Na base do pior time do mundo

O Íbis não é só folclore. Há seis anos, um trabalho de base impulsiona o sonho de jovens atletas e treinadores em se tornarem profissionais

Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo
10 min readJun 29, 2017

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Por Mayra Couto e Priscilla Coelho

Como todo garoto, Eudes Correia, 15 anos, carrega desde muito cedo um sonho. A imaginação, muitas vezes, o permite ir além. “Meu pai me levava para vê-lo jogar nas peladas. Eu também jogava com os outros meninos, mas, às vezes, parava e ficava olhando ao redor. Eu me via dentro de um estádio de futebol, com a torcida gritando meu nome”, conta.

Mas aqui, realidade e sonho não caminham no mesmo passo. Nada de gramado impecável, academia preparada, chuteiras novas ou uniformes perfeitos. Eles não jogam no Náutico, Sport ou Santa Cruz, o trio de ferro da capital pernambucana. Eles fazem parte da base do “pior time do mundo”, o Íbis Sport Club.

Se isso pode servir como motivo de vergonha para alguns, para eles é apenas mais um degrau na busca pelo objetivo. “Meus colegas fazem aquela tiração de onda, mas eu levo numa boa. É clube profissional e a gente vê aqui uma oportunidade de disputar campeonatos, se destacar e ser chamado por outro clube”, complementa Eudes.

Ozir Ramos Júnior (D), atual presidente do Íbis, ao lado do pai Ozir Ramos, que também foi presidente do clube. Foto: Mayra Couto

A família Ramos

Despretensão. Talvez seja a palavra que melhor defina o surgimento do Íbis. O clube foi criado por Onildo Ramos em 15 de novembro de 1938 dentro da fábrica de Tecelagem de Seda e Algodão de Pernambuco (TSAP), localizada no bairro de Santo Amaro, Recife. Naquele momento, nada de querer rivalizar com os grandes. O Íbis foi fundado com o propósito de servir como lazer para os funcionários da fábrica. “Os trabalhadores tinham um grêmio recreativo que era um time da própria fábrica. O negócio foi amadurecendo e o time se profissionalizou”, explica Ozir Ramos Júnior, atual presidente do Íbis, filho de Ozir Ramos, que também foi presidente do clube por vários anos.

O nome do clube e as cores não foram escolhas aleatórias. O escudo da fábrica era um pássaro preto envolvido pela cor laranja. Herança familiar que ainda se mantém, quase 80 anos depois. Durante todo esse período, a maioria dos presidentes que estiveram no comando do clube pertenceu à família Ramos.

“Uma vez o dono da fábrica mandou acabar com Íbis. Meu pai fez um ofício desligando o Íbis da federação e me deu. Na época, eu era o representante do clube e, no meio do caminho, joguei o documento fora. No dia seguinte o dono me chamou e perguntou se eu tinha entregado. Respondi que não. Ele perguntou por que e eu disse que havia rasgado. Não queria acabar com o Íbis. Depois disso, ele me mandou levar tudo do time para a minha casa. Fiz isso. Foi daí por diante que eu continuei no clube como presidente”, relembra um orgulhoso Ozir Ramos.

O clube esbarra em diversas adversidades estruturais e financeiras. “Essas dificuldades sempre existiram. O Íbis não tem patrocinador e faz muito tempo que jogou a primeira divisão do Campeonato Pernambucano. A última vez foi no ano 2000”, explica Ozir Ramos. Sem uma receita fixa, as despesas são pagas exclusivamente pela família Ramos e colaboradores que não podem ser chamados de patrocinadores, já que não destinam uma renda mensal ao clube.

“Quem banca sou eu, meu pai, meu irmão e algum amigo ou outro. É um vício, uma tradição familiar. Se esse time não fosse criado pelo meu avô e pelo meu pai, eu já tinha abandonado”, esclarece, agora com uma ponta de angústia, o presidente Ozir.

Eudes treina no Íbis para ser jogador de futebol.

Vitrine de todos

Eudes sonha em ser jogador de futebol vestindo o colete laranja, o mesmo que foi utilizado pelo elenco profissional na temporada passada. Essa cena se repete todas as segundas, quartas e sextas-feiras no campo da Vila Olímpica, um espaço municipal localizado no bairro de Rio Doce, em Olinda. Cerca de setenta meninos (do sub-13, sub-15, sub-17 e sub-20) treinam na base do Íbis.

Durante o trabalho, com duração aproximada de duas horas e meia, são priorizados os fundamentos específicos de jogo e o desenvolvimento dos meninos com bola rolando. Nesses momentos, quando alguém comete alguma falha, ainda é possível contar com os conselhos dos professores dentro do campo. “Não bate na bola na hora de defender. Assim pode se machucar”, alerta Rodrigo Alves, 25 anos. O treino é comandado por ele e por Pedro Gonçalves, 54 anos, que assumiu três categorias (sub-13, sub-15 e sub-17) no início de 2017.

O projeto na base do Íbis começou há seis anos e está em constante aprimoramento. “Agora nós trabalhamos o ano inteiro e participamos de várias competições ao longo desse período. Em 1995, eu fiz parte da base do clube, mas as peneiras e os treinos só eram realizados na época de competições”, relembra o diretor responsável pela base do clube, Martim Sales Júnior.

Os atuais treinadores possuem experiência como jogadores profissionais. Rodrigo trabalha na base do clube há dois anos, é goleiro e teve como time formador o Náutico, além de ter defendido a meta do próprio Íbis na última Série A2 do Pernambucano. Já Pedro, que na época de atleta profissional era conhecido como “Pedrinho Lateral”, carrega no currículo passagens por Sport e Sampaio Corrêa. Ambos não recebem salário e a recompensa pelo trabalho desenvolvido na base é a mesma moeda que os garotos aguardam: ter o potencial reconhecido a ponto de chamar a atenção de algum outro clube.

Juntos, eles mantêm um objetivo em comum. “Estamos tentando fazer com que o projeto cresça. Antigamente, quando os meninos jogavam contra times ‘grandes’ levavam dezesseis gols! Hoje, com o treinamento que realizamos três vezes por semana, já conseguimos jogar de igual para igual. Jogamos contra o Náutico ano passado e perdemos por um a zero. Contra o Sport foi dois a um e ganhamos a Copa Olinda na frente do Santa Cruz”, explica Rodrigo. Sobre o trabalho com os garotos, ele sabe onde quer chegar. “O importante aqui nem é tanto ganhar título e, sim, revelar jogadores para o time profissional do Íbis”.

Pedro, que chegou há pouco tempo, prefere dar destaque à responsabilidade que sente em exercer o cargo. “Eu me sinto na obrigação de ensinar o caminho das pedras a esses meninos. Eu tento fazer com que eles cheguem preparados em outros times”, diz. “É um prazer estar aqui e, ao mesmo tempo em que eles aprendem, eu aprendo”, emenda Rodrigo.

Sidney, 15 anos: treino, estudo e ajuda ao pai na reciclagem. Foto: Mayra Couto

Orgulho em ser o pior

Sobre a tal fama de ser o pior time do mundo, o presidente de honra traz para si toda a responsabilidade. “Fui eu que mandei botar. Tinha um repórter aqui, Lenivaldo Aragão, que falava do Íbis como o pior de Pernambuco. Nunca foi. Nunca chegou em último lugar nos campeonatos daquela época. Aí eu me afobei e mandei escrever a frase na camisa”, lembra Ozir Ramos.

Apesar de ter escrito sobre um dos piores momentos do time, Lenivaldo admite que o histórico do clube não se fez apenas de derrotas. “Eu já vi o Íbis ganhar do Santa Cruz, Náutico e Sport. Até os anos 50 e 60, o clube ainda oferecia alguma resistência”.

A reputação de ser o pior se popularizou ao longo da década de 80, principalmente depois de uma reportagem da Revista Placar, que dava destaque aos resultados negativos. “O Íbis estava em uma pindaíba. Passou quase quatro anos sem vencer uma partida. Levava goleadas de dez, doze gols. Era até cômico. Então, eu fiz uma matéria utilizando a frase de ‘pior time do mundo’, mas essa expressão eu peguei na rua, não é minha”, explicou Lenivaldo Aragão. “No começo eles não gostaram muito, mas depois passaram a levar na brincadeira. Se não fosse esse título ninguém falaria do Íbis, ele seria como qualquer outro time”.

Mesmo em lados diferentes da história sobre a disseminação da fama, o jornalista Lenivaldo e Ozir Ramos demonstram apego ao clube. “Eu, pessoalmente, como acompanho o Íbis há muito tempo, gostaria que ele nunca acabasse”, expressa o jornalista. “Por mim, o Íbis só acaba depois que eu morrer”, declara Ozir*.

Rodrigo Alves (E) e Pedro Gonçalves, treinadores da base do Íbis. Foto: Priscilla Coelho

A grande chance

Sempre perto do técnico Rodrigo, o goleiro Hélio Breckenfeld, 17 anos, integra a base desde o início do novo formato. Depois de se destacar nos treinos, o jovem foi convidado para jogar no time profissional do Íbis em 2016. Na ocasião, o atleta passou por uma situação inusitada: foi banco do próprio Rodrigo, seu treinador. A experiência vivida por Hélio foi suficiente para confirmar o desejo antigo. “É muito bom você ser chamado para jogar no profissional. É o que eu quero ser. Além disso, o estilo de jogo é outro”.

Apesar da pouca idade, a história de Hélio com o futebol é antiga. O goleiro começou a treinar aos seis anos em uma escolinha gratuita no bairro onde mora na cidade Paulista. Depois, passou por outra escola e precisou parar por um bom tempo. Na época, a mãe queria que ele fizesse catecismo, estudo religioso e doutrina da Igreja Católica. Ele queria continuar treinando, mas o desejo da mãe prevaleceu.

A referência familiar no futebol é forte. O pai e o irmão tentaram carreira, ambos como goleiro, mas sem sucesso. No entanto, no caso do garoto, o histórico não foi determinante na escolha da posição. Antes de assumir o gol, Hélio jogou como volante, lateral, meia, zagueiro e atacante. Só foi para debaixo das traves por achar a atuação de um dos goleiros abaixo da média. “Achava ele fraco. Aí eu disse: ‘Quero agarrar!’. Peguei a camisa do meu pai e fui. A galera gostou e eu fiquei”. Três anos depois disseram que estavam precisando de um goleiro em um time de Olinda. Hélio entrou na base do Íbis e não saiu mais.

Em meados de março deste ano, foi surpreendido com a grande oportunidade: ele foi convidado a se apresentar no Náutico. O contato aconteceu depois que um dos goleiros do Timbu viu e aprovou a atuação do menino em uma partida do Íbis contra o próprio Náutico. “Fomos jogar o Pernambucano e tomamos oito gols. Na saída, o goleiro perguntou o meu ano, se eu tinha interesse em jogar lá e pediu para eu me apresentar. Comuniquei à diretoria do Íbis e fui”.

Hélio treinou apenas dois dias e foi dispensado. “Eles me disseram que já tinham dois goleiros na casa”. Diante de notícia ruim, o segredo é não desanimar. “É isso mesmo, bola para frente. Só me deu mais motivos para querer voltar. Lá tem material, um treinador só para você e eu não saí porque fui mal, mas porque não tinha a vaga.” No ‘clube grande’, ele sentiu a diferença estrutural oferecida aos atletas da base, uma realidade muito diferente daquela que ele e os colegas têm acesso. “Lá tem rouparia, chuteira, camisa térmica, camisa, luva. Tem tudo que você precisa”.

Treino do Íbis ocorre em campo municipal em Olinda. Foto: Mayra Couto

Falta tudo, menos vontade

A falta de materiais não é algo que desmotive os jovens da base, muito menos diminui o trabalho realizado. “A única diferença é que eles oferecem uma estrutura maior, mas o que treinamos aqui, eles também fazem em outros clubes”, explica Rodrigo. Na base do Íbis os garotos precisam comprar seu próprio material: chuteiras, bermudas e luvas. Em um dos treinos coletivos que a reportagem do Puntero presenciou, Mateus Mendes, 16 anos, conhecido como “Rato”, perdeu a chuteira durante a partida. Ela descolou o solado e ficou em precárias condições de uso. Mas nem jogador, nem o técnico duvidaram por um instante sequer. “Ele me disse: continua assim mesmo. Entreguei o solado da chuteira e falei: ‘então tá’. Eu queria continuar jogando”.

Naquele mesmo treino, Sidney Costa, 15 anos, e que entrou no projeto no início de 2017, chamava atenção pelo desempenho. “O Pedrinho me chamou porque eu já tinha treinado com ele. No início deste ano estava fazendo testes para a base do Santa Cruz, mas sofri uma contusão na mão”, conta.

Tímido, além de estudar e treinar, nas horas vagas ajuda o pai no trabalho com reciclagem. “Desde que eu nasci ele trabalha com isso. A gente recolhe material dos prédios, leva lá para casa, separa e ele vende para um galpão”. No início de abril, Sidney conseguiu ingressar na base do Santa Cruz. Hoje, participa de competições defendendo o novo clube, mas sempre que pode ainda frequenta os treinamentos do Íbis.

Assim como Sidney, o goleiro Hélio também tem a chance de ir para o Santa Cruz. A diretoria do Íbis ofereceu o atleta. Segundo o presidente Ozir Ramos, apesar dele e de outros garotos terem contratos profissionais assinados com o Íbis, eles não recebem nada com as negociações. “Quando têm uma oportunidade dessas, eu não posso atrapalhar o futuro deles”.

Os atletas profissionais também não recebem. Eles aceitam o convite para jogar pelo Íbis pela oportunidade de treinar, aparecer em algum torneio, e ser convidado por outro clube. “O jogador que chega assina o mesmo contrato que qualquer outro. Mas todos que chegam no Íbis sabem que o clube não tem condições de pagar salário”, argumenta o presidente.

Pode causar estranheza querer jogar por um time que passou anos sem ganhar uma única partida. Afinal, no esporte de alto rendimento, ninguém quer ser reconhecido como perdedor.

Mas, para o Íbis e os jovens que militam na base, essa alcunha não incomoda o presidente. “Pelo contrário. Olha vocês aqui…”

* Ozir Ramos morreu no último dia 9 de junho, aos 83 anos. Ele estava internado depois de sofrer um Acidente Vascular Cerebral. O Íbis não vai morrer.

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