Jornal do Brasil de 30 de maio de 1958. Na véspera, o Brasil de Garrincha goleava a Fiorentina, em amistoso antes da Copa do Mundo da Suécia.

De vira-latas a gênios

No final de maio de 1958, Nelson Rodrigues escrevia sobre nosso “complexo de vira-latas”, enquanto a Seleção Brasileira se preparava para a Copa do Mundo da Suécia — que nos transformaria em gênios do futebol mundial.

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20 min readMay 30, 2015

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POR GERSON WASEN FRAGA

Em 31 de maio de 1958 a seleção brasileira de futebol encontrava-se na Itália fazendo os últimos preparativos para a Copa do Mundo da Suécia, que começaria em poucos dias. A equipe do técnico Vicente Feola enfrentaria na primeira fase da competição três adversários respeitáveis: os austríacos, donos de um estilo pragmático, próximo ao alemão; os ingleses, reverenciados como “inventores do futebol”; e os soviéticos, conhecidos naquele momento pelo esquema “científico” de jogo. A fase de preparação em solo italiano incluía duas partidas amistosas, respectivamente contra as equipes da Fiorentina (que contava com seis titulares da azzurra) e contra a Internazionale de Milão. Sem dificuldades, os brasileiros venceram estes dois encontros pelo placar de 4 a 0.

Contra a equipe de Florença, dois dias antes, o então jovem ponteiro-direito Garrincha fez um gol genial: após driblar três zagueiros e o goleiro adversário, e tendo o arco vazio à sua frente, esperou um dos defensores voltar para enganá-lo com uma ginga de corpo, fazendo com que o pobre zagueiro tivesse de se segurar na trave para não se estatelar no chão. Não contente, aplicou ainda uma janelinha no goleiro que, desesperado, voltava para o lance e, com o gol vazio, caminhou com a bola em direção às redes. Seria o último tento daquela partida.[1]

Neste mesmo 31 de maio, o dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues publicava na revista Manchete Esportiva sua última crônica antes da estreia brasileira. Com aquele texto, Nelson cunharia uma expressão que passaria a integrar o imaginário brasileiro: o “complexo de vira-latas”. O próprio autor explicava o sentido da expressão:

“Por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol”.[2]

Seríamos um povo envergonhado de nós mesmos, a ponto de nos julgarmos incapazes de ombrear em condição de igualdade com outros povos — especialmente os tidos como “desenvolvidos” — em qualquer campo, fosse este esportivo ou não. No entanto, o próprio Nelson Rodrigues apontava, ao fim de seu texto, a solução de tal problema: “o brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia”.[3]

“O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia”, escreveu Nelson Rodrigues no dia 31 de maio de 1958. Foto daqui.

A sincronia entre o lance de Garrincha e a criação do conceito de nosso viralatismo por Nelson Rodrigues talvez seja um mero acaso. Mas tal acaso nos leva a pensar se este não seria um período especial de nossa história, marcado por uma espécie de fronteira entre duas formas de entender o Brasil. De um lado, uma perspectiva cujas raízes mais profundas remontam ao período colonial, calcada no desejo de modernidade e civilização estabelecido sobre modelos estrangeiros e que via em nossa característica de país mestiço um problema intransponível no rumo à condição desejada. De outro, a ideia de que nossa brasilidade poderia ser conjugada com os valores percebidos como “modernos”, de forma a nos conferir uma feição própria no mundo, sem que isto significasse uma condenação ao atraso, mas fosse, antes, a expressão positiva de nossa identidade.

Nosso objetivo é oferecer alguns elementos para pensarmos como estas duas estruturas de pensamento estão imbricadas com a história de nosso futebol, prática social passível de assumir significados e valores que ultrapassam os acontecimentos de campo. Para tanto, utilizaremos algumas interpretações da crônica esportiva brasileira sobre os campeonatos mundiais disputados na década de 1950, momento em que conheceríamos uma derrota paradigmática — mas também a sensação de conquistar pela primeira vez a condição de campeões mundiais de futebol.

O vira-latas

O que é um “vira-latas”? Sem necessidade de recorrer a citações acadêmicas, temos uma expressão que remete ordinariamente a cães e gatos sem raça definida, resultado de um sem número de cruzamentos não controlados e que são costumeiramente encontrados pelas ruas. Se a definição pode parecer rigorosa ou mesmo preconceituosa quando transposta para um conjunto de pessoas, não está longe da forma como alguns influentes intelectuais brasileiros da primeira metade do século XX avaliavam seu próprio povo. O fato de sermos considerados resultantes do cruzamento de três raças distintas nos tornava, segundo estes pensadores, inaptos para trilhar o caminho do desenvolvimento.

Euclydes da Cunha, escritor fluminense conhecido pela denúncia da barbárie que acompanhou nos combates de Canudos, reflete em um trecho menos citado de “Os Sertões”:

Capa do livro “Os Sertões”. Foto retirada daqui.

“A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso (…). E o mestiço — mulato, mamaluco ou cafuz –, menos que um intermediário, é um decaído, sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem a atitude intelectual dos ancestrais superiores. Contrastando com a fecundidade que acaso possua, ele revela casos de hibridez moral extraordinários: espíritos fulgurantes, às vezes, mas frágeis, irrequietos, inconstantes, deslumbrando um momento e extinguindo-se prestes, feridos pela fatalidade das leis biológicas, chumbados ao plano inferior da raça menos favorecida.” [4]

Alguns anos mais tarde, Oliveira Lima, em texto produzido originalmente para ser lido sob a forma de conferências na Sorbonne, afirmava, a respeito das agitações de 1817 em Pernambuco, que “os mestiços, originados dos cruzamentos de três séculos, abandonariam a atitude tradicional de deferência para com a realeza longínqua, acreditando elevar-se pela fraseologia revolucionária a altura da mais complexa civilização, quando, na verdade, não faziam senão dar livre impulso aos pendores negativos de sua natureza selvagem”. [5]

Nove anos separam as publicações originais de “Os Sertões” (1902) e de “Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira” (1911). Mais 17 anos se passariam e outra importante obra de cunho ensaístico viria à luz, oferecendo sua interpretação acerca do Brasil. Seu autor: Paulo Prado, filho da elite cafeicultora paulista, mecenas das artes e um dos principais responsáveis pela organização da Semana de Arte Moderna em 1922. Prado publicou em 1928 “Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira”. No trabalho, defendeu a tese de que o somatório de uma natureza exuberante, a esperança da riqueza fácil através da mineração e a luxúria desenfreada teriam produzido um tipo humano marcado pela tristeza, pela fraqueza e pela inoperância. Os resultados seriam tão nefastos que a própria sobrevivência do homem brasileiro seria uma incógnita.

“O mestiço brasileiro tem fornecido indubitavelmente à comunidade exemplares notáveis de inteligência, de cultura, de valor moral. Por outro lado, as populações oferecem tal fraqueza física, organismos tão indefesos contra a doença e os vícios, que é uma interrogação natural indagar se esse estado de coisas não provém do intenso cruzamento das raças e sub-raças (…). No Brasil, se há mal, ele está feito, irremediavelmente: esperemos, na lentidão do processo cósmico, a decifração do enigma com a serenidade dos experimentadores de laboratório. Bastarão cinco ou seis gerações, para estar concluída a experiência.” [6]

O que estas interpretações depreciativas sobre nosso povo têm a ver com o futebol? A resposta está na forma com que as as práticas esportivas de modo geral eram percebidas entre nós naquele começo de século. As atividades físicas não relacionadas ao mundo do trabalho eram entendidas dentro de um modelo que valorizava os ideais de eugenia e higienismo então em voga na Europa. Ao mesmo tempo em que se difundia a ideia de uma nova forma de relacionar-se com o próprio corpo, as práticas esportivas integravam um discurso de aprimoramento do espírito e da “raça” que excluía pobres, pretos, mestiços e todos aqueles que trouxessem consigo a marca da necessidade do suor de seu rosto para a manutenção da sobrevivência.

Isto não significa que tais grupos estivessem completamente à margem da prática do futebol. São famosas as imagens de populares acompanhando os jogos e treinos do Fluminense por sobre os muros do Estádio das Laranjeiras, aprendendo suas regras e códigos. Em breve, uma ampla gama de equipes populares seria constituída em bairros periféricos, em grandes fábricas e até no comércio, disputando partidas e campeonatos entre si. A exemplo do que ocorria nos clubes de elite, alguns grandes jogadores seriam revelados através destas equipes. No entanto, a maioria destas agremiações teria vida curta, deixando poucos registros de sua existência na crônica esportiva, ou, o que é mais sintomático, deixando registros apenas em processos-crimes e páginas policiais quando da ocorrência de confusões em seus jogos. Aqui, um ponto importante: aos olhos dos jornais do começo do século XX — que a partir de determinado momento perceberam o potencial de venda da nova prática esportiva — apenas o futebol disputado pelas equipes “da elite” era digno de figurar nas crônicas esportivas, enquanto aos clubes populares restariam críticas, chacotas ou o silêncio. Segundo Leonardo Pereira, esta apropriação popular do futebol acabaria por resultar na construção, por parte da imprensa escrita, de uma nova imagem para o jogo, que de prática restrita a uma sociedade refinada, “transformava-se em um jogo de negros e pobres”. [7]

Apenas a elite possuiria legitimidade para se integrar aos novos ideais higienistas. Como instrumento para aprimorar a raça, o futebol não poderia ser praticado de igual modo pelas camadas populares, por mestiços que deveriam ficar a priori excluídos deste discurso e desta prática. Vistos pela intelectualidade como um problema a ser superado, a maior parte dos brasileiros era também percebida como indigna de reproduzir os novos hábitos corporais adotados pela classe dominante. Buscava-se assim separar, dentro do campo e nas arquibancadas, aqueles que buscavam em padrões europeus o modelo para uma desejada modernidade daqueles que eram apontados como um empecilho para que o país viesse a atingir tal situação.

Ou: futebol não era coisa para vira-latas.

Notícia de 29 de março de 1939 sobre a morte de Fausto, a “Maravilha Negra”. Imagem retirada daqui.

Alguns fatores foram fundamentais para a alteração deste paradigma. Se o surgimento de destacados jogadores negros, mestiços ou mulatos (como Friendenreich, Domingos da Guia ou Fausto) despertava a atenção dos clubes “ricos”, a impossibilidade de manter um espírito amador diante do profissionalismo marrom que ganhava forças ao longo da década de 1920 cada vez mais abria as portas dos vestiários das grandes equipes a estes atletas, ainda que continuassem a encontrar dificuldades de acesso pelo portão social. [8] Quando, em princípios da década seguinte, jogadores como Fausto e Domingos deixaram o Brasil para atuar em países onde o profissionalismo já era uma realidade, os últimos argumentos em defesa do amadorismo elitista acabaram por terra, afinal, sua manutenção significava a perda de alguns de nossos maiores craques para o exterior, ao mesmo tempo em que suas presenças em campo representava um acréscimo substancial de torcedores nas arquibancadas. [9]

Neste mesmo período, novas e importantes interpretações sobre o Brasil ganhavam as páginas dos livros e os debates acadêmicos. Tendo o grande expoente em Gilberto Freyre, e contrariando as perspectivas de Euclydes da Cunha ou de Paulo Prado, uma nova leitura de nossa formação racial propunha a mestiçagem não mais como um fator negativo, mas como o resultado de relações explicáveis do ponto de vista histórico, onde, devido à fluidez das fronteiras culturais, gerou-se uma nação mestiça impregnada de preconceitos resultantes dos anos de vitalidade do regime escravocrata.

“A verdade (…) é que nós que fomos os sadistas; o elemento ativo na corrupção da vida de família; e muleques e mulatas o elemento passivo. Na realidade, nem o branco nem o negro agiram por si, muito menos como raça, ou sob a ação preponderante do clima, nas relações do sexo e de classe que se desenvolveram entre senhores e escravos no Brasil. Exprimiu-se nessas relações o espírito do sistema econômico que nos dividiu, como um deus poderoso, em senhores e escravos.” [10]

Novas abordagens na academia, novas realidades nos estádios. A mesma década que assistiu à valorização do melting-pot nacional também testemunhou a descoberta do futebol brasileiro pelo restante do mundo. Se nas Copas de 1930 e 1934 havíamos participado como coadjuvantes menores, em 1938 o Brasil marcou presença nas semifinais, surpreendendo o mundo com seus craques mestiços e um estilo de jogo contrário, sob muitos aspectos, às normas ditadas pelos principais centros europeus. Segundo Leonardo Pereira, esta seria a primeira vez que as cores brasileiras seriam defendidas em uma competição desta magnitude por um “’verdadeiro scratch do Brasil’, livre tanto das divisões entre amadoristas e profissionalistas que marcaram as equipes formadas nas edições anteriores do torneio quanto das restrições que visavam evitar a presença no time de jogadores negros”. [11] Isto não significa, no entanto, que os jogadores brasileiros tenham passado longe dos preconceitos da imprensa francesa. Segundo Arlei Damo, através de justificativas tais como “os trópicos, a selva ou a liberalidade dos costumes”, os brasileiros foram adjetivados como “indolentes”, “indisciplinados” ou “incapazes de atuar coletivamente”. [12]

Esta foi também a primeira Copa a receber um tratamento mais apurado por parte da imprensa brasileira. Ao mesmo tempo em que os brasileiros puderam acompanhar pela primeira vez as partidas pelo rádio, tínhamos o fortalecimento de uma crônica esportiva especializada, sintetizada, sobretudo, no nome de Mário Filho e seu Jornal dos Sports. O futebol aumentava sua popularidade enquanto os nomes e rostos dos principais craques do eixo Rio-São Paulo se tornavam conhecidos por um território de dimensões continentais.

A oportunidade de provar aos franceses e ao restante do mundo que “selvas” e “liberalidade de costumes” não eram propriamente adjetivos aplicáveis a todo o Brasil, assim como “trópicos” não era uma designação geográfica incompatível com modernidade, nos foi oferecida com o direito de organizar e sediar o Campeonato Mundial de 1950. Porém, tanto quanto nos mostrar como modernos e civilizados aos olhos do mundo, esperávamos provar, para nós mesmos, nossa capacidade de efetuar grandes conquistas e realizações. Para isto, construiríamos, no curto espaço de dois anos, o maior estádio do mundo, palco digno para uma vitória contra o adversário ideal: os ingleses, modelo da nação moderna que buscávamos ser.

Vencendo os ingleses, calçaríamos as chuteiras da modernidade.

Em 18 de maio de 1948, o Jornal dos Sports noticiava com entusiasmo a excursão do Southampton ao Brasil.

A afirmação de que os ingleses seriam os preferidos para uma possível final pode causar algum espanto. No entanto, inúmeras foram as manifestações na imprensa esportiva brasileira, nos dois anos anteriores ao mundial, tecendo elogios ao futebol britânico ou expressando ansiedade em ver os inventores do futebol em campo, não apenas pelo seu estilo de jogo, mas princialmente pelo que poderíamos aprender com eles em termos de organização e cavalheirismo. Um bom exemplo disto foi a excursão que o Southampton, então na segunda divisão inglesa, fez ao Brasil em 1948, para enfrentar o Fluminense e o Botafogo em duas partidas amistosas. Segundo o relato de Mário Filho, a simples atividade de treinamento dos ingleses teria sido acompanhada com admiração pela crônica esportiva nacional, que chegaria ao ponto de emitir “gritinhos de entusiasmo” sempre que um jogador inglês parasse ou chutasse uma bola. [13] Neste sentido, a vitória — fácil, por 4 a 0 — do Fluminense na primeira partida, realizada em 16 de maio daquele ano, teria sido recebida com um sentimento de frustração por parte da torcida, que, insatisfeita, pediria seu dinheiro de volta, chamando os ingleses de “ladrões” e “vigaristas”, como se algo lhes houvesse sido roubado. [14]

Este jogo, descrito por Mário Filho, encontrou alguma ressonância nas páginas da revista O Cruzeiro, do dia 5 de junho de 1948, que publicou duas fotografias mostrando as equipes perfiladas antes da partida. Lembrando o resultado final de vitória da equipe brasileira, bem como a impressão negativa deixada pelo time inglês, encontramos aqui um belo exemplo de como o viralatismo brasileiro apontado dez anos depois por Nelson Rodrigues se manifestava entre nós. As fotos eram acompanhadas pelas seguintes legendas:

“Southampton — Quadro inglês. Note-se a forma com que se apresentam diante do fotógrafo, fabulosamente alinhados, braços cruzados, igualmente ajoelhados, formando um conjunto absolutamente igual e elegante.”

“Fluminense — Ninguém se entende. Um olha para o lado, procurando algum conhecido. Outro põe as mãos, esperando um possível sinal de partida. Alguns fitam o chão. Nenhuma organização. São brasileiros.” [15]

Revista O Cruzeiro. Southampton: “conjunto igual e elegante.” Brasil: Nenhuma organização. São brasileiros.”

A importância de sediar o Campeonato Mundial naquele ano possuía ainda outra dimensão. Também as cidades, ao receberem alguma partida, pretendiam passar a “fazer parte do mapa”, mostrando aos jornalistas estrangeiros, atletas e visitantes (que foram escassos) que possuíam individualmente a condição de modernidade e centros de civilização. Neste sentido, é sintomático que, em Porto Alegre, cidade que recebeu duas partidas válidas por aquele campeonato [16], a Revista do Globo publicasse, no dia 22 de julho, uma coluna, perguntando a dois atletas mexicanos e três iugoslavos, “qual a melhor impressão que você leva do Brasil”? Embora três atletas destacassem especialmente a beleza das mulheres, frases como “no Brasil há muita coisa boa, tanto em Porto Alegre como no Rio de Janeiro” ou “gostei de muitas coisas: das praias, das cidades modernas e da hospitalidade do brasileiro” [17] certamente soavam significativas para a capital gaúcha que, à época, não chegava a 400 mil habitantes. Enquanto isto, em Salvador, o jornal A Tarde lamentava o fato de os baianos não receberem nenhuma partida pela competição, deixando claro como interpretavam a oportunidade perdida.

“Por que a Bahia não foi contemplada com a realização de, ao menos, um dos jogos da Copa do Mundo? Por que não deram à Bahia um estádio à altura de seu conceito no país? Em que ficaram as promessas no sentido de Salvador ser também conhecida no mundo inteiro como uma cidade onde não há onças ou cobras nas ruas? Vejam a propaganda que jogadores suíços e iugoslavos, ingleses e norte-americanos já fizeram de Belo Horizonte. Não pensavam que além do Rio e de São Paulo houvesse outro centro civilizado no Brasil. E irão dizer que em Recife, em Curitiba e em Porto Alegre também não há bichos voadores e mordedores ou índios nas ruas.” [18]

Jornal dos Sports de 16 de julho de 1950, o dia do Maracanazo: “Agora é dar ao Brasil a Copa do Mundo”

Se, aos olhos estrangeiros, a perfeita organização do certame, a construção do Maracanã e o bom futebol já poderiam ser testemunhos suficientes de nossa operosidade, o mesmo parece não ser considerado pelos órgãos da imprensa brasileira, a partir do momento em que buscaram explicações para a derrota diante do Uruguai. Em sua última edição do mês de julho, a revista O Cruzeiro publicava comentários feitos pelo jornalista francês Jean Eskenazi [19], considerando o resultado uma “crueldade da sorte” e os brasileiros os legítimos detentores do “futebol de amanhã”, embora traídos naquele momento pelos nervos e pela falta de domínio tático. Ainda segundo Eskenazi, nenhuma outra Copa até então havia deixado marcas mais fundas que a organizada pelos brasileiros, e arrematava: “a honra é do Brasil”. [20] De forma semelhante, em Salvador, A Tarde abria espaço para o jornalista austríaco Willy Meisl [21], que afirmava ser o Uruguai o campeão mundial de fato, embora o Brasil possuísse àquela altura o melhor team do mundo. [22] Enquanto isto, os jornalistas brasileiros estampavam manchetes como “Não ganharam porque não quiseram…” [23]; “A derrota da máscara” [24]; “A grande desilusão” [25]; “Amarga decepção” [26] ou ainda “Decepção no esporte nacional”. [27]

O cronista esportivo soteropolitano Roschild Moreira se permitia sugerir uma solução mais radical, mas que poderia transformar o selecionado brasileiro em um conjunto de “heróis nacionais”. Após se referir a uma crônica anterior, onde afirmara que gostaria de fuzilar os jogadores e a comissão técnica, Roschild afirma haver mudado de ideia, pois isto seria um crime:

“O caminho mais fácil, a “chance” de fazê-los se reabilitarem, tornarem-se heróis de fato, chegou bem na hora. A ONU não acaba de pedir tropas brasileiras para lutar ao lado dos “yankees” na Coréia? Ótimo! Para a Coréia com o nosso time, notadamente Flávio, Bigode, Barbosa… e os nossos “big” artilheiros que preferiram acima de tudo defender as canelas.” [28]

A derrota para o Uruguai parece nos abrir a perspectiva de duas interpretações opostas. Por um lado, o da imprensa nacional que, em grande medida, ante a derrota, buscava explicações na existência de um “corpo mole” por parte dos brasileiros. Estes, devido à sua “máscara”, teriam subestimado os adversários, jogado sem empenho e sem “raça” no momento decisivo. Já aos olhos dos estrangeiros, causava mesmo certo espanto a carga de significados que atribuíamos ao jogo naquele momento. Em seu texto, Willy Meisl afirmou: “os brasileiros transformaram o foot-ball em coisa muito mais importante do que um simples jogo. ‘Carregaram os jogadores com tanta responsabilidade que os nervos deles não o poderia suportar em tão longo esforço’”. [29]

No Jornal dos Sports de 18 de julho de 1950, as primeiras explicações para o Maracanazo.

Configura-se assim um verdadeiro paradoxo, quando não um comportamento ambíguo ou mesmo neurótico, revelador de como transitávamos, naquele momento, entre as duas interpretações acerca do povo brasileiro. Quando das vitórias, exaltávamos uma seleção que jogava por música, de forma irresistível. Diante da derrota, culpávamos nossos atletas por sua falta de empenho, por sua auto-suficiência ou por seu medo ante a decisão. Cobrávamos a frustração pela não confirmação de nossa condição de desenvolvidos aos mesmos mestiços que, no começo do século, atribuíamos a condição de empecilho à nosso processo civilizatório.

Culpávamos nossos “vira-latas” pelo nosso atraso. E, agora, cobrávamos deles a frustração por tudo o que projetamos sobre um torneio esportivo.

Quatro anos mais tarde, o mesmo discurso se repetiria por motivo da eliminação brasileira na primeira fase do mundial disputado na Suíça, em especial devido à tumultuada derrota ante a Hungria. Por ocasião dos resultados negativos obtidos neste ano, o chefe da delegação, João Lyra Filho, elaboraria seu relatório destacando os motivos pelos quais, sob sua óptica, a seleção brasileira teria colhido resultados pífios em gramados suíços. Indo muito além de uma análise esportiva, Lyra Filho operaria em seu texto uma passagem direta das características do futebol para as características do povo brasileiro. Segundo as considerações do cartola, “os males são mais profundos e seguem do estádio da cultura ao estádio do futebol. Eles descem à própria genética”. [30]

Para Simoni Guedes, na construção de seu texto, Lyra Filho estabeleceria o fator racial como eixo central de seu argumento, compreendendo o brasileiro como resultado de uma mestiçagem que o tornaria um ser “uno e homogêneo”. [31] Esta transposição do mundo de fora dos campos para o universo do futebol destacaria oposições existentes entre o povo brasileiro e os europeus, de modo que à racionalidade e à cultura destes se oporiam à instintividade e à naturalidade que caracterizariam o povo brasileiro. Diante de tais influências, seriamos marcados por um natural descontrole do sistema nervoso, que nos colocaria em uma situação de inferioridade natural ante outros povos. [32]

Claramente tributário das interpretações acerca do Brasil produzidas no começo do século, o relatório de Lyra Filho não apenas se fundamentava sobre uma perspectiva evolucionista, como também condenava o brasileiro — fruto de relações de mestiçagem — a uma eterna posição de inferioridade diante de povos ditos “mais civilizados” e pretensamente de maior pureza genética. Se 1950 nos jogara na face nossa incapacidade de grandes conquistas, o mundial da Suíça serviria como a confirmação cruel de uma condição natural que nos condenava ao eterno fracasso. Não éramos apenas “vira-latas”, mas vira-latas nervosos e descontrolados por natureza, incapazes de elaborar uma cultura tida como densa ou de enfrentar, em qualquer campo, as nações “desenvolvidas” em pé de igualdade. Nosso futebol negava insistentemente Freyre ou à Semana de Arte Moderna, confirmando ao mesmo tempo as teorias de Paulo Prado ou as figuras do Jeca Tatu e do Hércules-Quasímodo.

Este era o histórico que norteava o publico esportivo brasileiro quando do início do mundial de 1958. Ainda que os olhos nos testemunhassem acerca da possibilidade de uma vitória, nossa auto-interpretação, feita imagem em espelho deformado, apenas nos apontava para um obstáculo intransponível: nossa própria natureza. Assim fora em todas as Copas e, a repetir-se o histórico, assim seria novamente. Segundo Ruy Castro, era opinião corrente que, diante da responsabilidade de um campeonato mundial, “o jogador brasileiro derretia-se diante do europeu como um Chica-bon ao sol. Alguns passavam mal de véspera, com dor de barriga, outros sentiam frio; e ainda outros, para provar que não tremiam, descontrolavam-se na violência em campo”. [33] Esta, a raiz da consideração de Nelson Rodrigues acerca de nossa “vira-latice”: não se tratava de derrotar apenas os adversários, mas de superar uma ideologia de inferioridade fortemente arraigada na ideologia nacional.

A conquista na Suécia viria a oferecer um importante contraponto a esta perspectiva. O mesmo Nelson Rodrigues, que ao fim de maio daquele ano teorizara acerca de nosso vira-latismo, agora comemorava:

“Vejam como tudo mudou. A vitória passará a influir em todas as nossas relações com o mundo. Eu pergunto: — Que éramos nós? Uns humildes. (…) diziam de nós que éramos a flor de três raças tristes. A partir do título mundial, começamos a achar que a nossa tristeza é uma piada fracassada. Afirmava-se também que éramos feios. Mentira! Ou, pelo menos, o triunfo embelezou-nos. Na pior das hipóteses, somos uns ex-buchos.” [34]

Jornal do Brasil de 2 de julho de 1958. O Rio de Janeiro pararia para receber os campeões mundiais.

A vitória sobre os suecos, assim, poderia ser entendida como um verdadeiro marco de transformação na forma como o brasileiro via a si próprio. A referência direta à tristeza brasileira, defendida por Paulo Prado anos antes, e transformada agora em anedota sem graça, aponta-nos para a forma como no Brasil, a Seleção é reificada em nação, refletindo as características atribuídas a toda a coletividade. Assim, se em 1950 nos faltara principalmente “raça” e, em 1954, controle emocional, agora nos sobrava tudo isto, e de quebra provávamos aquilo que queríamos provar oito anos antes: que éramos capazes sim, de grandes conquistas, mesmo diante de adversários do “primeiro mundo”. A síntese desta transformação talvez esteja contida na afirmação do narrador da rádio bandeirantes de São Paulo, presente em Estocolmo, ao término da partida: “O Maracanã acontece na Suécia”. [35]

Mário Filho também interpretou, dentro da mesma linha, a vitória sobre os suecos. Conforme Fátima Antunes, Mário, antes do início da Copa, havia desferido “duras críticas aos jogadores brasileiros e a completa insegurança que haviam demonstrado em competições anteriores”. No entanto, após a conquista, se mostraria “completamente encantado com a forma com que a vitória fora conquistada”, vitória que tiraria do Brasil a condição de terra desconhecida e que o levaria ao topo no mundo do futebol. [36]

“Todo mundo se espantou. Mas se espantou como se tivesse visto uma coisa que não veria mais, quase uma assombração. Se se levasse em conta a idade de Pelé, 16 anos, se teria descoberto Pelé um ano antes. Apenas, apesar de se ter visto a jogada espantosa, ninguém quis aceitar a existência de um gênio do futebol, muito menos a de um gênio menino de 16 anos.” [37]

Mostrávamos ao mundo a genialidade de um Pelé, a classe de um Didi (eleito pela crítica europeia o melhor jogador da competição), a segurança de um Belini. Mostrávamos também a alegria de um Garrincha, subvertendo as normas frias dos manuais ingleses que ensinavam a jogar futebol no começo daquele século, fazendo a torcida rir com lances impensáveis. Enfim, com um time de mestiços, negros e brancos, chegávamos ao topo, comprovando nossa capacidade de conquista, não apenas para o mundo, mas, principalmente, para nós mesmos.

De volta à Florença

Voltemos ao gol de Garrincha contra a Fiorentina. Os relatos sobre aquele lance contam que, após o gol, não houve risos ou comemorações. Ao contrário, a jogada despertara comentários de desagrado por parte da comissão técnica e dos próprios companheiros de Garrincha. Afinal, aquilo era “Copa do Mundo” e deveria ser encarado com a devida seriedade, sem querer dar espetáculos contínuos como em 1950 e sem perder a concentração como ocorrera quatro anos antes. Para um time de vira-latas, lances como aquele poderiam mostrar espontaneidade, mas nunca a seriedade e o espírito coletivo indispensáveis para uma equipe vitoriosa. Menos de um mês mais tarde, cantávamos nas ruas que “a taça do mundo é nossa”. Nossa. De um povo mestiço, vira-latas e, subitamente, genial.

A percepção sobre o gol de Garrincha, naquela tarde de 29 de maio, em Florença, definitivamente seria outra.

Gerson Wasen Fraga é professor da UFFS e doutor em História pela UFRGS com a tese “A derrota do Jeca na imprensa brasileira: nacionalismo, civilização e futebol na Copa do Mundo de 1950”.

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