Ernst Jean-Joseph: O homem que deveria desaparecer

Série Copa Puntero traz 11 perfis de personagens que passaram pela história dos Mundiais; no décimo episódio, o haitiano que se tornou o primeiro banido por doping em Copas — e por pouco não apanhou até a morte

Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo
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8 min readJun 6, 2018

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por Miguel Enrique Stédile

Muitos anos depois dos acontecimentos, Ernst Jean-Joseph ainda é procurado, em vão, pelos jornalistas. Condenado pela FIFA, pelo governo do seu país e pela história, Jean-Joseph se autopeninteciou com o silêncio. Não dá entrevistas e não permite que seja encontrado. Cumpriu sua pena: desapareceu.

Começou no futebol em sua cidade natal, Cap Haitien, e prosseguiu no AC Violette, da capital Porto Príncipe, um dos (poucos) grandes times do país. Aos 25 anos, era titular da única seleção haitiana a conquistar uma vaga para a Copa do Mundo, em 1974. Com 1,85 metro, mestiço com cabelos ruivos, foi descrito pela revista Placar, em junho de 1974, como “um líbero com certa categoria” e “um dos poucos [da seleção haitiana] que parecem saber jogar futebol”.

Mas o mundo veria Jean-Joseph em campo por apenas um jogo. Sua carreira foi condenada ao fim depois dos 90 minutos iniciais do Mundial, sem que ele explicasse exatamente por quê.

Até então, o seu destino parecia ser a glória. A classificação do Haiti era motivo de festa e orgulho nacional. Mas, aparentemente, Jean-Joseph não foi o único jovem responsável pela classificação do país para a Copa. Em 1957, François “Papa Doc” Duvalier se deu o direito de virar presidente vitalício do Haiti, perseguindo e assassinando os oponentes políticos, apoiado por uma milícia particular, os Tonton Macoutes. Com a sua morte em 1971, seu filho Jean-Claude “Baby Doc” Duvalier, aos 19 anos, herdou o cargo, a milícia, o país e os métodos. Porém, preocupado com a repercussão internacional e com a sua popularidade, Baby Doc considerou as eliminatórias da Copa do Mundo uma excelente oportunidade para legitimar o seu regime.

O hexagonal organizado pela CONCACAF — disputado pelo Haiti, México, Trinidad & Tobago, Honduras, Guatemala e as Antilhas Holandesas — e que garantiria a vaga para a Copa da Alemanha foi todo realizado no estádio nacional Sylvio Cator, em Porto Princípe, reformado especialmente para o qualificatório e com capacidade para 30 mil pessoas. Além do fator torcida local, outras forças pesaram a favor dos donos da casa. Na partida contra Trinidad & Tobago, o árbitro José Roberto Enriquez, de El Salvador, anulou cinco gols legítimos dos visitantes. “Eu não pude acreditar, Trinidad & Tobago marcou cinco vezes e deveria ter um pênalti marcado em cada tempo. Dizem que os gols decidem uma partida, mas não foi isso que aconteceu nesta noite” escreveu Keith Sheppard no Trinidad Guardian. Não se sabe é verdadeira a versão de que o jovem presidente, em pessoa, teria ameaçado Enriquez de morte em caso de um resultado desfavorável. Por via das dúvidas, o governo também investiu em feiticeiros que eram vistos conjurando maldições contra os adversários nas arquibancadas. O fato é que o Haiti venceu por 2 a 1 e, um ano depois, a FIFA baniu o juiz e o bandeirinha canadense James Higuet.

Anos mais tarde, o meio-campo Jean Herbert Austin lembraria: “Essas três semanas foram as mais incríveis que me lembro em Porto Princípe. Depois de cada vitória, havia um carnaval nas ruas e tudo ficava praticamente parado. O jogo decisivo foi contra a Guatemala e, antes da partida, Duvalier estava no vestiário incentivando-nos a ganhar e vencer para o Haiti”. Após a classificação, com a vitória por 2 a 1, Baby Doc retornou ao vestiário para proclamar os jogadores como heróis. Titular da equipe, Jean-Joseph ainda era um deles.

Antes da viagem para a Alemanha, Baby Doc recebeu os jogadores novamente, desta vez no próprio palácio presidencial. Fez as esperadas declarações de motivação e expectativa com o sucesso da seleção. Mas, em meio ao seu discurso, incluiu uma menção ambígua a Joe Gaetjens. Por um lado, os jogadores poderiam se inspirar naquele que era, até então, o maior ídolo do futebol do país: mesmo jogando pela seleção dos Estados Unidos, na Copa do Brasil em 1950, Gaetjens fora o autor do surpreendente gol dos norte-americanos na vitória contra a Inglaterra. Por outro lado, Baby Doc lembrava que por conta de suas posições políticas de oposição ao regime de Papa Doc, Gaetjens fora sequestrado pelos Tonton Macoutes e seu corpo nunca foi encontrado.

Na Alemanha, a missão haitiana não era das mais favoráveis. No seu grupo estavam a vice-campeã mundial Itália, a Polônia e a Argentina. O objetivo era, ao menos, demonstrar dignidade.

No dia 15 de junho, Itália e Haiti abriram o grupo 4 da Copa, em Munique. O público de 53 mil pessoas demonstrou simpatia pelos haitianos, apoiando o selecionado caribenho. E então, no início do segundo tempo e contra todos os prognósticos, Phillipe Zorbe realizou um lançamento em profundidade do próprio campo, o atacante Emmanuel Sannon se desvincilhou da marcação, ganhou na velocidade e driblou o imbatível goleiro Dino Zoff, que até então ostentava a marca de 1.143 minutos sem gols, abrindo o placar. Anos mais tarde, Sannon definiria este como seu melhor momento no futebol: “Eu lembro do rosto de Zoff, ele estava absolutamente furioso com sua defesa, e eu também estava alegre porque sabia que, em casa, todos estariam enlouquecendo”. Ao mesmo tempo, o gol surpreendeu o próprio time haitiano. “Psicologicamente, não acho que estivéssemos prontos para isso e perdemos nossa concentração”, lembrou o atacante.

O momento mágico em que a pequena seleção caribenha subjugava a poderosa Itália durou apenas seis minutos. Na sequencia, Rivera empatou, a realidade reestabeleceu sua ordem com Benetti, e Anastassi encerrou o placar. O Haiti fora derrotado, como previsto, mas deixava o Olympiastadion de cabeça erguida.

Aqui, os caminhos se desentrelaçam. Mesmo com a derrota para a Itália — e depois para a Polônia e Argentina — a seleção haitiana ainda seria venerada pelos seus compatriotas. Emmanuel Sannon se tornaria o maior nome da história do futebol haitiano pelos dois únicos gols do Haiti em uma Copa, este contra Itália e depois contra a Argentina, além de ser eleito o atleta haitiano do século. Após passagens pelo campeonato belga e pela liga norte-americana, retornou ao país, aonde ainda treinaria a seleção entre 1999 e 2000. Vítima de um câncer no pâncreas em 2008, seu enterro foi transmitido por redes de televisão e gerou uma comoção nacional a ponto do Congresso haitiano aprovar uma pensão vitalícia para sua família.

O destino de Jean-Joseph também seria decidido na partida contra a Itália. Sua atuação foi elogiada. Segundo a revista Placar, “com incrível resistência, ele fechou a defesa do começo ao fim e, sempre que possível, cobriu as falhas do lateral Auguste. Jogou tão bem que o Haiti chegou a estar vencendo a Itália por 1 a 0”. Assim como Sannon, Jean-Joseph foi sorteado para o anti-doping.

Dois dias depois, na segunda-feira, Gottfroed Schoenholzer, diretor de controle antidoping da FIFA, anunciava o primeiro caso de um atleta dopado em uma Copa do Mundo. Os exames da urina de Jean-Joseph apontavam a presença da substância Phenylmetrazin. O médico da seleção haitiana, o francês Patrick Hugeaux, e outro especialista foram chamados para analisarem a contraprova. Após o exame, Hugeaux sentenciou: “Fui ver e não pude dizer nada. O exame da FIFA é sério e não pode ser constestado: Jean-Joseph jogou dopado”.

Em sua defesa, o jogador alegou que tomava Preludium para conter crises de asma, recomendado pelo médico da família, sem saber que o medicamento continha substâncias proibidas pela federação de futebol.

Surpreendentemente, foi desmentido pelo próprio médico da delegação haitiana. “Jean-Joseph não é asmático, estou com os jogadores da seleção há três meses, tenho a ficha médica de cada um, e ele não sofre de asma. Além disso, Preludium nunca foi remédio para asma, ele é um estimulante”, declarou Hugeuax para a imprensa, que ainda diria que o jogador “não era inteligente o suficiente para saber o que estava fazendo”. Talvez o médico já imaginasse que, ao colocar toda culpa para o atleta, salvava a própria pele. Na terça-feira, o Comitê Organizador anunciava que Ernst Jean-Joseph estava banido da Copa.

O primeiro desaparecimento do jogador foi físico. Enquanto jornalistas e jogadores ainda tentavam entender o caso e o próprio Jean-Joseph vagava desorientado pelo saguão do hotel, agentes da polícia política haitiana sequestraram o jogador a luz do dia e às vistas de todos. No trajeto para o aeroporto, o jogador foi violentamente espancado, supostamente o ditador teria ordenado para que chegasse vivo, mas “desfigurado e irreconhecível”. Setenta e duas horas depois, Jean-Joseph aterrisaria em Porto Princípe para ser julgado por “ter desonrado o país e o seu líder”.

O sequestro, obviamente, afetou aos seus companheiros de equipe. O zagueiro central Fritz Plantin lembra que não dormiram na véspera do jogo contra a Polônia: “para ser honesto, eu estava pensando apenas em Ernst, não no jogo”. O resultado se percebeu em campo. A revista Placar registrou assim o massacrante resultado de 7 a 0 para o time polonês: “o valente Haiti, que tanto trabalho dera à Itália quatro dias antes, não passou de um inocente sparring. Afinal, por definição, os milagres têm limites, sobretudo quando se devem, em parte, aos progressos da indústria farmacêutica internacional. Sem Jean-Joseph a defesa do Haiti não passou de uma brincadeira e de uma tentação para a velocidade, penetração e poder de chute do ataque da Polônia”.

Mais tarde, para diminuir as tensões, Jean-Joseph teria telefonado para a delegação para confirmar que estava vivo, cumprindo ordens do ditador. Ainda assim, foi condenado à prisão em um campo de concentração, onde sofreria novas torturas.

Dois anos depois, o jogador foi libertado. Uma das versões alega que a pena tinha apenas essa duração e foi cumprida. Outra, afirma que Jean-Joseph demonstrou bom comportamento no campo de prisioneiros, o que antecipou sua liberdade. E há outra de que simplesmente o Haiti não possuia outro jogador nas mesmas condições técnicas para disputar as eliminatórias da Copa de 1978.

Reintegrado ao Violette, defendeu a seleção em sete partidas na disputa por um lugar no Mundial. Porém, os eventos sobrenaturais que classificaram o Haiti quatro anos antes não se repetiram e o país não conseguiu a vaga para a Copa da Argentina. Naquele ano, o jogador ainda disputaria nove partidas da Liga norte-americana pelo Sting de Chicago. Retornaria novamente ao Violette, onde se aposentaria como técnico. Antes, em 1980, recebeu sua última convocação para a seleção, jogando uma partida das eliminatórias contra as Antilhas Holandesas.

Apesar de se declarar inocente no episódio de doping, nos anos seguintes, Jean-Joseph admitiria ter cometido um erro prejudicial ao país e seu presidente e que buscava se redimir. Com a aposentadoria, desapareceu novamente. Passou a evitar a imprensa e a falar sobre o episódio. Um amigo da família justificou o comportamento: “Uma das razões pelas quais ele odeia falar sobre o que aconteceu é a vergonha que ele sente ter trazido para o Haiti. Ele prefere esquecer que isso aconteceu”.

Depois dele, outros dois jogadores foram condenados e banidos por doping na história do torneio: Willie Johnston da Escócia em 1978 e Diego Maradona em 1994.

A presidência “vitalícia” de Baby Doc terminou em 1986, diante das revoltas populares que levaram ao seu exílio na França. Estima-se que 150 mil pessoas foram assassinadas no seu governo e mais de US$ 100 milhões foram desviados dos cofres públicos para fins particulares. Retornou ao país em 2011 e somente três anos depois a Justiça abriu um inqúerito contra o ex-ditador por crimes contra a humanidade. No mesmo ano, faleceu de um ataque cardíaco.

A seleção do Haiti jamais se classificou novamente para uma Copa do Mundo.

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