Libertadores 60 anos #9

A Batalha de La Plata e os dois lados de uma lenda. Por razões diversas, a incrível “remontada” do Estudiantes contra o Grêmio se tornou um episódio reivindicado na história dos dois clubes envolvidos

Puntero Izquierdo
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7 min readDec 11, 2019

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por Maurício Brum

Existe o fato e existem as interpretações que damos a ele. É uma platitude que, de uma forma ou de outra, repete-se entre jornalistas, historiadores, talvez filósofos, e em muitos aspectos da vida. Até no recreio da escola: toda história controversa tem pelo menos dois lados, toda briga precisa de no mínimo um par de versões, de visões de mundo, para ter início.

No caso da Batalha de La Plata, a noite em que o Estudiantes recebeu o Grêmio e buscou uma desvantagem de dois gols com apenas sete jogadores em campo, os lados são profundamente antagônicos — mas, de forma curiosa, reivindicam o episódio com certo orgulho: tanto pincharratas quanto gremistas passaram a contar sobre aquela noite como uma lenda a mais na caminhada de suas equipes, um episódio a adornar suas histórias gloriosas.

O fato, puro e simples, é que, na fria noite de 8 de julho de 1983, o Grêmio vencia o Estudiantes com certa folga, mas o temível Jorge Luis Hirschi — onde o time da casa só havia perdido uma vez na história pela Libertadores — rugiu, atemorizou um tricolor ainda pouco versado na lida copeira, e os argentinos buscaram o 3x3 após estar levando 3x1. Isso quando já haviam tido quatro homens expulsos.

A interpretação desse fato, por outro lado, varia muito.

O Estudiantes recorda aquela noite como o momento em que a mítica cruza de trampa e raça que o havia feito multicampeão nos anos 60 e 70 reapareceu para a América do Sul, após mais de uma década em silêncio. E ignora, convenientemente, que no jogo seguinte o time não conseguiu uma vitória simples contra um adversário já eliminado, perdendo a chance de jogar a final da Copa.

O Grêmio não chega a glorificar o empate que poderia ser vitória, mas tampouco o trata como a grande vergonha que a marcha do placar sugeriria: em sua mitologia particular, tornou-se um teste necessário para o título que conquistaria depois, um “entregamos para sair vivos”, e prefere minimizar o fato de que o empate poderia comprometer sua permanência no torneio se não fosse a ajuda fundamental de um terceiro ator, o América de Cali.

* * *

Aquela era a primeira Libertadores disputada pelo Estudiantes em sete anos. Após enfileirar três títulos entre 1968 e 1970 (e uma quarta final em 1971), o Leão de La Plata se apartou das conquistas domésticas e, consequentemente, das vagas internacionais, que então eram apenas duas por país. Em 1983, por fim, retornava como um dos dois campeões argentinos da temporada anterior: superou um difícil grupo com o atual bi-vice-campeão continental Cobreloa, o gigante Colo Colo e o conterrâneo Ferro Carril Oeste, que vivia seus melhores dias e vinha de e faturar o outro dos torneios argentinos de 1982.

O Pincha aportou nas semifinais, contra dois times que, então, tinham bem menos tradição internacional do que ele: o Grêmio, fazendo apenas sua segunda participação (tendo estreado um ano antes), e o América de Cali, que recém começava a se tornar o portento tonificado pelos dólares do tráfico, que viria a ser pentacampeão colombiano e três vezes finalista da Libertadores (perdendo todas) entre 1985 e 1987. Por camisa, o Estudiantes era favorito.

Em campo, nem tanto.

Em Porto Alegre, 2x1 para o Grêmio com direito a golaço

Invicto e embalado após deixar para trás o Flamengo, por quem havia sido derrotado na final do último Brasileirão, o Grêmio já abriu a semifinal derrotando o Estudiantes em Porto Alegre. Em casa, ganhou também do América e, embora tenha sido superado na Colômbia, desembarcava em La Plata para seu último jogo ainda como senhor de seu próprio destino: vencendo, seria finalista pela primeira vez. Qualquer outro resultado, porém, o deixaria pendente do América x Estudiantes ainda por jogar após sua despedida no triangular.

Jogando sua sobrevivência e babando de raiva, o Estudiantes já tratou de intimidar os visitantes logo de cara. Antes mesmo do apito inicial, Trobbiani levou amarelo por provocar o árbitro. Ainda no primeiro tempo, ele seria expulso após acertar China sem bola. Na confusão subsequente, Ponce agrediu o árbitro, o segundo vermelho subiu, e os pincharratas já se viam com nove jogadores. Tudo isso enquanto a torcida local usava os mastros de suas bandeiras para acertar o goleiro gremista, Mazarópi, através do alambrado.

Era um jogo com elementos extracampo, como costuma ser em jornadas tão virulentas: conta-se que a massa de La Plata não estava furiosa com os gaúchos apenas como tática de intimidação, mas por um sentimento patriótico de traição. Porto Alegre, afinal, ficava ao lado de Canoas, em cuja base aérea aviões britânicos haviam pousado para se reabastecer na época da Guerra das Malvinas, a quixotesca (e trágica) empreitada que precipitou a queda da ditadura argentina e havia ocorrido apenas um ano antes.

Inflamado, o Estudiantes saiu na frente mesmo com dois a menos, através de Gurrieri, aos 39 minutos. Mas, antes do intervalo, Osvaldo igualou as coisas. Após outra pancadaria na descida aos vestiários, quando os argentinos rodearam o gremista Caio e fraturaram sua tíbia em meio às agressões, os gaúchos voltaram para tentar fechar o serviço em território hostil: gols e expulsões se alternariam ao longo da metade final do jogo. César fez 2x1 aos 7 do 2º tempo. Camino foi o terceiro expulso, aos 12. Renato Portaluppi abriu 3x1 aos 18 minutos. E, aos 29, Tévez viu outro vermelho para o Estudiantes.

Renato, que em campo era um provocador ainda mais inconsequente que nas coletivas que hoje dá como técnico, aproveitou a vantagem construída para zombar os adversários a dribles, aumentando a intensidade da batalha campal. Temeroso de acumular novas expulsões que encerrariam o jogo antes da hora, o juiz deixou seguir.

É neste ponto que as versões se bifurcam: o Grêmio garante que passou a temer pela própria vida, e deixou empatar por isso. O Estudiantes não tem dúvidas que sua alma copeira falou mais alto, criando um episódio que é sempre recordado quando o clube passa por maus bocados na Libertadores: Gurrieri descontou aos 31, Russo empatou aos 42 — e o Grêmio, que décadas mais tarde se faria famoso por vencer um jogo decisivo com sete em campo, desta vez se via do outro lado de uma façanha parecida.

O empate impedia o Grêmio de garantir vaga antecipada na final, deixando-o nas mãos do já desclassificado América de Cali, que receberia o Pincha na rodada final. No entanto, os brasileiros não seriam eliminados mesmo com uma vitória do Estudiantes: na pior das hipóteses, os argentinos igualariam a pontuação, forçando um jogo extra. O Grêmio, que já havia sido melhor nas duas partidas anteriores, entraria favorito — e não teria o Hirschi para temer. Era nisso que se fiava para se consolar pelo ponto perdido na Argentina. Mas nada disso foi necessário: o América também tinha contas a acertar pelo que sofreu na Ciudad de las Diagonales, fez jogo duro, e segurou o empate que eliminou o Estudiantes no encerramento do triangular.

* * *

Quando há um duelo de versões, geralmente são os vencedores que difundem mais a sua ao redor do mundo. Após a noite no Hirschi, havia poucas dúvidas de que o Estudiantes, mesmo empatando, saía “vitorioso” e tinha mais motivos para se orgulhar do 3x3 — e o episódio entrou imediatamente em sua coleção de lendas, o ponto mais alto de sua história sul-americana no longo deserto entre o título derradeiro de 1970 e a demorada reconquista que só ocorreria em 2009.

Uma prova de como o Grêmio não viu o jogo com bons olhos naquele momento foi dada pelos mais experientes do time. Tita, campeão da Libertadores com o Flamengo em 1981, saiu de campo pedindo desculpas aos repórteres brasileiros, que não pouparam críticas ao resultado. O capitão Hugo de León, que erguera a Copa com o Nacional de Montevidéu em 1980 (e voltaria a fazê-lo em 1988), dizia não ter explicações para o ocorrido: “Fomos inocentes demais. Fomos burros mesmo”.

Os 3x3 de La Plata

Mas a sequência daquela Libertadores gerou uma encruzilhada histórica: quando o próprio Grêmio virou o vencedor não só do triangular, mas de toda a Copa de 1983, foi preciso atribuir um novo significado ao jogo. E a “Batalha” ganhou seus dois lados orgulhosos, o que sorriu já na noite do jogo à beira do Prata e aquele que, às margens do Guaíba, depois passou a defender a narrativa da provação necessária para enfim decifrar os caminhos da América.

Alguma lição, é certo, o Grêmio levou do Jorge Luis Hirschi: quando chegou a hora de enfrentar o atual campeão Peñarol na grande final, os gaúchos já sabiam que era preciso mais do que apenas jogar futebol. E foram campeões batendo.

* * *

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