Ilustrações: Marcelo Armesto dos Santos, sobre fotos de Matheus Muratori

Futebol de rua, uma brincadeira (quase) esquecida

Um recorrido pelas peladas de ontem e hoje nas ruas de BH

Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo
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8 min readJun 8, 2017

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POR MATHEUS MURATORI

Edição: Igor Costoli e Maurício Brum

Aos sete anos de idade, comecei a jogar no time do nosso bairro, com chuteiras, meiões e camisa de time de futebol (…) Desde cedo gostava de jogar bola e de brincar com os meninos maiores, talvez pelo desejo de crescer rapidamente, de conhecer logo o mundo, de me antecipar ao tempo”.

Jogo desde os 5 anos, acho, mas na época eu só podia descer com minha mãe. Ela não gosta muito porque já acha perigoso aqui dentro, fora ela acha que é mais perigoso ainda”.

Sessenta e três anos separam as falas de Eduardo e Jonathan. Aos 70 anos, o primeiro se lembra bem da infância que passou na quadra e nas ruas do conjunto IAPI. O segundo só agora, aos 11 anos, recebeu autorização para ir jogar bola sozinho, desde que não saia do perímetro do mesmo conjunto.

A diferença nas experiências de um e outro reflete as mais de seis décadas de crescimento urbano — de Belo Horizonte, mas também por todo o país. Aquilo que antes era um símbolo brasileiro foi gradativamente desaparecendo e se tornando artigo raro na paisagem urbana.

Afinal, onde estão os jovens e o que aconteceu com o futebol jogado na rua?

Do muro para dentro

Marcos tem 31 anos e trabalha como segurança do bairro Belvedere, região nobre de Belo Horizonte. Não dá muito papo, e fala pouco quando responde. Talvez seja o piloto automático: a maior parte de sua comunicação no trabalho é um monossilábico “oi” com os moradores, sempre que alguém entra ou sai de carro.

No bairro não faltam apenas crianças nas ruas. O paradeiro também é de jovens e adultos, e o vazio nas ruas que chega a impressionar em certos momentos. As exceções são algumas pessoas que transitam a trabalho, como o próprio Marcos.

“As crianças daqui não brincam na rua. Elas talvez nem saibam o que é isso, nunca vi acontecer”, diz enquanto faz sua ronda. “Eles têm tudo em casa, no próprio apartamento e dos muros para dentro do prédio. Não há uma necessidade de ir para a rua e brincar”.

Quando enfim começou a se soltar, Marcos descreveu sua infância: “a gente juntava pedaços de madeira da cama para fazer o ‘gol perfeito’, mas enquanto não conseguíamos uma boa quantidade a gente pegava era o chinelo mesmo. Ou até uma pedra, porque a gente nem ficava muito de chinelo”.

Professor de Educação Física da UFMG, e pesquisador na área da educação infantil, José Alfredo Debortoli se preocupa com um “isolamento da infância de fato”. Na sua visão, os pais passam cada vez menos com os filhos e preenchem seu tempo com elementos tecnológicos para apaziguar a criança e mantê-la dentro de casa.

“Com isso, a autonomia das crianças é, em partes, perdida. Ela fica sempre na dependência do responsável levá-la até a rua”.

As mudanças no horizonte

“Deve fazer um ano que não jogo bola na rua”, calcula Renato, “e acho que nunca mais vou jogar”. O jovem goleiro de 17 anos mora no bairro Santa Terezinha (região da Pampulha) e conta que ele e seus amigos jogavam na rua todos os dias (literalmente, frisou).

Mas a partir de algum momento ficou difícil reunir gente suficiente para as peladas. Culpa do “avanço tecnológico”? Renato descarta a opção. Tanto ele quanto seus amigos são assíduos jogadores de Counter Strike ou FIFA, mas todos sempre foram capazes de largar qualquer coisa para jogar bola.

Para ele, a culpa nesse caso é mesmo da idade. Hoje seus amigos preferem sair para festas ou descansar em casa que bater uma bolinha no fim da tarde. “Ninguém anima”.

Mas ele também percebe outros fatores mudando a dinâmica da brincadeira: “Tá muito perigoso jogar bola na rua”.

“Nem falo muito por mim ou meus amigos, porque somos mais velhos e a gente sabe se cuidar melhor. Falo pelos mais novos. Tipo, eu comecei a jogar com uns 11 anos e minha mãe era de boa com isso, mas hoje ela não deixaria”.

O exemplo que abre a matéria talvez seja exemplar das transformações pelas quais passou a cidade. Quando surgiu, nos anos 40, o IAPI não tinha a proposta dos condomínios atuais, de ser um espaço fechado, separado da cidade.

O lugar onde Eduardo cresceu e jogava bola na década de 50 era um conjunto de nove prédios construído próximo ao Centro, mas seu acesso e suas ruas eram espaço público. O lugar onde Jonathan cresce e joga bola hoje concentra, em seu entorno, aquilo que bem pode ser a maior população de moradores de rua e usuários de crack da capital mineira.

O professor José Alfredo reconhece essa mudança no campo segurança da capital, mas tem dúvidas quanto à forma como ela é percebida. “A rua, institucionalmente falando, começou a ser um local de negativizado: a rua como o lugar do vício, por exemplo. Logo, vamos colocar a pessoa numa instituição para tirar ela das ruas”.

Tirar a criança da rua também passou a ser um discurso, entende o professor: “Há esse discurso da violência que, embora ela seja material — ocorra de fato, não está apenas no discurso — ele também se dá de forma exacerbada. Não se sabe se a violência gera o discurso ou se o discurso que alimenta essa hiperproteção, onde se gera um sentimento de insegurança”, prossegue.

A resistência

No bairro Confisco, dois postes serviam para transformar o muro em gol para Daniel, de 12 anos. Seu amigo goleiro, que me ignorou solenemente, usava uma espécie de colchão como suporte, para fazer suas pontes perfeitas sem se preocupar.

Daniel disse jogar na rua simplesmente porque gosta, e que o goleiro era seu melhor amigo. Jogava de calça jeans, era rápido nas falas e seu interesse em se livrar de mim para voltar a jogar era sincero e honesto.

Duas ruas acima, ‘Del Piero’ esperava sua vez para voltar à pelada. O italiano não jogou a Copa de 2010, mas seu nome estampa a camisa número 7 daquela azzurra usada por Biel, de 14 anos. “Jogo bola todos os dias com os meninos. É só animar, a gente vai na casa, chama por WhatsApp, Facebook, e fica jogando até de noitão”, conta enquanto espera sua vez de voltar a jogar com a turma.

O menino se auto intitula um “viciado em futebol” e diz que não aguenta ficar em casa. Estuda de manhã, chega da escola, espera um tempo e umas 14h já está pronto para jogar.

Acha a rua perigosa? “Minha mãe não liga. Muitas vezes meus irmãos mais velhos jogam. Até hoje nunca pegou nada comigo. O máximo que aconteceu foi um vizinho que ficou bolado que chutamos a bola no portão dele, sem querer, algumas vezes. Ele apareceu com uma faca e com a mão na cintura, meio que se tivesse segurando uma arma”, conta despreocupado.

“Os meninos pararam de jogar, mas eu queria continuar porque sabia que não era nada”.

Espelho

Para Renato, aquele que cresce sem nunca ter jogado bola (ou brincado do que for) na rua “fica bobo” e não pega certas malícias da vida. Para o rapaz de 17 anos, coisas prosaicas como pegar a bola na casa onde caiu, lidar com gente estranha, com desconhecidos que pedem para jogar são experiências que fazem diferença na vida. “Se ficar enfurnado em casa, quando crescer não vai ter história nenhuma para contar para o seu filho”.

O jovem fala pensando em aprendizado para a vida, mas não é difícil pensar em outros usos dessa experiência. Ronaldinho Gaúcho conta que jogou muita bola na rua — e que treinava seus dribles contra o cachorro da família.

Coordenador e curador do Museu Brasileiro do Futebol, situado no estádio Mineirão, Thiago Costa acredita que uma prática ‘alternativa’ é essencial ao futebol brasileiro: “O futebol de rua precisa existir porque é dali que a gente se inspira para fazer nosso jogo”, diz. “O jogar pelada é o que mantém o futebol vivo”.

Para ele, que acredita na brincadeira de rua como formadora de memória afetiva, identidade e rivalidade, “é necessário ter uma alternativa para praticar o esporte e também fazer esse jogo de espelho, o jogo simbólico. Sem esse futebol periférico, alternativo, o futebol não vive. Perde-se o link da representatividade”.

Ele lembra que Belo Horizonte é uma cidade com uma opção a menos que outras. “Em cidades litorâneas, a rua é a praia”. Para ele, ‘jogar bola’ no espaço público é um ato de união “não exclusivo para determinada faixa etária ou classe social, algo importante para a sociedade brasileira em geral”.

Inspiração e futuro

Será mesmo que o problema é a falta de futebol de rua?

Lembrando do seu tempo no IAPI, Eduardo escreveu, muitos anos mais tarde, nas memórias que chamou de Tempos Vividos, Sonhados e Perdidos: “Dizia-se que nasciam craques em cada esquina no Brasil”. O tema era, inclusive, fruto de grandes debates no mundo inteiro nos anos 50 e 60. “Muitos diziam que tudo começava nos campos de pelada, de terra, onde os meninos, em vez de estarem em escolas públicas, em horário integral, descobriam a intimidade com a bola, sem regras e professores”.

Nos dias de hoje, apesar da preocupação da mãe sobre o entorno do IAPI, Jonathan conta que “todo dia estamos aqui brincando e vamos até de noite, quando começa a ficar escuro, a iluminação fica ruim e também os vizinhos reclamam da gente”.

O menino de 11 anos diz gostar muito de futebol, mas não de assistir. “Só se for jogo de time bom”, avisa. “Uma coisa que a gente faz muito é jogar bola em dia de semana e depois ver na TV o jogo da tarde, porque a gente quer fazer igual o Neymar, Cristiano Ronaldo, o Messi”.

Perguntado sobre jogadores antigos, Jonathan falou em Ronaldo e Zidane. Pela pouca idade, era mesmo improvável que citasse seu ex-vizinho, o Eduardo. O senhor septuagenário, e que aos 7 jogava contra os meninos de 10 anos, ficou mais conhecido pelo apelido que ganhou no time do conjunto habitacional.

Conhece um jogador chamado Tostão?

“Não”.

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