Dominic Adiyiah: Negado o direito de ser herói

Série Copa Puntero traz 11 perfis de personagens que passaram pela história dos Mundiais; no sexto episódio, o ganês que teve o gol defendido pelas mãos de Suárez e, depois, ainda perdeu o pênalti no Soccer City

Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo
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11 min readMay 18, 2018

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Por Leandro Stein

“Ewurade me wu!”

O temor saía das entranhas de Dominic Adiyiah. A frase em Twi, dialeto com o qual o atacante aprendeu a interpretar o mundo, e dominava seus pensamentos mais íntimos, acabou abafada pela reação da torcida no Soccer City, mas se tornou eloquente na exclamação de seus lábios. A Copa do Mundo era a linguagem universal que permitia a bilhões de pessoas diante da televisão se tornarem fluentes naquele idioma endêmico, entenderem perfeitamente o sofrimento do rapaz de 20 anos. E antes que a histeria ensurdecedora das vuvuzelas tomasse outra vez a atmosfera em Joanesburgo, o lamento já tinha ecoado. Não em forma de som, e sim como uma sina que o acompanharia.

“Deus, eu estou morto!”, disse, em outras palavras, Adiyiah.

Ele acabara de desperdiçar a quarta cobrança de Gana na disputa por pênaltis contra o Uruguai, que garantiria uma das seleções nas semifinais da Copa do Mundo de 2010. O camisa 18 caminhou algumas dezenas de metros até a linha do meio-campo, onde se juntou aos demais ganeses, desesperados pela oportunidade desmoronando diante dos olhos, após parecer tão certa. De lá, assistiu à cavadinha de Loco Abreu acariciar as redes e assegurar a Celeste na próxima fase do Mundial. E sentiu o arrebatamento de quem poderia ter proporcionado um momento único na história, mas viu seu sonho ser enterrado vivo, juntamente com o papel de herói, que romperia as fronteiras do continente.

Adiyiah não chorava apenas pelo pênalti defendido por Fernando Muslera. Ele se remoía pela cabeçada fulminante que passou pelo goleiro antes de parar nas mãos de Luis Suárez em cima da linha. Pelo gol negado nos acréscimos do segundo tempo da prorrogação, já suficiente para botar Gana na semifinal. O lance gerou uma penalidade, perdida por Asamoah Gyan, descaminho responsável por levar, minutos depois, o próprio jovem à marca da cal. Mente virada do avesso, tomada pelos inescapáveis ‘e se…’ espalmados ilegalmente, o ganês ainda precisou se submeter à pressão dos 11 metros. Falhou. Rogou a Deus. Questionou a existência.

Até aquele momento, a trajetória de Adiyiah soava como uma sucessão de bem-vindos acasos e injetava vida aos Estrelas Negras. O camisa 18 era visto como o futuro da seleção e, por consequência, do próprio futebol africano — em anos nos quais o país despontava como a grande força continental.

Se Gabriel Jesus pintava as ruas do Jardim Peri às vésperas da Copa de 2014, Dominic jogava bola nas praias de Gomoa Fetteh, no Golfo da Guiné, quatro anos antes de seu primeiro Mundial. O atacante começou em uma academia do Feyenoord, mas ganhou projeção pelo modesto Heart of Lions, de Kpandu — cidadezinha às margens do Rio Volta que não serviria para encher nem um terço do Soccer City, embora tivesse o seu representante na elite do Campeonato Ganês. Em 2008, quando ainda morava no vilarejo, o adolescente foi eleito a revelação da liga nacional. A vitrine já valeu para levá-lo à seleção sub-20, bem como para atrair olheiros europeus. O Fredrikstad não era o time na ponta da língua do prodígio, o que não o impediu de aceitar a proposta para se mudar ao sul da Noruega. Sua ambição custou ao clube €125 mil.

Adiyiah seguia o roteiro de tantos outros jovens jogadores africanos: cortejados por sua potência física em tenra idade, à mercê das deficiências técnicas quando desafiados entre gente grande. O Fredrikstad fez a sua aposta, que não se pagou de imediato — o garoto disputou oito jogos ao longo de um ano e meio, em uma equipe que terminou 2009 rebaixada à segundona norueguesa. Pois sua sorte se moldou graças à seleção de juniores.

Gana conquistou o Campeonato Africano e garantiu sua vaga no Mundial Sub-20 de 2009. Por sua tradição na base e pela força do time que se forjava, os Estrelas Negras surgiam entre os favoritos. Qualidade comprovada dentro de campo, fase após fase, em uma campanha invicta concluída contra o Brasil, derrotado nos pênaltis na decisão. Dominic ergueu a taça como protagonista, e não se contentou apenas com isso, arrebatando os principais prêmios individuais. Tal qual Messi ou Aguero nas duas edições anteriores, levou para casa a Bola de Ouro como melhor jogador e também recebeu a Chuteira de Ouro de artilheiro.

O reconhecimento a Adiyiah tinha fundamento. O atacante tratou aqueles sete jogos como a sua hora e a sua vez. Sobrou fisicamente contra os demais jovens e até apresentou uma certa qualidade na hora de balançar o barbante, ao anotar oito gols em sete partidas. Passou em branco apenas contra o Brasil, na final, compensando com o gol na quinta cobrança da disputa por pênaltis; e, ironicamente, contra o Uruguai, na fase de grupos. Um mês depois do triunfo, o adolescente já ganhava sua primeira convocação à seleção principal, não importava a falta de espaço no saco de pancadas do Campeonato Norueguês. E o Fredrikstad nem reclamava da repercussão. O clube multiplicou por dez o seu investimento inicial, quando o Milan resolveu contratar a revelação nos últimos meses de 2009. Vice-presidente do clube italiano, Adriano Galliani anunciou o reforço como “uma alternativa a Ronaldinho ou Alexandre Pato no ataque”.

O ano de 2010 começou da melhor maneira possível a Dominic. Juntou-se ao Milan, primeiramente integrado às categorias de base. Participou da Copa Africana de Nações, reserva, mas utilizado em algumas partidas da campanha que rendeu o vice-campeonato. E o lastro que recebera como “o amanhã dos Estrelas Negras” garantiu sua vaga na Copa do Mundo, convocado por Milovan Rajevac entre os 23 ganeses. Voltaria à África, mas não para as margens do Rio Volta. Estaria no centro das atenções do resto do planeta, numa ascensão tão repentina quanto deslumbrante.

E o ponto é que Gana não esteve na Copa apenas para buscar uma grande campanha, o orgulho de seu povo ou qualquer ambição limitada a si. Pouco a pouco, aquela caminhada se tornou maior. Ao fim da primeira fase, os ganeses eram os únicos representantes africanos que permaneciam na competição, um peso de serem anfitriões que não partiu deles, mas que assumiram sem sucumbir à pressão ao derrubarem os Estados Unidos nas oitavas de final. Então, viria o Uruguai e a chance de iniciar um novo capítulo na história dos Mundiais, primeiro africano nas semifinais, dentro do continente, diante da torcida, entre danças, vuvuzelas e o que mais representasse a euforia.

Até aquele momento, Adiyiah jogara parcos minutos na Copa do Mundo, saindo do banco nos acréscimos do último jogo da primeira fase, uma alteração daquelas só para fazer o relógio correr mais rápido, quando a passagem às oitavas estava nas mãos. Porém, o treinador avaliou que sua entrada era necessária contra o Uruguai. O relógio marcava 43 minutos do segundo tempo, o placar estava empatado em 1 a 1 e a confiança no garoto explosivo se justificava em meio ao cansaço da prorrogação. Dominic teria meia hora para se consagrar. Para marcar o primeiro gol pelos Estrelas Negras, algo que até então não tinha acontecido.

E em uma prorrogação arrastada, como tantas vezes são os minutos a mais em um jogo que vale a vida, Adiyiah pouco fazia, inútil ante o enclausuramento da defesa uruguaia. No destino de uma noite decisiva de Copa fadado à agonia, a esperança surgia apenas em bolas vadias, prontas a maltratar o coração de quem quer que fosse, por mais recompensador o gozo de seu escolhido. Dominic pareceu ser este escolhido nos acréscimos do segundo tempo extra. A pelota levantada na área gracejava em busca de alguém que a arrematasse. Na confusão, após ser salva em cima da linha a primeira vez, pretendeu-se à testada cheia de vontade do garoto. Mas, no meio do caminho, viu as mãos de Luis Suárez surgirem, e por lá ficou, negada por todo o sempre de render um dos gols mais memoráveis dos Mundiais. O impulso do uruguaio seria o épico por linhas tortas, julgadas e transformadas em questão moral por aqueles que não admitiam, afinal, um ato previsto e punido conforme as regras.

Adiyiah desesperou-se, gritou, correu em direção ao árbitro. Mas este era apenas seu impulso em reação. Com um pouco mais de racionalidade, não reclamava do horizonte que se abria. Tudo bem, não seria mais ele o herói africano, que faria a emoção transbordar no continente. Ainda assim, a chance estava posta na marca da cal, a Asamoah Gyan, salvador contra os Estados Unidos e autor de dois gols de pênalti naquele mesmo torneio. Seria uma coisa de segundos. Virou de centímetros, no chute que estalou o travessão, sem derrubar Gana naquele instante, mas fazendo a fé de qualquer crente balançar. Suárez, aflito pela vilania que se mostrava irreversível, saiu em disparada para celebrar o erro, no túnel que dava acesso aos vestiários do Soccer City. Na noite em que um dos lados acabaria condenado, ele se livrou da penitência.

Gyan perdeu um mundo com o primeiro pênalti, mas temia perder o seu mundo se falhasse novamente. Por isso, lamento dissipado, a coragem tomou seu peito para converter a primeira cobrança, assumindo um risco que até não precisava ao mirar o ângulo e mandar a bola lá onde o goleiro não alcançaria, ainda próxima ao travessão. Era a motivação aos companheiros, o recado de que ainda dava, de que tudo estava nos trilhos. Mas não estava. Mensah chutou nas mãos de Muslera a terceira batida, algo que Adiyiah mal olhou, prostrado ao centro do campo. Um erro que se compensou quando Maxi Pereira buscou as nuvens no quarto tiro do Uruguai. Tudo igual, a responsabilidade cabia a Dominic. O menino mergulhado pela imaginação do que não foi, precisando garantir o que seria, na enormidade de uma ocasião que nunca tinha sido sua.

Não foi uma cobrança tão ruim. Adiyiah manteve as pernas firmes quando a maioria certamente fraquejaria. Buscou o canto e bateu por baixo, como manda a cartilha. Muslera, braços abertos, o esperava. Estava bem mais leve que o ganês, livre de uma consequência pesada que não lhe cabia. Saltou no canto certo. Quando Dominic já parecia acelerar à sua esquerda, desejoso da comemoração aliviada por cumprir sua obrigação, percebeu que a bola novamente parava em mãos ceifadoras.

“Ewurade me wu”

Loco Abreu seguiu à sua missão com uma frieza bastante distinta do garoto que o antecedera. Estudou o goleiro e percebeu sua precocidade nos movimentos, a maneira como saltava antes de qualquer chute. Por mais que Kingson estivesse avisado sobre a mania do uruguaio em tirar o peso da bola, supôs que ele não se atreveria a cometer a temeridade num momento tão importante, assim como não seria ele o louco a ficar parado no meio do gol. Abreu anteviu tudo isso e não mudou seu jeito. Tornou aquele pênalti imponderável eternamente, flutuante esfera suspensa no ar, findando a espera uruguaia. Iniciando o peso esmagador sobre Gana. Adiyiah, desolado, precisou ser amparado por companheiros e membros da comissão técnica. Cabeça coberta por sua camisa, escondendo o choro compulsivo, seguiu aos vestiários para nunca mais voltar a uma Copa.

Coube a Gyan a cruz de vilão, por centímetros cruéis. O reconhecimento maldito de quem poderia ter sido e não foi, mesmo que tenha voltado a outra Copa do Mundo, que tenha se tornado o maior artilheiro africano na história da competição. Anotou seis gols, todos menores que a lacuna. Como consolo, seguiu à Inglaterra e, depois, no Oriente Médio, se tornou um dos jogadores mais bem pagos do mundo. Dinheiro insuficiente para borrar a memória que o persegue diariamente e que o levou a assistir mais de mil vezes o replay daquele pênalti.

A pena que recaiu sobre Dominic Adiyiah seria diferente, mas não menor. O jovem atacante estaria condenado ao ostracismo. Poucos se lembrariam de seu nome, de sua história, da forma como se aproximou da eternidade dos Mundiais. Seria apenas o caso de um prodígio perdido, ignorado nas ruas, sem sequer permanecer como uma alternativa ao futuro da seleção ganesa. Convocado uma vez ou outra até 2013, sua nova chance em uma Copa do Mundo nunca aconteceu, espiral na qual sua carreira se afundou pouco a pouco. As promessas feitas em sua ascensão rapidamente se esfarelaram contra o vento. Neste momento, o gosto de participar de um jogo histórico como aquele Gana x Uruguai já parece demais ao atacante.

O Milan logo percebeu que Adiyiah não era aquilo tudo que indicou no Mundial Sub-20 e o cedeu em empréstimos sucessivos a clubes distantes da badalação do San Siro. Não deu certo na segundona italiana, pela Reggina, ou mesmo no marasmo da segundona turca com o Karsiyaka. Vestindo a camisa do Partizan Belgrado, mal entrou em campo na Sérvia. Só teria um pouco mais de sequência no Arsenal de Kiev, onde desembarcou ao término de seu contrato com os milanistas, encerrado em 2012. Jogou uma boa temporada na Ucrânia, e foi só. Deslocado para a ponta, encontrava mais dificuldades a se adaptar, assim como os salários atrasados também pesavam contra o seu desempenho. Arrumou as malas novamente em 2014, partindo mais ao leste, para defender o Atyrau, do Cazaquistão. E em 2015, estabeleceu morada em Khorat, na Tailândia.

“Adido”, como é chamado carinhosamente pela torcida, mora na maior província do interior tailandês. O Nakhon Ratchasima, seu clube, possui a segunda maior média de público da liga local, superando os 11 mil torcedores por partida, e os cartazes em homenagem ao ganês pipocam vez ou outra nas arquibancadas. Desde que chegou, o atacante se firmou como um dos principais nomes da equipe, que costuma ser figurante no meio da tabela. Aos 28 anos, desfruta de uma sequência como titular que é inédita na carreira.

Às vésperas de mais uma Copa do Mundo à qual não irá, porém, Adiyiah atravessa um momento de incertezas. Apesar de ter renovado o seu contrato meses atrás, até 2019, a diretoria do Nakhon Ratchasima cogita romper o vínculo. Lesionado, perdeu diversas partidas durante as últimas semanas, o que aumenta a preocupação.

O caminho escolhido por Dominic para superar as turbulências, mais uma vez, é a sua fé. Cristão, demonstra fervor em sua religiosidade diversas vezes através das redes sociais. Não foi o pênalti desperdiçado há oito anos que comprometeu a sua crença, a despeito daquelas palavras vacilantes em Twi. Embora sua realidade seja bastante diferente do que prometia em 2010, remoer os “e se…” não o levará a nada. Por isso, prefere deixar o lance onde está: no seu passado.

Quando revisita as fotografias de outros tempos, Adiyiah prefere exaltar a glória no Mundial Sub-20. Prefere guardar os momentos realmente felizes. Seus laços com Gana se mantêm principalmente através de trabalhos sociais que realiza. Auxilia a população prisional do país e chama os detentos singelamente de “fãs”, como se ainda fossem seus torcedores. Sabe que destino é uma questão de detalhes. De centímetros, de segundos, de frações. E, sem poder voltar ao que já foi, tudo depende da perspectiva — a ele ou a quem quer que seja.

O esquecimento de Dominic, afinal, não é total. A diferença está em se fazer importante, e não foram as mãos de Suárez ou de Muslera que negaram outras possibilidades. A quem poderia ainda estar nas praias de Goma Fetteh ou às margens do Rio Volta, a bola permitiu contornar o globo. O lamento por aquilo que não se deu tornou-se menos visível do que a gratidão por ser o que é.

Melhor deixar estar.

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