FC Lampedusa, a incrível história do time de refugiados apoiado pelo St. Pauli
Na segunda parte da reportagem no bairro de Sankt Pauli, em Hamburgo, a equipe amadora que revoluciona o que se entende por futebol — mais até que o próprio irmão famoso
Por Thales Machado
Leia primeiro: St. Pauli, o clube que vai além
Nota: esta é uma história de futebol que está contida dentro de outra história de futebol. Se você ainda não leu, publicamos uma grande reportagem sobre o St. Pauli. Na tentativa de desvendar os mitos sobre o clube com tendências libertárias, descobrimos um desconhecido time amador de refugiados que se relaciona com o irmão famoso. Recomendamos a leitura da primeira parte da reportagem antes de avançar pelas próximas linhas.
Passeando pelas ocupações de Hafenstraße e tirando as fotos que ilustraram boa parte do primeiro texto da reportagem, tomado pela simpatia causada pelo St. Pauli, voltando para a parte mais turística do bairro, fazendo algumas compras relacionadas ao time, uma vitrine de loja me chamou a atenção. Camisetas, adesivos e bolsas de um outro time de futebol eram vendidas ali, no bairro-ninho do St. Pauli. FC Lampedusa era o nome exaltado. Como sabia que Lampedusa era na Itália, fiquei confuso, então recorri ao Google.
Encontrei um time com um chamativo uniforme amarelo e vermelho em fotos com meninos muito jovens jogando. O St. Pauli, ao contrário de rivalizar com o Lampedusa, o apoia. Trata-se de um time amador, que tem em seus quadros apenas jogadores refugiados de várias partes do mundo. O bairro de Hamburgo recebe os garotos, monta o time, os coloca para treinar e jogar amistosos, tudo visando à socialização dos refugiados.
Curioso, entro na loja. Uma moça simpática me atende. Tem mais de 40 anos e um jeitão alternativo perceptível, semblante de quem vive a vida bem. Falo sobre o clube, pergunto se ela sabe onde eu possa conseguir mais informações, com quem eu posso falar.
“Vou fazer um café pra gente. Pode falar comigo. Eu sou dona desta loja, mas sou também a treinadora do Lampedusa.” Antes que eu pudesse comemorar a sorte de repórter, ela aponta para um garoto com cara de 18 anos, simpático, que limpa os vidros da vitrine naquele momento, e me dá mais uma notícia boa. “E aquele ali é o Rexhep. Ele é um refugiado, vindo do Kosovo. E é meio-campo do time. Se você quiser pode falar com ele também.”
Hagar, a moça, é uma das quatro treinadoras do Lampedusa. Quatro mulheres que já jogaram futebol e treinaram em um time feminino montado pelo St. Pauli, e que decidiram se unir para tocar esse projeto.
Ponto de chegada, ponto de partida
Lampedusa é o nome de uma ilha no Mar Mediterrâneo, historicamente famosa pelas lindas praias frequentadas pelos italianos em férias. Hoje, é mais lembrada como primeiro ponto de chegada de refugiados, especialmente do Norte da África, com destaque para a Líbia, por sua posição geográfica. Desde antes da atual onda migratória, já no começo dos anos 2000, a ilha teve essa função, e acabou virando o nome do time porque os primeiros jogadores vieram justamente do centro de detenção da União Europeia em Lampedusa, de onde são liberados para tentar a vida em algum país europeu.
Em 2013, dois anos após o início da Guerra da Líbia, 80 dos milhares de refugiados do país que foram parar na ilha conseguiram chegar a Hamburgo, ficando abrigados na igreja do bairro de Sankt Pauli. A torcida organizada do St. Pauli montou barricadas para a proteção dos recém-chegados, e o bairro foi lutando contra as autoridades que queriam expulsá-los. Nessa colaboração surgiu o Lampedusa, o time de futebol dos refugiados líbios de Hamburgo, que se viu obrigado a aceitar outras pessoas vindas de diversos lugares depois da mais grave e recente crise migratória, iniciada em 2014.
O escudo do time já diz muita coisa sobre os objetivos do Lampedusa. Redondo, com o nome do time em cima e do bairro de St. Pauli embaixo. Dentro, uma âncora representa justamente a cidade e o bairro, que fica numa região portuária. A âncora é formada por um braço com os punhos cerrados em sinal de resistência, e se o lado esquerdo mostra uma seta, com a tendência esquerdista do time, no outro está a figura da bola. O lema do clube, “Here to play” (aqui para jogar), vai ao encontro do lema de muitas lutas pelos refugiados: “here to stay” (aqui para ficar)
Hoje várias nacionalidades e sonhos se misturam. Desde um jogador afegão que não conseguia jogar em seu país porque não tinha documento até garotos que nunca sonharam em ser jogadores, mas que encontraram no futebol em Hamburgo uma maneira de serem bem recebidos e acolhidos, em vez de enfrentarem a fúria de bairros, cidades e países que fazem campanha pela volta dos refugiados a seus países de origem. Eles não podem também jogar em times profissionais da Alemanha, em maioria, principalmente por não terem um endereço registrado, mas isso não é problema para entrar no quadro do Lampedusa, hoje com pouco menos de 30 jogadores.
“É mais ou menos isso, mas o nosso quadro é muito móvel, justamente pelas questões dos refugiados. Não é raro, aliás, acontece sempre, pelo menos uma vez por mês de termos jogadores que são deportados de volta para seus países de um dia para outro”, comenta com pesar a treinadora.
“Isso nos abala muito, porque acostumamos com as pessoas, fazemos amigos, companheiros dentro e fora de campo. Somos irmãos jogando e levamos uma vida difícil. Treinamos um dia e no dia seguinte um irmão nosso não está mais lá porque foi mandado embora. É muito triste. Mas nos unimos ainda mais e torcemos uns pelos outros”, completa Rexhep, o jogador refugiado do Kosovo, que chegou a ser deportado para o Leste Europeu, já que algumas regras estabelecem que ele deve ficar no país onde pisa primeiro na Europa, não podendo procurar melhores chances em outro lugar. Com o tempo, ele se arranjou e conseguiu voltar para o campo de refugiados em Hamburgo e para o time.
Rehxep é um dos poucos que consegue arranhar o inglês, ainda assim com muitas dificuldades. A maioria dos recém-chegados não sabe falar nem alemão, e a técnica tem dificuldades de marcar treinos e viagens porque muitos jogadores não conseguem ler placas ou se orientar via transporte público. Tudo tem que ser muito pensado. Qualquer viagem para uma cidade fora do perímetro urbano de Hamburgo pode ser a última aventura de algum jogador na Alemanha, sob risco de deportação.
Dias depois da nossa entrevista, Hagar, Rexhep, as demais treinadoras e os outros jogadores receberam uma notícia que talvez tenha sido o maior troféu conquistado até aqui pelo Lampedusa. O projeto foi agraciado com um City to City Barcelona FAD Award, renomado prêmio catalão que escolhe as melhores iniciativas urbanas fora da Espanha que melhoram a vida dos cidadãos. Como um dos patrocinadores do prêmio é a “Fundação Barcelona”, ligada ao time de Messi, Neymar e Suárez, o prêmio foi entregue de maneira especial.
Após quase um mês de preparação e de negociação, autorizações, burocracias, no último fim de semana de novembro o FC Lampedusa St. Pauli desembarcou em Barcelona, onde realizou treinamentos na mesma Ciudad Deportiva em que o melhor jogador do mundo treina diariamente. Impossível imaginar a satisfação dos jogadores com essa semana, que envolveu também um tour no museu do Barça, ver um treino da equipe feminina principal (que encantou principalmente as treinadoras, todas ex-jogadoras de futebol) e, claro, conhecer o Camp Nou. Sempre presente, o St. Pauli colaborou e contou com a ajuda de um fã-clube do time na capital catalã.
O Barcelona ainda organizou um amistoso do Lampedusa, na Ciudad Deportiva, contra a Penya Blaugrana Vallirana, time de um projeto social que é apoiado pelo clube. Quando a disputa de um jogo já é a vitória por si só, entende-se que o futebol tem outro significado. Fruto de um bom trabalho feito no time de refugiados de St. Pauli, onde até mesmo a forma de chamar os jogadores é importante.
Rexhep, por exemplo, é só Rexhep, sem sobrenome. Ao menos ali no Lampedusa. Como parte da política de integração do time, as histórias deles como refugiados não importam em campo e na convivência nos treinos. Ali eles estão “para jogar e para ficar”, para construir uma nova história. Assim, a trajetória de antes não importa, a menos que eles queiram compartilhar. Usam somente os primeiros nomes, para que os sobrenomes não identifiquem as nacionalidades e criem panelinhas étnicas. Os jogadores se chamam pelo nome, e tratar alguém pela nacionalidade, “o afegão”, “o árabe”, “o libanês”, “o cara da Somália”, pode gerar repreensão das treinadoras. Educadamente, Hagar e Rexhep mudam de assunto quando abordados com perguntas sobre os motivos dos jogadores terem que sair de seus países. Ao menos ali, o futuro é o que interessa. Nem Rexhep me conta porque deixou o Kosovo, nem Hagar faz questão de dizer o porquê de seu marido, Fernando, o mais velho entre os jogadores do time, ser o único refugiado sul-americano da equipe, vindo da Colômbia há alguns anos.
“O importante é que eles estão com outras pessoas que estão na mesma situação que eles, sem importar se eles vieram do Iêmen, da Albânia ou da Sérvia. Eles não sabem falar a língua, não têm casa, não tem equipamento. Eles viram irmãos jogando futebol juntos”, justifica a treinadora.
O time joga apenas partidas e torneios amistosos, sem interesse de adentrar nenhuma liga profissional, já que os jogadores não teriam tempo, nem os documentos necessários. Isso, no entanto, não faz o Lampedusa nada diferente do que se chama time de futebol.
“A gente não é o tipo de time que pode jogar um jogo regularmente, todo fim de semana, com obrigação de aparecer. A gente também não é filiado a nenhuma associação, não tem isso de passe de jogadores, burocracia. Mas a gente é um time de futebol de verdade, com treinos regulares e alguns jogos, e para virar nosso jogador basta ser refugiado e ter no mínimo 16 anos”, detalha Hagar, que parece se incomodar com o rótulo de “time amador”, talvez com razão.
As treinadoras e organizadoras sabem que eventualmente seus jogadores enfrentam problemas com a imigração, e por isso não pedem nenhum documento a quem faz parte do elenco. Há até casos de jogadores registrados em pequenos clubes em seus países de origem, mas que podem jogar no Lampedusa porque não há filiação de verdade.
Hagar mostra bem como pode ser a rotina de uma temporada do time. “Tem gente que vai vir para cá e talvez conseguir ficar só três semanas em Hamburgo, três semanas no nosso time. A gente tenta fazer com que sejam dias os mais felizes possíveis. Nossa tristeza de perder um jogador no meio da temporada é pela injustiça de deportarem e não deixarem um ser humano viver aqui porque ele não é alemão”, diz, antes de concluir, com brilhantismo, dizendo que “futebol é algo a mais do que simplesmente jogar futebol”.
Apoio incondicional
O St. Pauli, a equipe profissional do bairro, apoiou desde o início, com equipamentos, divulgação, apoio dos torcedores e organização de eventos junto à Fanladen, que dá suporte até hoje. No ano passado, Hagar perdeu o campo onde realizava o treinamento, fora do clube, e o St. Pauli passou a liberar toda a estrutura para uso time de refugiados. No meio do ano, virou parceria registrada: o Lampedusa virou o time oficial de refugiados do clube da segunda divisão alemã, trocando seu nome de “FC Lampedusa Hamburgo” para “FC Lampedusa Sankt Pauli”.
Para além deste apoio, o assunto refugiados é a nova e mais quente luta da torcida do St. Pauli. Adesivos de boas vindas aos refugiados estão por toda parte no bairro e no estádio, a peça da moda da loja oficial é uma bonita camiseta com um símbolo de resistência dentro do escudo do clube e a frase, que é o slogan da campanha oficial do clube: “nenhum ser humano é ilegal”. Não ser considerado ilegal é de uma felicidade tremenda para Rexhep.
“Eu estava no campo de refugiados e uns caras me contaram sobre um time que aceitava refugiados para jogar. Me convidaram e eu fui. Foi a primeira vez em muito tempo que eu pude conversar com pessoas que não estavam comigo no mesmo campo de refugiados, agora estavam em um campo de futebol. Além de jogar aqui, pude fazer amigos, conhecer pessoas de outros países, e ficar um pouco longe dos tantos problemas que a gente teve. O bairro para mim é como uma família, as pessoas são muito amigáveis com os refugiados aqui, são pessoas com a cabeça aberta, respeitam pessoas como nós. Quando eu estou aqui, ou quando eu estou jogando no Lampedusa, eu estou feliz”.
Rexhep tem 22 anos e é um meia habilidoso e forte, segundo sua treinadora. Fã de Gerrard, antes, no Kosovo, torcia para o Liverpool. Hoje, claro, virou um grande fã do St. Pauli. Ia a muitos jogos, mas só ficava na porta, vendendo camisetas, adesivos e gorros do Lampedusa, uma das poucas formas de renda do time de refugiados. Até que um dia alguém apareceu com alguns ingressos para os jogadores que lá estavam. Entrou pela primeira vez em um estádio de futebol profissional. Viu, sozinho, da parte sul, a mais agitada do estádio, o St. Pauli batalhar contra o Werder Bremen. Ninguém o tratou mal e ele se sentiu parte daquele movimento.
Ele não se lembra do resultado do jogo, mas não esquece a experiência. Não está muito preocupado com o fato, na época da entrevista, do St. Pauli estar na última colocação do campeonato. Não deve estar tão nervoso hoje, quando ao fim do primeiro turno, o St. Pauli termina ainda na lanterna, com apenas duas vitórias em 17 jogos, o rebaixamento para a terceira divisão um fantasma cada vez mais real. Rexhep tem noções que vão além dos conceitos de vitória e derrota.
O FC Sankt Pauli também vai além da ideia de vencer e perder, de ser líder ou último colocado. E desde que deixei a cidade não consigo tirar da cabeça a ideia de que a lanterna do time, que em campo está longe de fazer 7 a 1 em alguém, fora pode servir para iluminar as ideias de um mundo melhor.
Atualização (11/01/2017): Após a publicação da nossa reportagem sobre o Lampedusa, o time de refugiados de St. Pauli, Hagar, a treinadora, entrou em contato e nos contou que Rexhep, jogador do time, por estar “ilegalmente” no país, foi preso pela polícia alemã no aeroporto de Hamburgo exatamente um mês após nossa entrevista. No momento, o meio campo está em processo de deportação para o Kosovo, seu país de origem. “Para vocês verem como é duro o trabalho do Lampedusa”, nos disse a treinadora, que garantiu que tanto Rexhep como os outros jogadores viram a matéria, e ficaram orgulhosos de serem conhecidos no Brasil.