José Leandro Andrade: A Maravilha Negra
Série Copa Puntero traz 11 perfis de personagens que passaram pela história dos Mundiais; no quinto episódio, o uruguaio que encantou os campos, a Europa e até o jazz de Louis Armstrong
Por Emanuel Neves
José Leandro Andrade vai morrer a qualquer momento. É outubro de 1957, e o quarto do asilo Piñero del Campo converte-se num mundo espectral, feito de sombras e fantasmas. Por trás do monóculo que lhe cobre o olho cego, o negro Andrade quase não pode divisar os detalhes do lugar. Ele arfa com dificuldade as últimas lufadas que os foles tuberculosos de seu pulmão conseguem dar conta. É Montevidéu, mas talvez seja Paris, talvez seja um covil de luxúria e champagne numa esquina iluminada de Montmartre ou de qualquer bairro boêmio no sopé da Eiffel. Difícil discernir, a sífilis o faz tresvariar. A sífilis e o álcool, em conluio, dizimam a réstia da sanidade mental de Andrade. Eles e o tic-tac do relógio esgotando o tempo em seus ouvidos. Há um sincopado misturado a esse ritmo marcial. É o coração de Andrade fraquejando, mas bem poderiam ser as murgas e tamborins de uma comparsa furtiva insinuando um carnaval de candombe e suor pelas ruas uruguaias. A sua alma parece querer bailar em meio à folia, ensaia flutuar por las calles, sorriso aberto uma vez mais. Já os pés lhe doem. Os pés de ouro que o alçaram à glória doem, doem os pés que o conduziram pelo incessante tango à beira do abismo que foi a sua existência, doem os pés que se perderam na ladeira do esquecimento. José Leandro Andrade vai morrer a qualquer momento, mas outros três Andrades permanecerão para sempre.
O primeiro deles é o Andrade real, precursor e ente seminal da linhagem de craques negros da história do futebol. Esse Andrade nasceu a 22 de novembro de 1901, en el barrio de La Cachimba, na cidade uruguaia de Salto, a cerca de 500 km da capital. A propensão lendária que marca sua vida pode ser considerada um traço genético. Seu pai era um ex-escravo expatriado do Brasil, a quem imputavam fantasiosos poderes sobrenaturais. Os sortilégios aprendidos na África ou em alguma senzala brasileira seriam a explicação para o jornaleiro José Ignácio ter conseguido fazer um filho saudável mesmo somando 98 anos — contados em certidão. A mãe era uma moça de La Cachimba, não se sabe a idade.
Na infância, Andrade mudou-se para Montevidéu. Foi morar na casa de uma tia no bairro de Palermo, região pobre, onde os descendentes de escravos eram maioria. Lá, ele conheceu a noite e o carnaval das comparsas — agrupamentos festivos, semelhantes aos corsos e blocos brasileiros. Chegou a liderar a bateria de uma delas, a Libertadores de África. Além de músico, Andrade se virou como engraxate e jornaleiro. Também tornou-se cativo dos lupanares, foi bailarino exímio, amante contumaz e, dizem as velhas línguas alcoviteiras, proprietário de meretrizes bem requisitadas nas tolerâncias da capital uruguaia.
A desenvoltura do futebol de Andrade foi maturada no ritmo do candombe, nas pistas dos cabarés e nas ancas lascivas das perdidas de Montevidéu. Esses elementos se entrelaçaram para formar o DNA de sua técnica exuberante. Algumas vozes o comparam a Zidane. Outras, a Pelé. O jornalista uruguaio Jorge Chagas o assemelha a Exu, o deus-moleque da controvérsia. Mas há boa dose de fábula em tudo isso. “A única semelhança com Pelé é a cor da pele. São jogadores muito diferentes. Andrade jogava como lateral-direito. Poderíamos compará-lo a Marcelo ou a Daniel Alves em seu melhor momento”, esclarece o pesquisador Aldo Mazzucchelli, professor de literatura na Universidad de la República (URU) e especialista em história do futebol uruguaio.
Ainda assim, Andrade impressionava por diferentes motivos. Um deles era o fato de combinar elegância e destreza a um porte físico avantajado — tinha mais de 1m80. “Era muito elástico e flexível. Suas articulações pareciam de borracha”, diz Mazzucchelli. Ele chegou a inventar uma jogada, batizada de tijera ou escoba, algo como a nossa “tesoura”, com a qual desarmava os adversários e saía limpo para o ataque. O seu debut nos gramados ocorreu no clube Bela Vista, por volta de 1920. A vaga na seleção veio em 1923, pela mão do zagueiro José Nasazzi — El Capitán de Los Capitanes. Líder da Celeste, “El Mariscal” Nasazzi era colega de Andrade no Bela Vista e o indicou para o time que assombraria o mundo nos Jogos Olímpicos de 1924, na França. Ali começava a nascer um outro Andrade, o mítico.
La Merveille Noire
Em 1923, o Uruguai sediou a sétima edição do Campeonato Sul-Americano, embrião da Copa América. O torneio, na prática, foi um quadrangular com Argentina, Brasil e Paraguai. A Celeste buscava o quarto título. Atilio Narancio, presidente da Associação Uruguaia de Futebol, prometeu levar os jogadores às Olimpíadas de Paris, no ano seguinte, se vencessem a competição. A final foi 2 a 0 sobre a Argentina, e Narancio se viu obrigado a hipotecar a própria casa para cumprir o compromisso. Entretanto, o dinheiro só cobriu a viagem de terceira classe até a Espanha. A solução para arcar com as demais despesas foi organizar amistosos caça-níqueis pelo caminho. No percurso até a França, os charruas fizeram nove jogos. Venceram todos.
Os uruguaios chegaram ao país em meio aos loucos anos 20. Se essa foi a década dos delírios, Paris se constituía na mais bela das quimeras. A guerra havia aparentemente acabado, e a ânsia de vida fluía por todos os poros da capital francesa. A Europa e o mundo queriam sorver a efervescência das artes vanguardistas, das transgressões e dos prazeres boêmios da Cidade Luz. Os donos da casa também gostavam disso, por óbvio. Mas a eles interessava uma demanda de entretenimento específica. Qual? Gente negra. Sim, a última moda dos franceses daquela época era curtir o universo dos negros.
Durante a década de 1920, a França viu crescer um movimento de curiosidade e adoração à cultura de origem afro. Os maiores entusiastas eram os artistas de vanguarda, que pautavam os rumos do pensamento da época. A Negrophilia, como ficou conhecido o fenômeno, incluía a proliferação dos clubes de Jazz, os passos de charleston, as exposições de peças africanas e as apresentações de dançarinos negros em teatros e cabarés.
Os poetas, os pensadores, os pintores, enfim, toda a nata da intelligentsia parisiense caiu de quatro quando a Celeste entrou em campo para enfrentar a Iugoslávia na estreia dos Jogos Olímpicos. Eles miravam o lado direito de defesa e não viam um jogador, tampouco um homem. A única informação registrada pelo cérebro dos franceses é que ali havia um negro, uma figura de ébano e marfim impondo-se em seu metro e oitenta de força e altivez. Isso era algo praticamente inédito no futebol da Europa. E o frisson espalhou-se pelas tribunas e redações.
Andrade e sua classe, Andrade e seus movimentos plásticos, Andrade e a gomalina de seu cabelo eram uma obra de arte viva a rugir, a criar arabescos tribais e a espocar fogos de artifício com a bola em frente aos olhos europeus, sequiosos e hipnotizados pelo exotismo de sua pele escura. La Merveille Noire (A Maravilha Negra), assim José Leandro foi gritado nas manchetes e artigos, como se houvessem descoberto um espécime raro e encantador saído da entranhas subequatoriais, um tarzan de bronze, chuteiras e ferormônio.
Claro, a qualidade do time uruguaio, por si só, também era espantosa. A Celeste trucidou todos os adversários, um a um, até levantar o caneco (ou a medalha). E a imprensa especializada fez jus a isso. “Os uruguaios são pessoas flexíveis, discípulos do espírito de finesse. Eles desenvolveram com primor, e talvez até mesmo em excesso, a arte de fingir, de se esquivar, de mudar de pé, de girar de um lado e de outro com o corpo, de mudar de direção na corrida”, exalta um comentarista francês no jornal Le Miroir des Sports. A italiana Gazzetta dello Sport usou termos como “fraseado musical” e “perfeição estilística” para classificar a magia do jogo charrua. O futebol-espetáculo nascia da cor do céu.
Inclusive, Andrade não era tido como o craque máximo da equipe. “Ele é destacado às vezes, especialmente por ser o único negro do grupo, mas há outros nomes que chamam mais atenção do ponto de vista futebolístico”, garante Mazzuchelli, citando figuras como Pedro Cea, Ángel Romano e, acima de todos, Héctor Scarone. Considerado o melhor jogador do mundo à época, Scarone foi apelidado de La Borelli, em referência a Lyda Borelli, uma diva italiana do cinema mudo. Mas a fama dos demais jogadores uruguaios parece ter se limitado à página de esportes. O resto de Paris só tinha olhos, línguas e desejos por Andrade.
A libertária Sidonie Colette, chamada de “a grande dama da literatura francesa”, visitou a concentração uruguaia junto a outros escritores e parecia alheia ao ambiente até José Leandro começar a bailar. Ela teceu um perfil sobre os sul-americanos no jornal Le Matin. “Os uruguaios são uma combinação estranha de civilização e barbárie. Dançando o tango são maravilhosos, sublimes, melhores que os melhores gigolôs. Mas também dançam danças canibais africanas que fazem você tremer”, definiu a romancista. Colette era bissexual, vivera como lésbica uma década inteira, seduzira um enteado de 16 anos, tivera três maridos e uma lista telefônica de amantes — homens e mulheres. Em 1907, provocara escândalo ao simular sexo com uma atriz no palco de um teatro parisiense. Botar essa cidadã para tremer os joelhos não deveria ser tarefa fácil. A lenda diz que ela se entregou aos predicados de Andrade. Ninguém prova nem rechaça. Seguramente, não teria sido a única.
Naquelas semanas de 1924, José Leandro transformou-se numa espécie de fetiche da boêmia e da sociedade francesa. O corpo negro de Andrade era um totem adorado no breu do Moulin Rouge, nas margens do Sena, nas esquinas, banheiras e sonhos de Paris. Metade da Cidade Luz queria ver a Merveille Noire brilhar sobre si. E muita gente conseguiu. Os colegas de time também se esbaldaram, é bem verdade. Quando a Olimpíada terminou, a seleção francesa quis marcar um amistoso com os uruguaios. A partida foi cancelada porque a organização não achou os jogadores. Estavam perdidos na esbórnia parisiense.
A certa altura, o sumiço de Andrade chegou a preocupar. Ele poderia ter sido sequestrado. Uma mulher rica, de nome Margueritte Gestaullied, imortalizada entre os uruguaios como La Condesa Rubia (A Condessa Loira), o teria confinado num bangalô para aprender a fundo os truques da língua espanhola. Porém, Ángel Romano guardava um endereço no bolso. José Leandro havia dado a ele, em segredo. Romano saiu à sua cata e o encontrou num apartamento de luxo, vestindo roupão de seda e empunhando uma taça de bourbon, cercado por beldades perfumadas, cobertas por trajes sumários. Andrade instalara um sultanato privativo na zona nobre de Paris e alcançara o topo do mundo. Dali em diante, a queda era inevitável.
O traidor
Enquanto Andrade derrubava uma bastilha por noite em Paris, a comunidade negra de Montevidéu confabulava. Um grupo de intelectuais ligados ao movimento de defesa racial teve a ideia de promover um evento estrondoso para receber o jogador. A Copa do Mundo ainda não existia nessa época. Ao vencerem a Olimpíada, os uruguaios haviam logrado o status de melhores do planeta no futebol. E aquele escrete contava com um negro que encantara a Europa. Uma estrela egressa do carnaval, dos bairros de escravos. Andrade era a afirmação do valor do povo afrouruguaio. Andrade seria, dali em diante, o baluarte de sua gente.
O convescote foi organizado. Duas comparsas rivais baixaram a guarda e se uniram para festejar a Maravilha Negra. Houve festa, dança, comes e bebes. Com o passar das horas, porém, o clima de alegria verteu-se em apreensão. Ora, Andrade viria, é certo. Era a sua consagração, era a consagração dos negros uruguaios. José Leandro chegaria dali a pouco ou logo além. Não faria tamanha desfeita. Mas a noite acabou, e o craque celeste não apareceu. Quando o último tamborim silenciou, nasceu o terceiro Andrade, preto que esnobou o seu povo.
Na virada do milênio, passados quase 80 anos do fato, Jorge Chagas decidiu escrever um livro sobre a história do jogador. A ideia não foi bem recebida por parte da comunidade negra. “Houve ressentimento quando o romance saiu. Ainda havia pessoas com dor, principalmente porque seus pais e avós, que tinham comparecido ao jantar fracassado, haviam transmitido a história oralmente”, conta Chagas. Lançado em 2003, Gloria y Tormento — A história de José Leandro Andrade mistura realidade e ficção para narrar a jornada do craque.
De fato, Andrade voltou muito modificado de Paris. Trajava luvas amarelas, um casaco caro, botas de couro, gravata de seda e uma cartola. Era um dândi. A nova indumentária e a postura vaidosa reforçaram a sua imagem arrogante. Dentro de campo, ele trocou o Bela Vista pelo Nacional. Os clubes uruguaios foram beneficiados pelo sucesso da Celeste e passaram a ser convidados para excursões. O Nacional, por exemplo, circulou pela Europa durante quase seis meses em 1925.
O mito assegura que Andrade teria entabulado um affair com a dançarina Josephine Baker nessa turnê. Tratava-se da “mulher mais sensacional que alguém já viu”, segundo o escritor Ernest Hemingway. A Pérola Negra, como a diva norte-americana era conhecida em Paris, estrelava um teatro de revista chamado La Revue Negre. No futuro, ela se tornaria um dos principais nomes do ativismo em prol dos direitos civis, peleando ao lado de Martin Luther King. Outra versão resume o romance a alguns compassos de tango compartilhados pelos tablados da noite francesa. De concreto mesmo é que, durante a estada do Nacional em Bruxelas, Andrade foi diagnosticado com sífilis. A descida pelo abismo começara.
Donos do mundo
A notícia da doença abalou o jogador. Conchavada com os excessos, a enfermidade iniciou a labuta de minar a forma física de Andrade. Ele ainda atuou nos Jogos de 1928, em Amsterdã, quando a Celeste repetiu a dose e sagrou-se bicampeã — batendo a Argentina na final. José Leandro quase não foi a esse campeonato. Havia pedido dinheiro demais para defender as cores do país, dizem. Mudou de ideia na última hora ao perceber que o time iria sem ele e embarcou para a Holanda. Na semifinal, um 3 a 2 sobre a Itália, o lateral chocou-se contra a trave e lesionou um dos olhos. O infortúnio e a sífilis concorreram para saber qual tiraria a visão de Andrade primeiro. Ambos venceram. Antes, porém, o craque ajudou a Celeste a alcançar a glória na Copa de 1930.
Os feitos de 1924 e 1928 haviam consolidado o Uruguai como a meca do futebol. Quando a FIFA decidiu desvincular-se das Olimpíadas e criar um torneio próprio, o país estava prestes a completar 100 anos de sua primeira constituição republicana. Não haveria sede melhor, portanto. Assim, o Centenário foi erguido em Montevidéu para receber as 13 seleções que inauguraram o maior evento esportivo da humanidade.
A base do time comandado por Nasazzi e Scarone mantinha-se havia seis anos, com o mesmo estilo e fluidez. A não ser por Andrade. Ele beirava os 29 anos e não era nem sombra do Dionísio mulato que fizera a Europa ovular. Apesar disso, continuava recortando adversários do lado direito do campo. A Celeste venceu três jogos até chegar à decisão contra a Argentina, uma repetição do que ocorrera nos Jogos de 28. Essa partida ganhou requintes de tensão poucas vezes registrados.
Os argentinos queriam ir à forra pelo fracasso de Amsterdã e ansiavam por tosar o penacho charrua dentro da nova casa. Outro revés ante os vizinhos seria inaceitável. Aos orientais, por sua vez, só restava a obrigação de ratificar a supremacia, empunhar o cetro do mundo e reinar desde Parque Batlle, onde fica a cancha histórica. Às vésperas da final, Montevidéu transformou-se na antessala do armagedom.
O belga John Langenus, árbitro da partida, pressentiu o estouro da batalha cisplatina e condicionou o seu trabalho à assinatura de um seguro de vida para toda a sua família, além de um lugar no primeiro vapor que zarpasse do Rio da Prata após o apito final. A pressão do embate também chegou ao vestiário uruguaio. Vários jogadores quase sucumbiram à ansiedade. Uma crise de pânico roubou os ovos do hábil centroavante Peregrino Anselmo, que pediu para não fardar. Em seu lugar, de comum acordo, entrou “El Manco” Castro — atacante brigador que havia perdido uma mão na adolescência. Diante de 70 mil espectadores, a Celeste levou 2 a 1 no primeiro tempo, mas enfileirou três gols na etapa complementar — o último marcado por El Manco — e sagrou-se campeã. O batuque das comparsas coloriu a atmosfera da capital uruguaia, Langenus voltou para abraçar suas crianças e Andrade nunca mais vestiu o manto oriental.
O fim
A FIFA elegeu José Leandro como o 3º melhor jogador da Copa de 30. Na opinião de Mazzucchelli, um total disparate: “Ele jogou muito mal, especialmente na final. A imprensa foi unânime em classificá-lo como o pior nome do Uruguai”. O Andrade mítico começava a se despregar da realidade. Para se sustentar no firmamento, ele teve de extirpar todo o sumo do Andrade verdadeiro, deixando-o só com os ossos e o bagaço para seguir adiante. O lateral ainda jogou no Peñarol, erguendo o primeiro título do profissionalismo uruguaio, em 32, e passou por clubes do Chile e da Argentina. Mas já era um decalque de si mesmo.
Em 1935, o Andrade real praticamente não conseguia se sustentar. Alguns atletas organizaram um jogo beneficente para auxiliá-lo. A partida em questão reuniria o ataque bicampeão olímpico. Os jogadores da seleção não apareceram, e o evento foi um fracasso. “Esquecendo-se de que nada é eterno, [Andrade] malbaratou suas condições excepcionais em satisfações momentâneas e hoje paga pelo desprezo com que sempre tratou quem queria adverti-lo ou aconselhá-lo”, cravou a matéria inclemente do jornal El País, publicada no dia seguinte.
Após pendurar as chuteiras, Andrade tornou-se bailarino profissional. Voltou a Paris e reassumiu seu posto de monarca da boêmia, participando de afamados teatros de revista e regendo a aeróbica das cocotes ao milonguear seminu sobre o Arco do Triunfo. Os registros que a lente cor-de-rosa da mitologia costuma oferecer sobre a vida de Andrade longe dos gramados vão mais ou menos nessa linha. Mas a realidade do mundo-cão foi bem outra.
Esquecido, José Leandro trabalhou como ascensorista de um prédio no centro de Montevidéu e se aposentou na função de servente de limpeza numa estatal uruguaia. É certo que foi de mal a pior sem jamais pedir ou aceitar ajuda. Ele se casou e teve uma filha. Muitos juram que sua mulher era La Condesa Rubia. A ricaça francesa teria chacoalhado suas jóias e sua melena dourada pelo Atlântico afora para se atirar aos pés da Maravilha Negra. Também não é verdade. “A sua esposa era argentina. Tinha o sobrenome Francolino e cabelos loiros”, explica Chagas. Quem veio mesmo atrás de José Leandro foi o jornalista alemão Fritz Hack.
Em 1956, insuflado pelo Andrade mítico, Hack aportou em Montevidéu no afã de entrevistá-lo. O germânico revirou a cidade atrás de alguma informação sobre o craque. Ele especulou pelas redações, perambulou em cartórios e xeretou nos cafés em que bolsos y carboneros requentam a rivalidade diária, onde talvez um preto velho possa ter escarrado no chão e persignado a testa ao ouvir o nefasto nome de Andrade. Ao cabo de seis dias de buscas, Hack encontrou alguém. Não era o José Leandro real nem o negro desertor, tampouco Das Schwarze Wunder. Hack achou esse Andrade que iria morrer a qualquer momento, uma espécie de mendigo que agonizava num porão lúgubre, um cadinho de doenças e devaneios e cegueira e decrepitude, bêbado, louco e incapaz de responder suas perguntas. La Décadence Noire. A hora derradeira desse Andrade chegou a 5 de outubro de 1957. Morreu internado num sanatório, amparado pela irmã, tendo por único bem uma caixa de sapatos forrada de troféus e medalhas — ou de cartas de senhoras parisienses, como descobriu José Chagas.
Já o Andrade real segue vivo na memória dos descendentes e ainda não compreendido de todo, estimulando o trabalho arqueológico de pessoas como Chagas e Mazzuchelli. Phd pela universidade de Stanford, o professor Aldo está terminando um livro sobre a Celeste dos anos 1920–30, no qual José Leandro será presença certa. A obra de Chagas está na terceira edição e deve receber uma tradução para o português em breve. Aliás, ao ser lançado, Glória y Tormento começou a matar o mito do Andrade traidor. O livro demonstra que o cano na festa dos negros pode não ter passado de um terrível engano.
Em 1928, José Leandro expôs sua versão do fato em uma carta enviada à revista La Vanguardia, dedicada à coletividade negra. O documento ficou perdido durante décadas e só foi encontrado recentemente. “A carta não apenas desmente qualquer ato de desprezo de Andrade com sua própria gente, como menciona, com nomes e sobrenomes, as pessoas a quem ele havia avisado com antecipação sobre sua impossibilidade de comparecer ao evento”, esclarece Chagas. O motivo da ausência não era exatamente nobre, embora guarde coerência em se tratando de Andrade. Ele tinha um encontro clandestino com uma mulher casada da alta sociedade na mesma hora da recepção.
Mesmo assim, a descoberta serviu para atenuar a cizânia quase secular entre o ídolo e a comunidade negra de Montevidéu. “Um dos meus maiores orgulhos é o fato de a novela ter ajudado a reconciliar a memória de Andrade com sua gente”, completa o autor. O livro foi musicalizado e tornou-se tema-enredo da comparsa Yambo Kenia, vencedora do carnaval uruguaio de 2007.
Um sobrinho de José Leandro, Victor Rodrigues Andrade, integrou a Celeste que fez sangrar 50 milhões de almas brasileiras no fatídico Maracanazo de 1950. Em junho, a seleção do maestro Oscar Tabárez disputará a Copa da Rússia com um ataque formado por Edinson Cavani e Luis Suárez, ambos nascidos em Salto, mesmo chão de onde Andrade brotou.
O imortal
Há uma placa para José Leandro no Centenário. Ele integra o Hall da Fama da FIFA, e a IFFHS o coloca na 29º posição entre os maiores jogadores de todos os tempos. Os feitos do Andrade mítico, embora notáveis, parecem ter sido inflacionados por conta de seu carisma e, acima de tudo, pela cor de sua pele. Aqui, nota-se o traço de um preconceito velado. É o que Mazzuchelli chama de racismo às avessas. “Andrade e seu fascínio se encaixam no racismo condescendente que marcava a adoração francesa ao estereótipo negro nos anos 20”, explica o professor. “Ele foi um subproduto do marketing europeu para exportar e confirmar seus conceitos raciais sobre a América do Sul”.
O paladar eurocêntrico daquela época degustou José Leandro como o bom selvagem pintado na crônica de Collete, talvez o melhor deles. A posteridade estendeu esse retrogosto até os dias de hoje. Andrade, por sua vez, se deixou sorver e tirou o melhor partido disso. Porém, não se pode reduzir o valor do personagem à excentricidade de sua origem ou ao magnetismo de sua tez escura. E há uma passagem que ilustra isso.
Em 1927, durante uma turnê do Nacional por Chicago (EUA), o jazzista Louis Armstrong conheceu a Maravilha Negra. Certas versões afirmam que o músico norte-americano o viu jogando e se impressionou com sua técnica em campo. Em outras, Armstrong é fisgado pela exuberância do bailado de Andrade. Ele dançava de um jeito diferente mesmo, era versado em habanera — um ritmo africano ancestral, avô do tango e do maxixe. Desconsertado pelo encanto de José Leandro, por seu ópio particular, por essa coisa qualquer que o uruguaio tinha e inebriava a todos em seu entorno, Armstrong afirmou que o craque seria a inspiração para o seu jeito de fazer música dali em diante.
A história é apresentada como fato acabado em muitas fontes de pesquisa sobre o jogador e poderia representar a lenda mais bela da cosmologia de Andrade. Isso se não fosse uma meia verdade. “Armstrong não fez tal afirmação. Inventei-a para o meu livro”, revela Chagas. De qualquer forma, o jazzista esteve em Montevidéu em 1957 e quis contatar o craque, falecido meses antes. Algo de José Leandro restara gravado em Armstrong, passados 30 anos daquele encontro em Chicago.
As alterações mais marcantes na carreira do trompetista datam da época em que ele conheceu Andrade. Foi quando Louis Armstrong gravou seu primeiros discos próprios. Os improvisos e quebras rítmicas consolidados nessa fase são plásticos e sensuais. Surgem incisivos como uma tijera em algumas notas e se diluem, lânguidos quais milongas a meia-luz, no acorde seguinte. O estilo transformou o instrumentista negro de New Orleans, nascido no mesmo ano que José Leandro, num dos maiores solistas do jazz e influenciou toda a música criada no mundo ocidental ao longo do Século XX. “O grande Armstrong se mostrou muito consternado ao saber da morte de Andrade”, assegura José Chagas.
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Os registros dos jornais da época são uma cortesia do professor Aldo Mazzucchelli.
O site da Revista Pontis disponibiliza uma tradução das primeiras páginas de “Glória y Tormento”.