“Cartas de Março”; mulheres contam suas histórias no futebol
Em “Cartas de Março” publicaremos trocas de correspondências entre jogadoras, torcedoras, árbitras, dirigentes e outras protagonistas do futebol.
A série estreia com os testemunhos de duas jornalistas que se desempenham em países diferentes: Viviana Vila, na Argentina, e Fabíola Andrade, no Brasil.
Com mais de trinta anos de carreira, Viviana trabalhou para diversos veículos de comunicação na Argentina e agora, durante a Copa da Rússia, será a primeira mulher a comentar, ao vivo, partidas em um Mundial de futebol. Fará isso para uma rede de televisão estadunidense, durante as partidas transmitidas ao público hispanohablante daquele país. É mãe do Valentino.
Fabíola, natural de Belo Horizonte, atualmente trabalha em São Paulo. Além de repórter de campo do canal Sportv, também realiza transmissões de jogos pela Rede Globo. Eventualmente se desempenha como apresentadora do “Tá Na Área”, programa vespertino do canal fechado. É mãe da Giovanna.
Buenos Aires, 27 de Abril de 2018
Olá, Fabiola.
Boa tarde.
Um dia me disseram que eu era "disruptiva", que tinha feito uma pequena grande revolução.
Gostei deste termo. Primeiro achei que era muito grande, mas depois acabei me apropriando e me permiti acreditar que sim, que realmente havia conseguido sem ter me proposto. Sem nunca baixar os braços, nem as ideias e nem as bandeiras. Eu havia conseguido abrir um caminho em meu país.
Quando estudei jornalismo, na Universidade da cidade de La Plata, ou quando estudei locução para ser narradora nacional, eu não vislumbrava o caminho exatamente. Na verdade, a minha carreira foi construída desde o primeiro degrau e sem saber, precisamente, qual seria o itinerário.
Mas eu tinha os objetivos claros quando as coisas aconteciam em curtos espaços de tempo. Nada, jamais, e nem ninguém me afastou, nem cortou as palavras quando eu falava, ou quando eu falo. Ser livre foi e é o meu verdadeiro patrimônio.
Sou uma trabalhadora de imprensa, de rádio, fundamentalmente, e também de televisão. Há muitos anos conheci o maior jornalista do meu país, tanto por sua generosidade como pelo seu talento. Ele se chama Victor Hugor Morales. Nós trabalhamos juntos durante muitos anos e foi ele quem me construiu uma comentarista de futebol.
Há jornalistas muito boas em meu país, que fazem excelentes programas esportivos. Mas elas ainda não são comentaristas de jogos ao vivo: no rádio ou televisão. Então, isso que começou quase como um jogo de pequenas palavras, se transformou em um trabalho que acontecia a cada final de semana durante as transmissões da rádio Continental, comentando os jogos do campeonato argentino. Mas sempre com um narrador homem, é claro.
Foi quando eu percebi que não havia mulheres. Estou falando do começo dos anos 2000 e não havia mulheres comentando futebol ao vivo. Os anos passaram e continuei sendo a única que, de forma massiva, estava nas rádios argentinas. Depois veio o Fútbol Para Todos, um grande projeto político da Argentina, que levou o futebol grátis para todos e todas. O programa teve a feliz ideia de envolver mulheres no campo de jogo. E nunca na televisão argentina, durante a transmissão dos jogos, havia mulheres.
Decidiram que eu poderia ocupar este lugar. Comecei a trabalhar aí e fiquei durante seis anos, até que me despediram e o programa acabou. Foi uma experiência maravilhosa e muito difícil porque existia muitos homens nervosos. Muitos corpos desacomodados com minha presença e poucos ouvidos acostumados.
No erro, ou em um equívoco durante algum comentário, sempre procurei ter bastante coerência, muita dignidade e muito respeito com quem trabalhei. E é esse respeito que me acompanha sempre. Hoje fui chamada pela rede Telemundo, dos Estados Unidos, para comentar a Copa da Rússia; o que me transforma na primeira mulher de língua espanhola a comentar uma Copa.
Isso me coloca em uma posição de exigência, responsabilidade e agradecimento também. Há vários obstáculos e nós, mulheres, passamos por coisas muito ingratas, muito cruéis e temos pequenos interstícios por onde entrar. No meu caso, sou uma mãe que cria sozinha o filho. Amamentei na rádio, levei-o para os estádios, aos treinamentos e ele sempre me acompanhou quando cumpri estes meus dois papéis.
Ele se criou com uma mãe "disruptiva" e com uma consciência de gênero muito enraizada. Cada obstáculo, cada maltrato, cada destrato, cada menosprezo, foram golpes em meu corpo. Hoje eu me encontro mais firme, melhor posicionada, mas a mensagem a todas as mulheres é que unidas somos um coletivo que já não tem mais retorno. E todo homem incomodado deverá entender que estamos de pé, isso é uma verdadeira revolução, a feminista, e que podemos, de todas as formas que quisermos, ocupar os espaços de decisão, execução e fazer.
Também podemos comentar e falar de esportes, falar de futebol. Há mulheres aptas para isso! Há muitas jornalistas boas em todos os lugares. Por isso mesmo eu, no meu papel de comentarista esportiva, convido a todas e a cada uma a não abandonar seus sonhos, a não abandonar suas utopias e sintam que é possível.
Juntas nós sempre vamos conseguir. Com as bandeiras em alto, as mãos dadas bem apertadas e sabendo que é possível.
Obrigada,
São Paulo, 2 de Maio de 2018
Viviana,
É um grande prazer escrever para você.
Maravilhosa a sua história.
Que orgulho ter você na Copa do Mundo da Rússia!
Se conversarmos com cada uma que escolheu trabalhar em uma área tão machista como a nossa, veremos um relato mais lindo que o outro. E acho que temos a mesma impressão. Ninguém sabia, quando escolheu o jornalismo esportivo, o quão importante seria rompermos essas barreiras.
Que incrível você ser comentarista esportiva! Parabéns pela conquista. Aqui no Brasil ainda não conseguimos formar, ou não tivemos espaço para narradoras e comentaristas. Seria maravilhoso ter. Sempre defendo que o veículo de comunicação mais completo é aquele que consegue igualar o número de homens e mulheres no quadro de funcionários. Porque vemos esporte de uma forma diferente e as duas formas se completam.
Quando eu comecei a trabalhar com esporte, também no começo dos anos 2000, logo que me formei na PUC Minas, em Belo Horizonte, quase não existiam mulheres nos veículos de comunicação. Me lembro bem; éramos eu e mais duas meninas apenas.
Hoje somos dezenas aqui em São Paulo, mas ainda é um número bem pequeno se comparado com a quantidade de homens que têm espaço e lugar no nosso meio. Somos repórteres, apresentadoras, produtoras e editoras apenas. Pelo que você me relata, a Argentina está na frente do Brasil nesta questão do espaço feminino no meio esportivo.
Hoje tenho dezessete anos de profissão. Sou repórter e apresentadora da TV Globo, a quarta maior empresa de Comunicação do mundo, e aqui, no Brasil, também somos julgadas por qualquer erro. Temos que ser perfeitas sempre, nota dez é o mínimo permitido para uma mulher que se aventura no meio do futebol brasileiro. Mesmo assim, mesmo que prove todos os dias que gosta e sabe do que está falando, ainda é obrigada a ouvir gritos e ofensas nos campos de jogo e ginásios.
Pior: eu não falo só de torcida. Não. Colegas nossos também são extremamente machistas e preconceituosos. Incrível que ainda vivamos isso em 2018.
Nós duas ainda temos outro ponto em comum. Sou divorciada há sete anos e também crio sozinha a minha filha. O pai dela é bem presente, mas a grande responsabilidade é minha, claro. Ela mora comigo.
Então já levei a Giovanna (a minha filha) inúmeras vezes à TV para me acompanhar no trabalho e, algumas ocasiões, fui obrigada a levá-la inclusive para treinos de futebol. Como sou de Belo Horizonte, minha família toda está a 600 quilômetros de São Paulo, onde eu moro.
É uma vida dura, mas que me fortalece a cada dia. A Giovanna vê e se fortalece junto. Ela sabe que tudo é mais difícil pra gente e cada conquista deve ser comemorada. Espero que o mundo seja melhor pra ela, mais justo, mais igual.
Eu amo meu trabalho e a minha vida. Não trocaria por nada.
Tenho muito orgulho de fazer parte de uma geração que pode e deve mudar esse cenário do mundo esportivo.
Eu e mais quarenta jornalistas esportivas do Brasil criamos, no mês passado, o movimento #DeixaElaTrabalhar, que ganhou grande espaço no País e até no mundo. Hoje já somos mais de cem.
As pessoas pararam para nos ouvir e sinto que todos têm mais cuidado com o que falam e pensam.
A principal palavra é respeito. Queremos, sim, espaço. Queremos salários iguais, mas acima de tudo queremos dignidade e paz para trabalhar.
Você e todas são muito bem-vindas em nosso movimento. Também acredito que a rivalidade entre as mulheres, criada por nossa sociedade, é um benefício aos machistas. Nos enfraquece. Nós precisamos estar juntas, não precisamos competir em nada. Precisamos nos apoiar para conquistar cada dia mais espaço.
Um beijo enorme no seu coração!
Da amiga,