apito. Mesmo assim, concordou em conversar.

Solícito, falou do caso, negou qualquer participação e disse que tudo não passava de um mal-entendido. “Conheço o Nagib há 30 anos. Ele é meu amigo e me pediu dinheiro emprestado na época. Disse que precisava cobrir uns cheques”, conta Brites, que diz ter conhecido Gibão quando o apostador de Piracicaba era seu cliente em uma agência de viagens chamada Stand By, sediada na avenida Ibirapuera, em São Paulo.

Brites admite que os reais que bancavam a Máfia possam ter saído de sua conta. Alega, no entanto, que não tinha ideia do que acontecia com as grandes somas de dinheiro que emprestava a Gibão. Segundo ele, a prática de efetuar empréstimos substanciais é normal ainda hoje, desde que a pessoa seja de sua confiança. “Sempre socorri muita gente. Todos os dias alguém me liga pedindo dinheiro”.

Ele também defende Nagib. Para Brites, Gibão é a grande vítima, um ingênuo que teria se prejudicado ao ser ludibriado por Paulo José Danelon a investir em apostas de pouco retorno. “É um bobo. Por que alguém pagaria um juiz para roubar para o Santos contra o Guarani na Vila? Por que alguém investiria 100 mil para lucrar 23 mil?”, questiona Brites, referindo-se à desastrosa estreia da Máfia do Apito no Campeonato Paulista de 2005.

Ao mencionar o jogo, Brites afirmou: “foi quando fiquei sabendo do caso”. Questionado sobre como sabia da situação se a partida aconteceu oito meses antes de a reportagem da Veja denunciar o escândalo, ele voltou atrás. “Fiquei sabendo pela revista, mas esse jogo me chamou a atenção”.

Pedro Brites teve uma saída discreta do escândalo. “A Justiça não me considerou réu”, defende-se Brites, que havia sido denunciado apenas na esfera criminal, onde o caso não foi adiante. O arquivamento, porém, não o tirou dos olhos do Ministério Público. As interceptações telefônicas que pretendiam incriminar os réus da Máfia tiveram um efeito imprevisto na vida do empresário: os áudios revelaram também outras irregularidades — indícios de sonegação fiscal surgiram em conversas entre Brites e sua secretária.

Segundo documento publicado pelo Tribunal Regional Federal (TRF) em 19 de janeiro de 2012, sete anos após as gravações:

constam nos autos transcrições de diálogos interceptados que sugerem de forma veemente a sua intenção de conseguir notas frias para, em suma, reduzir, ilicitamente, o suposto crédito tributário relativo ao IRPF, no importe de R$ 3.000.000,00, conforme diálogo com Marcia Lilian Favilli.

O caso de sonegação seguia em curso até a publicação desta reportagem. Atualmente, Brites mora em Santos e se declara aposentado. Possui, porém, quatro empresas em seu nome, administradas por seus filhos. Tem como passatempo o baralho, as apostas e as viagens a cassinos mundo afora. Recentemente, passou a sofrer com diabetes, problema que ele atribui ao desgaste provocado pelas acusações do Ministério Público nos últimos anos. “Ninguém nunca teve diabetes na minha família. Fui o primeiro”, lamenta.

Edilson lança seu livro na Bienal do Livro em São Paulo, em março de 2006. Foto: Marcelo Ferrelli/Gazeta Press

A história de Pedro Brites contrasta com a de Edilson Pereira de Carvalho. Outrora um dos mais importantes juízes de futebol do Brasil, Edilson vive afastado dos holofotes, passou anos desempregado e só voltou a trabalhar recentemente numa transportadora de empilhadeiras. Na época em que o escândalo estourou, Edilson tentou amenizar as dificuldades financeiras cobrando para dar entrevistas sobre o caso e vendendo as camisetas que recebia dos jogadores ao final das partidas. Pedia cerca de R$ 200 por camisa. Também escreveu Cartão Vermelho, uma autobiografia sobre sua carreira e seu envolvimento na Máfia. No livro, Edilson não negava a existência do esquema, mas afirmava ter ludibriado os apostadores: segundo ele, recebeu dinheiro por algumas partidas, mas “nunca manipulei um resultado que fosse”. Cartão Vermelho não teve o sucesso de vendas imaginado e atualmente só é encontrado em sebos.

A casa onde vivia, em Jacareí, ficou com a ex-mulher Márcia e com a filha Mariana. A família foi desmantelada após o escândalo. À reportagem, Márcia disse por telefone não ter mais contato algum com o ex-marido. Segundo ela, Edilson foi expulso de casa após agredi-la. “Não quero nunca mais ouvir ou ver esse homem”, resume. A relação de mais de 17 anos terminou com acusações mútuas e briga nos tribunais. Antes mesmo do escândalo, em fevereiro de 2003, Márcia havia protocolado um boletim de ocorrência acusando Edilson de ameaçá-la e tentar forçá-la a manter relações sexuais com ele.

Hoje, o ex-árbitro, que pedia cerca de R$ 10 mil para manipular partidas de futebol, cobra da mulher uma pensão de R$ 500 pela casa em que viviam. Após o fim do casamento, Edilson morou com a mãe, Emy Pereira dos Santos, até a morte dela, em 2016, aos 95 anos de idade. “Era um excelente vizinho. Cuidava da mãe, conversava com a gente e adorava a cachorrinha, a Mel”, lembra Neusa, vizinha de Edilson em seus últimos dias em Jacareí.

A má fama de Edilson, que fez seu nome ser entoado, por alguns anos, como forma de ofensa a árbitros Brasil afora, não impregnou em sua cidade natal. Na pequena rua São Bartolomeu, onde morava, é lembrado como um sujeito simpático e educado. Desde o divórcio até a morte da mãe, Edilson viveu na casa onde passou a infância e juventude. Apesar de ser bem visto, não estabeleceu qualquer relação mais íntima com nenhum de seus vizinhos. “É uma pessoa reservada. Educada, mas que não tem muitos amigos. Aqui ele aparecia de vez em quando para tomar uma cerveja e apostar no jogo do bicho”, conta o atendente de um bar de esquina, a cerca de 60 metros da casa antiga de Edilson, que prefere não revelar o nome. Nos últimos anos, o ex-árbitro teve como principal prazer o convívio com seu animal de estimação, a quem tratava com mimos e levava para passear diariamente. “Eu não tinha amigos em Jacareí (nos tempos de árbitro), porque eu só viajava”, diz Edilson. “Nunca fui muito de ter amigos. Eu nunca tive amigos. Ou estou com uma mulher ou estou sozinho”.

Apesar do litígio com a ex-mulher, Edilson ainda tem relacionamento bom, embora distante, com a filha, Mariana. Os dois se veem raramente, mas mantêm contato por telefone. Hoje, Edilson mora em São José dos Campos com a namorada, Imara, que conheceu em Taubaté.

Paulo José Danelon hoje vive esquecido e satisfeito com o ostracismo. O ex-árbitro, que ainda mora em Piracicaba, foi procurado pela reportagem, mas não quis se pronunciar sobre o caso. Há anos não aparece na mídia e quer distância dos holofotes. “Se for a respeito do que passou eu não quero mais falar nada. Já faz 12 anos. Para mim isso já está morto e sepultado. E defunto a gente não revive. Morreu, um abraço”, disse o ex-árbitro, que confidenciou ter prometido a familiares nunca mais comentar o caso da Máfia do Apito

Dos demais envolvidos no caso, Vanderlei Pololi e Fernando Catarino não foram encontrados pela reportagem. O último foi dono de um café em uma galeria de Piracicaba e se desfez do negócio há cerca de dez anos. Nunca mais foi visto pela atual proprietária. Daniel Gimenes, responsável, junto com o Pololi, pela cooptação do Paulo José Danelon, está desaparecido desde dezembro de 2015. Seu carro foi encontrado abandonado e carbonizado, na cidade de Rio Claro. O desaparecimento foi confirmado pelo advogado que defendeu Gimenes no caso da Máfia, José Silvestre.

Já o piracicabano Nagib Fayad hoje mora em São Paulo. Não tem emprego formal e vive de bicos. Em junho de 2016, Gibão e Pedro Brites se encontraram casualmente em um importante torneio de pôquer realizado na capital paulista. Gibão acompanhava um amigo, o carioca Marcelo Mesqueu. Durante a conversa no salão entre vários conhecidos dos tempos do Nineball, Nagib foi perguntado sobre o que fazia da vida naquele momento. Gibão não respondeu com palavras. Levantou o dedo e fez um gesto na direção do amigo carioca, uma polêmica estrela do meio.

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