Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo
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12 min readSep 27, 2016

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Em 1978, os militares usaram a Copa do Mundo no país para aumentar a popularidade do regime. Um ano depois, do outro lado do mundo, foi a vez do camisa 10 entrar no jogo — uma história bem menos conhecida, que fez do jovem craque um involuntário propagandista de Videla, num momento em que a Argentina era investigada por torturas e desaparições

Por Maurício Brum

Em uma manhã de setembro de 1979, uma fila de três quarteirões se formou ao longo da Avenida de Mayo, em Buenos Aires. Era uma multidão silenciosa e angustiada, carregando memórias ou papéis muito concretos. Aguardavam a vez de entrar no prédio de número 700, da Organização dos Estados Americanos (OEA), onde a partir daquele dia a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) começaria a operar com um objetivo muito específico: investigar as denúncias de crimes cometidos pela ditadura de Jorge Rafael Videla, que vigorava no país desde 1976. Finalmente, as Mães da Praça de Maio e outras organizações ligadas às vítimas do regime seriam ouvidas.

Naquele mesmo dia, por aquelas mesmas horas, mas no outro lado do mundo, Diego Armando Maradona havia acabado de conquistar o primeiro título mundial de sua carreira. Ainda não era a Copa do Mundo, que só viria sete anos mais tarde, mas um poderoso ensaio: tendo no camisa 10 o craque do torneio, a Argentina ergueu pela primeira vez a taça do Campeonato Mundial Juvenil (hoje Sub-20), disputado no Japão. Após muito correr atrás dos sucessos de Brasil e Uruguai, os argentinos agora estavam no topo do futebol: ganharam a Copa principal em casa em 1978, e complementaram a coroa confirmando sua qualidade também entre os jovens.

Os argentinos tinham o melhor futebol do mundo. Os triunfos sucessivos indicavam que não apenas a atualidade, mas também o futuro se desenhava brilhante. Para muitos, era importante fazer essa mensagem ir além do futebol. Quando José Roberto Wright encerrou a final em Tóquio, com o placar mostrando o 3 x 1 argentino sobre a União Soviética, os alto-falantes ligados na Rádio Rivadavia explodiram com a voz do narrador José María Muñoz. O Gordo Muñoz fazia um chamado ao povo argentino. Era uma mensagem típica de alguém que mereceu a alcunha de “locutor da ditadura”.

“Vamos todos para a Avenida de Mayo, vamos mostrar para os senhores da Comissão Interamericana de Direitos Humanos que a Argentina não tem nada que ocultar”.

Embora a ditadura vigorasse no país desde 24 de março de 1976, quando a Junta Militar iniciou aquilo a que chamou eufemisticamente de “Processo de Reorganização Nacional”, foi a Copa do Mundo de 78 que chamou a atenção de outros países para os horrores cometidos em solo argentino. A perseguição sistemática de opositores do regime, a tortura e a execução sumárias em instituições como a infame Escola de Mecânica da Armada (ESMA), os voos da morte e o roubo de bebês seriam alguns dos aspectos mais nefastos de um regime que deixaria mais de 30 mil mortos e desaparecidos. Em 1978, quando a FIFA desembarcou com sua taça de ouro em Buenos Aires, diferentes organizações internacionais de direitos humanos chamariam a um boicote ao Mundial.

A campanha fracassou. A Copa aconteceu sem grandes percalços, João Havelange congratulou-se com Jorge Videla e a Argentina conquistou sua primeira estrela — não sem suspeitas, e sempre persistirá a dúvida sobre a honestidade daqueles 6 a 0 sobre o Peru, que tiraram o Brasil da final pelo saldo de gols. Com o título, a ditadura ganhou um poderoso instrumento de propaganda. No torneio em si, a única ausência notável foi o holandês Cruyff. Por muito tempo se especulou que o líder do time que havia colocado o mundo em um carrossel em 1974 deixou de ir à Argentina para protestar contra as violações de direitos humanos, uma versão que ele próprio negaria décadas depois.

Mesmo que o boicote à Copa de 78 não tenha vingado, as denúncias feitas na época da competição ajudaram a atrair os olhares da comunidade internacional para o que acontecia sob as ordens da Junta Militar. O ultraje contra a violência da ditadura começou a se espalhar e, dentro do país, novas organizações começaram a ganhar corpo e coragem para questionar, entre outras coisas, onde estavam seus familiares desaparecidos. Tão cedo como abril de 1977 já havia mães dando voltas diante da Casa Rosada, protestando na Plaza de Mayo. Acossado, o governo contratou a conceituada firma nova-iorquina de relações públicas Burson-Marsteller, numa tentativa de reposicionar Videla perante a audiência: não mais o ditador sanguinário, mas um simpático, ainda que firme, comandante da “reconstrução” do país.

A tentativa de reescrever o discurso não se limitou à elaboração de uma nova imagem para o ditador. O regime passou a perguntar: quem são os estrangeiros para dizer que nós violamos os direitos humanos? — um “nós” cheio de significado; não somente o governo, e sim toda a população argentina. Cada vez mais, tentou-se vender uma ideia de que as denúncias eram parte de uma grande “campanha anti-argentina”, um ataque à Pátria que, “sem dúvidas”, deveria ser obra do “marxismo internacional”. No inverno de 1979, quando não houve mais maneiras de impedir a visita da CIDH para investigar a repressão política, o Ministério do Interior da Argentina fez uma encomenda de 250 mil adesivos a serem distribuídos no comércio da capital. Vinham em dois tamanhos, tinham as cores da bandeira, e traziam o slogan cuidadosamente desenhado pela Burson-Marsteller para zombar de quem pedia direitos humanos: “Os argentinos somos direitos e humanos”.

O governo garantiu nada ter a ver com os adesivos. Aquilo era uma mostra de apoio espontânea da população, dizia. Mais tarde se descobriu a existência de um decreto secreto assinado pelo próprio Ministro do Interior, o general Albano Harguindeguy, autorizando o uso de 16 mil dólares dos cofres públicos para imprimir e distribuir os decalques. Era troco de bala, mas o valor utilizado importava menos do que a confirmação de que a própria ditadura forjava seus supostos apoios. De todo modo, por pressão ou adesão voluntária, milhares de vidraças e para-choques de Buenos Aires vestiram a fantasia do regime para aguardar os emissários da OEA. Mas nenhuma campanha de marketing seria mais eficiente para mobilizar os discursos pró-regimes do que uma grande mobilização nacionalista nas ruas — e, em 1979 como no ano anterior, o futebol daria o pretexto que a ditadura procurava.

Aos 18 anos, Diego Maradona foi escolhido para capitanear a Seleção Argentina juvenil. Era muito novo, mas ninguém ousava duvidar de sua capacidade. De fato, a única reclamação de muitos torcedores era que ele não havia sido convocado antes — os mais apressados queriam tê-lo visto junto com a geração de 78, nem que fosse como reserva, pois o que vinha apresentando em campo já deveria garantir no mínimo uma lembrança do técnico César Luis Menotti. O fenômeno do Argentinos Juniors era uma verdadeira força da natureza: num país que tinha dois campeonatos nacionais por ano, Maradona foi artilheiro de cinco dos seis torneios disputados entre 1978 e 1980.

Menotti, que também era o treinador do time de jovens escolhido para representar os platinos no Japão em 1979, desta vez não hesitou em chamar Maradona e colocá-lo como líder da equipe. E o camisa 10 não decepcionou. É bem verdade que o Pibe de Oro não estava sozinho: outro destaque da campanha foi Ramón Díaz, então no River Plate, que terminou a competição como artilheiro, com oito gols (dois a mais que Diego). Ainda assim, Maradona era claramente o esteio da equipe, o homem sem o qual aqueles jogadores pareciam capazes de muito menos do que efetivamente conquistaram. O futuro dos campeões juvenis comprovaria essa impressão da época: das 18 promessas relacionadas para a final de 79, nenhuma delas — com exceção óbvia do próprio Maradona — seria convocada para a seleção que venceria a Copa do Mundo em 1986.

A campanha albiceleste foi demolidora, encantando uns entusiasmados japoneses que só então começavam a se familiarizar com aquele tal de futebol — o Mundial Interclubes, iniciativa que ajudou a colocar grandes craques nos gramados orientais, só seria levado a Tóquio pela Toyota em 1981. Foram seis vitórias em seis jogos, desde partidas para nove mil curiosos no obscuro Estádio Omyia, até a finalíssima diante de 52 mil almas no Estádio Nacional. No caminho até a final, a Argentina fez 5 x 0 na Indonésia, 1 x 0 na Iugoslávia, 4 x 1 na Polônia, 5 x 0 na Argélia e 2 x 0 sobre o Uruguai. A decisão contra os soviéticos foi a única vez que saíram perdendo, já no segundo tempo, e mesmo assim viraram com tranquilidade: Hugo Alves, Ramón Díaz e Maradona fizeram os gols do 3 x 1 que valeu a taça. A Argentina fechou o torneio com vinte gols marcados, mais de três por jogo, e apenas dois sofridos — em média, somente um a cada três partidas disputadas.

O jogo do título aconteceu em 7 de setembro de 1979, exatamente o dia em que a CIDH, que havia chegado na véspera, começou a operar. Pelo fuso horário, Diego levantou a taça aos céus de Tóquio quando a manhã argentina ainda nem havia chegado ao fim. Centenas de pessoas se aglomeravam na Avenida de Mayo, esperando para ser ouvidas pelos representantes da OEA, quando um outro tipo de multidão, muito mais contente, começou a circular ali em frente. O Ministério da Educação baixou um decreto cancelando as aulas do dia, permitindo que os estudantes saíssem às ruas para festejar o título. Somados à comemoração natural de um país que ainda estava se acostumando às glórias mundiais, em pouco tempo o centro de Buenos Aires foi tomado por uma celebração à qual a ditadura quis dar ares de manifestação. Afinal de contas, como um país tão alegre poderia ser palco das violações de direitos humanos que estavam denunciando?

“Os verdadeiros argentinos devem comemorar”, berrava José María Muñoz nos microfones da Rivadavia. Fora do ar, o corpulento narrador fazia as mais diversas ameaças aos seus correspondentes no Japão: que dessem um jeito de encontrar Maradona nos vestiários do Estádio Nacional. Não havia um minuto a perder. Braceando jogadores, outros repórteres e o próprio Menotti, enfim a equipe técnica da rádio conseguiu estabelecer o telefonema bombástico. A conversa foi ao ar no tradicionalíssimo programa “La Oral Deportiva”, entre os dois líderes máximos do país naquele instante: o capitão do time e o Presidente da República. Diego Armando Maradona e Jorge Rafael Videla. O general congratulava seu campeão:

Quero fazer chegar a você em meu nome, e em nome do povo argentino, porque este povo está nas ruas gritando “Argentina! Argentina!”, fazer chegar, digo, minha mais cordial saudação a você pela destacadíssima atuação que teve não somente nesta partida, mas em toda esta campanha futebolística. Mas também quero fazer chegar minha complacência a você, na qualidade de capitão, por ter criado um núcleo nessa equipe jovem e cheia de individualidades, ter dado um sentido, um sentimento de equipe que nos mostra tudo o que podem fazer os argentinos quando se dedicam a trabalhar juntos. […] E tenham também certeza que constituem, através desse evento, um claro exemplo para todos os jovens argentinos, que mais além do triunfo da partida, veem em vocês o triunfo de uma juventude otimista que quer olhar para o futuro com amor, com esperança, com fé”.

Muitos anos depois, em 2013, Videla morreria na prisão, onde cumpria pena perpétua por crimes de lesa-humanidade durante seu governo. Maradona, cada vez que fosse questionado pela imprensa sobre o ditador, afirmaria repetidamente: “que não descanse em paz”. Mas, na época do Mundial Juvenil, com apenas 18 anos de idade, muito menos politizado e provavelmente assustado com o que via no país, o craque do Argentinos Juniors foi bem mais contido em sua resposta ao general:

Obrigado por tudo o que o senhor disse. É um orgulho que tenhamos a felicitação de nosso presidente, porque penso que saímos um pouquinho sozinhos da Argentina, mas este triunfo é para o senhor e para todos os argentinos”.

No regresso a Buenos Aires, a seleção seria recebida no palácio de governo. Videla cumprimentou os jogadores um a um, falou algumas patriotadas, e pediu aos repórteres que não economizassem no filme fotográfico. Sua imagem — e a do regime — estavam mais desgastadas do que nunca. Era preciso fazer algo a respeito.

Entrevistado no final dos anos 90 pelo jornal Página 12, Simón Lázara, vice-presidente da Assembleia Permanente pelos Direitos Humanos (APDH) na Argentina, dizia acreditar que o governo havia permitido a entrada da CIDH no país em função de uma mescla de pressões econômicas e fé na sua própria capacidade repressiva:

Havia créditos do Eximbank [agência norte-americana de créditos para exportações] para a Argentina que estavam parados e o Departamento de Estado prometeu que os outorgaria se deixassem entrar a CIDH. A ditadura controlava os meios de comunicação; os partidos políticos estavam proibidos; não havia mobilizações nem atos de nenhum tipo. Eu acredito que os militares pensaram que podiam manejar a visita e que, no máximo, seria um incômodo passageiro. Não tinham a menor ideia do contexto internacional, como demonstraram depois com a Guerra das Malvinas”.

A comissão da OEA permaneceu na Argentina por duas semanas, entre 6 e 20 de setembro de 1979. Passou por Buenos Aires, Córdoba, Tucumán e Rosario; ouviu familiares de vítimas, líderes políticos de oposição à ditadura, representantes da Junta Militar e também ex-presidentes argentinos, como Isabel Perón, Héctor Cámpora, Alejandro Lanusse e Arturo Frondizi. Visitou ainda os centros de detenção e tortura, onde nada encontrou: o governo havia desocupado a ESMA e outros recintos mais afamados da repressão que constavam no mapa da CIDH. Enquanto o Gordo Muñoz bradava não haver nada a ocultar no país, a ditadura passou as vésperas da visita eliminando centenas de prisioneiros, através de execuções ou realocações para centros clandestinos ainda desconhecidos.

A tentativa de fazer parecer que tudo estava bem não impediu que a capa do Clarín de 8 de setembro trouxesse as duas manchetes contrastantes, entre a glória e o incômodo: acima, “Argentina campeón mundial juvenil”; abaixo, “La comisión de la OEA se reunió con el gobierno”. Ao fim dos quinze dias em que percorreu o país, a comissão de direitos humanos recebeu 5.580 denúncias de sequestros e desaparições forçadas. Não seriam as últimas: aquela visita fez com que outros familiares criassem coragem de vir a público reivindicar uma resposta sobre o paradeiro dos seus. Nas décadas seguintes, novos casos se tornariam conhecidos, acumulando-se aos milhares.

O relatório da CIDH, ainda muito preliminar, foi divulgado em dezembro de 1979. Maradona havia acabado de se sagrar, mais uma vez, artilheiro do Campeonato Nacional. O texto trazia uma série de denúncias, conclusões e recomendações. Entre outras medidas, indicava a necessidade de acabar com o estado de sítio, punir os responsáveis pelos assassinatos comprovados e, prioridade maior, dar resposta sobre o paradeiro dos cidadãos argentinos desaparecidos. Jorge Videla imediatamente convocou uma coletiva de imprensa para esclarecer a posição do governo:

O que é o desaparecido? Enquanto esteja como tal, é uma incógnita o desaparecido. Se o homem aparecer, bom, teria um tratamento X; e se a desaparição se converte em certeza de seu falecimento, teria um tratamento Z. Mas enquanto seja um desaparecido, não pode ter nenhum tratamento especial. É incógnita, é um desaparecido, não tem entidade. Não está nem morto nem vivo: está desaparecido”.

O número exato de desaparecidos na Argentina ainda é desconhecido. Documentos confidenciais dos próprios militares estimavam, em julho de 1978, cerca de 22 mil pessoas. Na época, ainda faltavam cinco anos para a redemocratização. Atualmente, as organizações de direitos humanos falam em mais de 30 mil indivíduos cujo destino final se desconhece. Até hoje, o governo argentino apenas concedeu indenizações aos familiares de pouco mais de 9 mil vítimas da repressão.

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