Javier Mascherano: Não foi possível desfrutar
Série do Puntero Izquierdo conta a história de personagens que um dia serão lembrados pelo que fizeram na Copa do Mundo de 2018; neste perfil, o líder da seleção argentina que acumulou frustrações e não tem explicação para tanto — só lhe restou sofrer
Antes mesmo de existir futebol profissional já havia a seleção argentina principal para Javier Mascherano. Foi em 16 de julho de 2003. Marcelo Bielsa surpreendeu ao convocar para o amistoso de inauguração do moderno Estádio Único de La Plata um volante de 19 anos que ainda figurava nas categorias de base do River Plate. Um volante promissor.
Preocupado em acrescentar jovens valores no início de seu segundo ciclo no comando da Albiceleste, Bielsa tratou de logo escalar o prodígio como titular. Franco Costanzo; Clemente Rodríguez, Daniel Cata Díaz, Gaby Milito e Fede Domínguez; Mascherano e Lucho González; D’Alessandro; César Delgado, Diego Milito e Federico Insúa foram os 11 que começaram aquele empate por 2 a 2 com o Uruguai.
Gabriel Milito (contra) e Chevantón fizeram os gols charrúas e Diego Milito marcou os dois tentos da Argentina. Para o Olé, o estreante da noite “entregou a bola do primeiro gol uruguaio, mas em linhas gerais se posicionou bem em campo”. Recebeu nota 6 do jornal.
Um gigante frustrado
Os números acumulados por Mascherano com a camisa de seu país a partir do duelo em La Plata são impressionantes. No total, foram 147 aparições com a seleção profissional, um recorde que só poderia ser superado a curto prazo por Lionel Messi, o terceiro atleta em números de jogos pela Argentina, com 129. Em segundo lugar está Javier Zanetti, com 142.
Bielsa, José Pekerman, Alfio Basile, Diego Armando Maradona, Alejandro Sabella, Tata Martino e Edgardo Bauza, todos os treinadores mantiveram o incontestável meio-campista em suas escalações. Capitão con o sin la cinta (com ou sem a faixa), como se costumam referir a ele seus conterrâneos, disputou 20 jogos em quatro diferentes Copas do Mundo. Todas com desfechos trágicos. A despedida — do Mundial e de los colores nacionais — aconteceu no último 30 de junho, um alucinante 4 a 3 diante da França, em Kazan, nas oitavas de final.
O derradeiro respiro de um time que insistiu em se agarrar a um torneio que nunca o quis, desde a claudicante eliminatória sul-americana. O respiro agônico de um atleta que se permitiu sonhar pela última vez com a glória máxima para sua pátria, um homem que trocou o Barcelona pela China para atingir seu objetivo maior. Mais uma vez, Mascherano e a Argentina fracassaram.
“Ainda que nos últimos anos a Argentina tenha tido atacantes de elite e tenha carecido de defensores de alto nível, Mascherano sofreu em grande parte com mudanças constantes de treinadores, que atentaram contra a consolidação de uma equipe e da identidade de jogo”,
A análise é de Nicolás Baier, editor e enviado do site argentino da ESPN à Rússia, mais especificamente sobre o período final de uma caminhada cruel. Uma caminhada que conheceu uma geração genial, um craque messiânico e terminou frustrada.
Mas não parecem haver explicações racionais para tamanha desfortuna.
El técnico adentro
Nas últimas temporadas, Mascherano já vinha anunciando sua despedida do Barcelona. Dizia que já não podia "ser útil à equipe e era preciso convencê-lo de que ele podia continuar”, revelou Josep Maria Bartomeu, presidente do clube onde o atleta argentino fez história. O último semestre de 2017 foi especialmente pouco ativo para o volante, raramente escalado, e em janeiro de 2018, aos 33 anos, finalmente deu adeus à Catalunha depois de sete temporadas e meia com a camisa blaugrana. Como muitos de seu tempo, foi ganhar milhões na China, no Hebei Fortune.
E também foi ganhar minutos, capital imprescindível para quem ainda enfrentaria a última grande tarefa de sua carreira, vencer a Copa do Mundo de 2018 com a Argentina. Mascherano jogou todas as dez partidas disputadas pelo Hebei na Super Liga chinesa como volante, sua posição de origem, não como zagueiro, papel que foi obrigado a assumir durante a permanência no Barça.
Durante o Mundial da Rússia, porém, o capitão seria mais lembrado pela importância como técnico dentro de campo do que por seu futebol. Impossível não comparar o homem que, titubeante, caminhou com o braço direito levantado, enquanto Rakitic empurrava a bola para a rede e decretava o 3 a 0 da Croácia sobre a Argentina, em Nizhny Novgorod, no segundo compromisso argentino na Copa, com o marcador implacável que quatro anos antes rasgou uma parte íntima do corpo para dar um carrinho e impedir o gol de Robben, nos segundos finais das semis do Mundial do Brasil, contra a Holanda.
As mudanças do contestado treinador Jorge Sampaoli depois do empate por 1 a 1 com a Islândia, na estreia, claramente não surtiram efeito, e para o duelo decisivo com a Nigéria a Argentina foi a campo no tradicional 4–4–2. O time teve Enzo Pérez, Mascherano, Banega e Di María no meio-campo, além de Higuain no ataque na vaga de Aguero, ao lado de Messi, o que suscitou os boatos de que os veteranos da equipe, liderados pelo capitão, haviam tomado o controle da embarcação. As imagens do volante conversando sozinho com Sampaoli no gramado durante os treinamentos na Rússia só reforçavam a tese de que o DT oficial estava perdido e de que recorria aos atletas veteranos para salvar a nau.
Ao longo do jogo com a Nigéria, as câmeras tratavam de enfocar Sampaoli e depois os jogadores seguidamente ao golaço de Messi, aos 14 minutos de partida em São Petesburgo. O técnico de um lado, comemorando sozinho, os atletas do outro. Mascherano quase pôs tudo a perder ao cometer um pênalti avaliado como inadmissível para algum de sua classe pela imprensa argentina, um nítido e prolongado agarrão no camisa 8 Etebo após escanteio. O milagroso gol de Rojo aos 41 do segundo tempo salvou — por ora — o “trabalho” do técnico de adentro, que terminou o confronto, de forma mística, com sangue escorrendo pelo rosto.
“Tem muito de mito em tudo isso”, contemporizava o defensor sobre a suposta submissão de Sampaoli. “Os melhores treinadores do mundo também pedem a opinião dos jogadores, porque são os jogadores que terminam tomando as decisões dentro de campo. Não é que o treinador vai acatar, ele simplesmente quer saber como você se sente em campo. Não se trata de impor, é simplesmente chegar a um acordo coletivo sobre aonde se sente melhor o grupo.”
Ouros e tombos
Dezoito dias depois de estrear pela seleção, Mascherano debutou entre os profissionais do River Plate. Vitória por 2 a 1 sobre o Nueva Chicago pelo Torneio Clausura de 2003/04, que seria conquistado pelos Millionarios. O único título do defensor em Núñez, mas o suficiente para torná-lo lembrança eterna no Monumental como El Jefecito, o jovem cuja personalidade, talento e liderança suplantava qualquer necessidade de experiência.
Durante os dois anos defendendo time que o revelou, o homem de San Lorenzo, cidade vizinha a Rosário, teve a primeira grande felicidade e também a primeira grande decepção com a Argentina. E nos dois casos já vestia a 5 como titular. Em agosto de 2004, sagrou-se campeão olímpico ao bater o Paraguai por 1 a 0 na decisão em Atenas -gol de Carlitos Tévez-, levando de forma inédita o ouro para Buenos Aires depois de duas pratas no futebol masculino; Atlanta 1996, diante da Nigéria, e Amsterdã 1928, contra o Uruguai.
Um mês antes, em Lima, ele começara a alimentar a ferida que teimosamente o castigaria até o fim da carreira com a seleção principal. A Argentina vencia o Brasil por 2 a 1 na decisão da Copa América até os 47 minutos e 36 segundos de uma etapa final com três minutos de acréscimos. Foi quando Adriano levantou de costas para o gol uma bola disputada na grande área, girou o tronco e de primeira chutou para estufar a rede de Pato Abbondanzieri. O duelo foi para os pênaltis, D’Alessandro e Heinze desperdiçaram suas cobranças e a taça ficou para o maior rival.
Já em 2005, Mascherano despediu-se do River em uma surpreendente transação que o levou ao Corinthians, nebulosos US$ 15 milhões desembolsados pelo grupo de investidores MSI e seu porta voz, o iraniano Kia Joorabchian, que já haviam gastado US$ 19 milhões por Carlitos Tévez. Jogou pouco no Parque São Jorge graças a uma fratura no pé esquerdo sofrida logo na chegada ao clube paulista, que o deixou afastado dos gramados por sete longos meses. Sagrou-se campeão brasileiro daquele ano, mas não deixou saudades na torcida corintiana.
A falta de sequência em campos brasileiros não impediu José Pékerman de cravar o volante entre seus preferidos na escalação argentina do Mundial de 2006, na Alemanha. “Se eu me lembro bem, no meio-campo nós tínhamos Maxi [Rodriguez], Chuchu [Cambiasso], eu, Román [Riquelme], Saviola e o Crespo, não?”, recordou Mascherano anos mais tarde ao jornal inglês The Guardian. “Era uma equipe bastante argentina, evocava o futebol argentino de antigamente.”
Os comandados de Pékerman, um verdadeiro esquadrão -ainda havia Sorin, Lucho Gonzalez, Aimar, Tévez e o debutante Messi-, venceram a Costa do Marfim por 2 a 1, golearam Sérvia e Montenegro por 6 a 0 e empataram com a Holanda em 0 a 0 até baterem o México por 2 a 1 na prorrogação das oitavas de final, com um golaço histórico de Maxi Rodriguez, e se classificarem para enfrentar os donos da casa.
No Estádio Olímpico de Berlim, a cabeça do zagueiro Roberto Ayala colocou os argentinos nas semifinais do Mundial até os 35 do segundo tempo, quando outra cabeçada, de Klose, recolocou os alemães no jogo. Nos pênaltis, Ayala e Cambiasso desperdiçaram e avançaram os alemães.
“No final, eu acho que todos nós saímos com a sensação de que poderíamos ter ido mais longe naquela Copa. Era um time que poderia ter brigado por mais. A Alemanha nos eliminou nos pênaltis em uma partida que, sem dúvida, nós merecemos ganhar”, foi a impressão de Mascherano em seu primeiro Mundial.
De Berlim, o Jefecito tinha as malas prontas para mais um inesperado destino antes de finalmente se firmar em um clube. O empresário Kia Joorabchian havia escolhido o West Ham como casa do defensor e de Tévez. A passagem por Londres foi ainda mais fugaz que aquela por São Paulo. Em fevereiro de 2007 ele se tornaria atleta do Liverpool.
No gigante inglês, mesmo sem levantar taças, foi reconhecido na Europa como um jogador de primeira classe. Título no período em que defendeu os Reds só veio quando saiu para atuar na Argentina olímpica, em Pequim 2008. O segundo ouro seguido teve direito a 3 a 0 sobre o Brasil nas semis e revanche contra a Nigéria, 12 anos depois de Atlanta, na decisão -1 a 0 e gol do título de Di María. Mas a sorte definitivamente não era a mesma com a seleção principal. Um ano antes, na Venezuela, a Albiceleste voltou a encontrar os rivais brasileiros em uma final de Copa América para ser derrotada em um impiedoso 3 a 0.
Na Copa de 2010, na África do Sul, os talentos da geração anterior se somaram a Pastore, Aguero, Di María e a um Messi já protagonista sob a tutela de Diego Maradona. “A Argentina é Mascherano e mais dez”, afirmava Dieguito, frase que seguiu repetindo como torcedor depois de abandonar a função de técnico.
Não começou mal o escrete de Maradona em solo africano. Três vitórias na primeira fase (1 a 0 sobre a Nigéria, 4 a 1 sobre a Coreia do Sul e 2 a 0 sobre a Grécia) e o mesmo caminho da Copa anterior no mata-mata. México nas oitavas (3 a 1 para os sul-americanos) e a Alemanha nas quartas. Desta vez, porém, o agora camisa 14 não teria o que contestar.
Os alemães golearam por 4 a 0.
Mascherano não desfruta
“Eu sofro com o futebol, não desfruto. Não sou daqueles que se divertem. Não, pelo contrário. Durante os 90 minutos, há certo sofrimento por causa da concentração, para não errar, para estar atento ao que faço e ao que meus companheiros fazem”, disse Mascherano à revista Panenka, em 2015. “Não encontro esse sentido que muitos dizem de entrar em campo e curtir. Eu não faço isso. Eu gosto de treinar, de aprender. Mas, durante os 90 minutos, eu não desfruto a partida.”
Em seus primeiros sete anos de carreira o argentino pode ter vivido desgostos. Dizer que ele sofreu enquanto venceu cinco campeonatos espanhóis, cinco Copas do Rei, duas Champions League e dois Mundiais de Clubes durante sete anos e meio de Barcelona, porém, seria absurdo. Mas ele poderia ter sido mais feliz. Ao desembarcar na Catalunha em 2010, o recém-contratado ouviu do técnico Pep Guardiola que a cabeça de área tinha dono, Sergio Busquets, e que ele podia jogar como zagueiro ou não jogar. Mascherano tomou sua decisão.
“A minha passagem no Barcelona foi de bastante contraste nesse sentido, porque foram os melhores anos da minha carreira. Pude desfrutar, me senti pleno como jogador… Mas não tive a chance de jogar na minha posição, então o copo está meio vazio”, desabafou em entrevista ao ex-companheiro Piqué para o Player’s Tribune, no período de sua despedida do Camp Nou.
“Sempre tentei ver o futebol como um jeito de pensar na minha sobrevivência.”
Fora do habitat natural em seu time, Mascherano foi à Copa de 2014, realizada no Brasil, como um volante “cansado de comer merda”, assim gritou ele mesmo aos companheiros na preleção do confronto das quartas de final contra a Bélgica. Desta vez passou a Argentina (Higuaín, 1 a 0) e passou também nas semis, pelos pênaltis, contra a Holanda, para ficar a uma partida do título mundial que desde 1986 não tomava o rumo de Buenos Aires.
Novamente a Alemanha, 90 minutos sem gol no Maracanã, e o arremate cruzado de Götze aos 8 do segundo tempo da prorrogação. Coube ao capitão reunir dignidade para enfrentar as câmeras e explicar a seu povo uma nova queda.
O destino ainda reservaria ao Jefecito outras duas derrotas em finais de Copa América, ambas para outro rival (mais histórico e político do que futebolístico): o Chile em 2015 e 2016. Mascherano já passava a questionar sua quase franciscana fé no campo. “Sou eu, vai ver sou seu…Tomara que no futuro a Argentina possa ganhar. Não encontro explicação. É uma tortura, sinceramente.”
De cabeça e braços erguidos
A última Copa de sua carreira. Por uma seleção agonizante. Messi já havia salvado a Argentina de Jorge Sampaoli do vexame de ficar fora do Mundial arrancando uma vitória de virada, na última rodada das eliminatórias, contra o Equador. Um 6 a 1 para a Espanha durante o período de preparação da seleção, em março, em Madri, minou ainda mais a confiança no DT.
Comandada ou não pelo técnico de adentro a Albiceleste conseguiu se arrastar até as oitavas de final na Rússia, mas no mata-mata, diante do fresco talento dos jovens franceses, não houve milagre. Ao final do jogo, em Kazan, os conterrâneos voltaram a encarar na televisão a imagem do capitão se manifestando com amargor ao final de um novo fracasso. “É hora de dizer adeus. Desejo a todos os rapazes que continuem, eles podem conquistar o que eu não pude.”
Para o jornalista Nicolás Baier, independente de sua sorte com o uniforme nacional, Mascherano sempre teve um sentimento de pertencimento com a Albiceleste, e a maioria dos argentinos reconhece a liderança e atitude que ele demonstrou na seleção. “Seguramente ele será lembrado como o ‘capitão sem a faixa’. Faltou o título com a equipe principal.” Não será uma surpresa se esse título finalmente chegar com o volante ocupando oficialmente o papel de treinador, desde afuera.
Dias depois da eliminação, pelas redes sociais, o mundo leu o suspiro final de Javier Mascherano. Já não havia traumas, Brasis, Alemanhas, Chiles, desfrutar ou não desfrutar. Somente uma imagem, um pedaço de calção preto, a camisa listrada em azul e branco, braços levantados, a cabeça pelada, o nome MASCHERANO sobre o número 14 e duas frases singelas.
“Eternamente Gracias a todos y por todo !!!!
Fui muy Feliz.”