(Imagem: Matías Izaguirre)

No céu dos nossos

Durante muitos anos, Diego compôs uma sinfonia na qual foi construindo um nós. Um nós enriquecido, articulado e fusionado com patches de memória e as reivindicações pessoais que cada um agregou ao que aconteceu em campo. Essa melodia coral nunca conteve somente futebol.

Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo
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11 min readDec 7, 2020

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Por Matías Izaguirre*
@Matizaguirre

“Às vezes, quando descubro que não escrevi uma só frase depois de ter rascunhado páginas inteiras, eu desabo no meu sofá e aí permaneço, marcado, afundado em um pântano de desespero, me odiando e me culpando por este orgulho demente que faz com que eu faça birra por uma quimera”
Gustave Flaubert (de uma carta a Louise Colet)

Um jornalista jamais deveria renunciar à palavra para tentar compreender o tempo que lhe toca viver, mas há vários dias estou como Flaubert: afundado em um pântano, em reprovação por não conseguir um texto à altura das circunstâncias. Mas é que morreu Maradona. E o violento ofício de escrever exige palavras quando, como também sabem em Nápoles, agora é tempo de chorar.

Apenas algumas horas depois de saber da notícia, o jornalista Carlos Romero sintetizou o que acontecia em Buenos Aires. Em sua conta no Twitter, escreveu que a rua dava a sensação de que “morreu o mesmo familiar de todos nós”. E isso, tenho certeza, aconteceu em todos os cantos da Argentina.

Uma primeira certeza em meio à dor. Há mais de uma semana choramos. Choramos por Ele, mas também por nós. Pelos que já não somos e pelos que já não estão. Choramos por “um pedaço de vida” como disse Goyco — herói na Copa da Itália 90 e amigo do Diez — afogado em prantos ao vivo pela TV Pública. É muito provável que com o Diego algo dentro de nós também tenha se apagado para sempre.

Em seu maravilhoso Febre de Bola, Nick Hornby reconhece que “se apaixonou pelo futebol como mais adiante se apaixonaria pelas mulheres: de repente, sem explicação, sem fazer exercício de suas faculdades críticas, sem pensar em nada sobre a dor e nos sobressaltos que a experiência traria consigo”.

Do mesmo jeito nos apaixonamos pelo Diego aqueles que, como meu irmão e eu, começamos a ver futebol no final dos anos oitenta. Porque nossas primeiras lembranças futboleras estão tingidas, de maneira indefectível, pelos jogos da seleção. E esses foram os anos dos heróis. Os anos de Maradona e seus feitos homéricos. A educação sentimental. O decolar do gênio não precisa de intermediários nem de exegetas.

(Imagens: Matías Izaguirre)

A arte, quando atravessa você de um lado a outro, eleva a experiência individual, se funde com o que é transcendental e no mesmo gesto, com o que é coletivo. Não é em vão que em Nápoles cantam e seguem cantando: “eu vi o Maradona, apaixonado estou”.

Minha geração aprendeu a amá-lo quando, inclusive sem ainda entender muito a complexidade do jogo, as táticas ou os times, percebemos que assistíamos ao extraordinário. Não tínhamos nem dez anos quando já tínhamos assumido que aquele com o 10 nas costas era muito mais que qualquer um “dos bons”. Esse sujeito, além de tudo, fazia os adultos da família chorarem de alegria.

Como Hornby, jamais imaginamos a dor e as sensações violentas que traria, mais adiante, essa devoção. Entretanto, quando descobrimos, ao invés de abandoná-lo à própria sorte, continuamos amando ele. Talvez, inclusive, até mais do que antes. Nós fomos leais a ele. Apesar de tudo, o mantemos vivo no santuário que havíamos erguido dentro de nós mesmos. Porque, como sugere uma frase atribuída a Fontanarrosa, não nos importava o que Ele tinha feito com sua vida, importava o que havia feito com as nossas.

Se “a bola não se mancha” nossas memórias também não. Sacheri em Me van a tener que disculpar escreveu de uma forma simples a eficácia maradoniana. “Os que estamos deste lado não temos outra alternativa que responder em um campo, porque não temos outro lugar, porque somos poucos, porque estamos sozinhos, porque somos pobres. Mas aí está o campo, o futebol, e somos nós ou eles.”

Nós ou eles. E Diego durante muitos anos compôs uma sinfonia na qual foi construindo um nós. Um nós enriquecido, articulado e fusionado com os patches da memória e as reivindicações pessoais que cada um agregou ao que aconteceu em campo. Essa melodia coral nunca conteve somente futebol. Diego nos ensinou a ganhar e a ser felizes em um mundo onde, geralmente e longe dos campos, estávamos acostumados (e nos acostumamos) a perder.

(Imagens: Acervo histórico Argentinos Juniors)

No dia 26 de novembro, um depois da morte de Maradona, diante da impossibilidade de ir despedi-lo na Casa Rosada, e quase na mesma hora em que começava o velório e a grande peregrinação de centenas de milhares de pessoas pelo centro de Buenos Aires, fui até a Paternal. Primeiro passei pelo estádio do Argentinos Juniors e depois pela casa da rua Lascano, essa que ele comprou a don Diego e doña Tota assim que assinou o seu primeiro contrato profissional.

Nos altares se multiplicavam as flores, camisetas, fotos e cartazes urgentes que diziam, entre outras coisas, “boa viagem” e “obrigado”. E o que dizer a este sujeito, eu me perguntava e continuo me perguntando. Como podemos chorá-lo assim e como poderia ser diferente? Nós estamos presos a ele por uma dívida de gratidão impagável.

Artistas como Diego — disse Bielsa ao ser perguntado pela imprensa britânica — nos fazem acreditar que todos somos capazes de fazer as mesmas coisas que eles. “Por isso a perda de um ídolo atinge tanto os mais excluídos, os mais indefesos porque são os que mais necessitam acreditar que é possível triunfar”.

Talvez por isso não me surpreendeu tanto constatar que os mais emocionados diante dos altares da Paternal tenham sido, principalmente, os trabalhadores. Garis abraçados em frente a casa da rua Lascano, um passeador de cachorros ou os muitos caminhoneiros que deixavam seus veículos em fila dupla para descer e rezar por um breve instante antes de seguir com as entregas do dia.

Pela televisão também se multiplicavam os depoimentos daqueles que habitualmente são excluídos. Gente que, enquanto acendia uma vela ou fazia fila para entrar na Casa Rosada, não duvidou em contar que nesse mundo de privações e fome, Diego deu as únicas alegrias.

Dizem que nos últimos tempos ele estava triste e muito sozinho, que já não se sentia à altura de sua lenda. O sujeito que nos fez chorar e pular de felicidade diante da televisão, abraçados aos nossos, estava sozinho. Ele se apagou como o fogo que já tinha mais como seguir queimando para alimentar o mito. Restava a última madeira: sua carne mortal.

(Imagens: Matías Izaguirre)

Tomara que ele saiba, de alguma forma, que nunca deixamos de amá-lo e que nunca deixaremos de amá-lo. Tomara que tenha recebido as preces de todas as crenças.

Tomara que se divirta ao ver que o cruzamento das ruas Segurola e Habana, no burguês bairro de Devoto, se tornou de agora e para sempre em uma das paradas obrigatórias no caminho do Diez: Diego cruzamento com Maradona, comuna 10.

Vivemos os dias de Maradona. Ainda não sei se conseguiremos dimensionar o que isso significa. Fomos contemporâneos de uma lenda que, é de se imaginar, crescerá exponencialmente com cada relato, com cada história. Diego já está em nós e, ao mesmo tempo, está muito além de nós. Não puderam domesticá-lo em vida. Menos ainda agora, que seu rosto se multiplicará nos altares pagãos, camisetas e peles.

Belos milagres serão atribuídos a ele. E ocorrerão…

Texto original, em espanhol:

En el cielo de los nuestros

“A veces, cuando descubro que no he escrito una sola frase después de haber borroneado páginas enteras, me desplomo en mi sillón y allí me quedo, marcado, hundido en un pantano de desesperación, odiándome y culpándome por este orgullo demente que me hace encapricharme por una quimera”.

Gustave Flaubert (de una carta a Louise Colet)

Por Matías Izaguirre
@Matizaguirre

Un periodista jamás debería renunciar a la palabra para intentar comprender el tiempo que le toca, pero desde hace varios días estoy como Flaubert: hundido en un pantano, reprochándome no poder lograr un texto a la altura de las circunstancias. Pero se murió Maradona. Y el violento oficio de escribir exige palabras cuando, como también saben en Nápoles, ahora es tiempo de llorar.

Apenas unas horas después de conocerse la noticia, el periodista Carlos Romero sintetizó lo que pasaba en Buenos Aires. Escribió en su cuenta de Twitter que en la calle daba la sensación de que “a todos se nos había muerto el mismo familiar”. Y eso, estoy seguro, sucedió en todos los rincones de la Argentina.

Una primera certeza en medio del dolor. Hace una semana que lo lloramos. Lloramos por Él, pero también por nosotros. Por los que ya no somos y por los que ya no están. Lloramos por “un pedazo de vida”, como dijo Goyco –héroe de Italia 90 y amigo del Diez– ahogado en llanto al aire de la TV Pública. Es muy posible que con Diego algo dentro nuestro también se haya apagado para siempre.

En su maravilloso Fiebre en las gradas, Nick Hornby reconoce que “se enamoró del fútbol como más adelante se enamoraría de las mujeres: de repente, sin explicación, sin hacer ejercicio de sus facultades críticas, sin ponerse a pensar para nada en el dolor y en los sobresaltos que la experiencia traería consigo”.

De igual manera nos enamoramos de Diego los que, como mi hermano y yo, empezamos a ver fútbol a finales de los 80s. Porque nuestros primeros recuerdos futboleros están teñidos, indefectiblemente, por los partidos de la selección. Y esos son los años de los héroes. Los años de Maradona y sus gestas homéricas. La educación sentimental. El despliegue del genio no precisa de intermediarios ni de exegetas.

El arte, cuando te atraviesa de lado a lado, eleva la experiencia individual, la funde con lo trascendental y, en el mismo gesto, con lo colectivo. No en vano en Nápoles cantaban y siguen cantando: “he visto a Maradona, enamorado estoy”.

Mi generación aprendió a amarlo cuando, incluso sin entender todavía demasiado la complejidad del juego, las tácticas o los equipos, nos dimos cuenta de que asistíamos a lo extraordinario. No teníamos ni 10 años cuando ya habíamos asumido que el de la 10 en la espalda era mucho más que cualquiera “de los buenos”. Ese tipo, además, hacía llorar de alegría a los adultos de la familia.

Como Hornby, jamás imaginamos el dolor y los sobresaltos que nos traería, más adelante, esa devoción. Sin embargo, cuando lo supimos, lejos de abandonarlo a su suerte lo seguimos amando. Tal vez incluso más que antes. Le fuimos leales. Pese a todo lo mantuvimos vivo en el santuario que le habíamos levantado dentro de nosotros mismos. Porque, como sugiere una frase atribuida a Fontanarrosa, qué importaba lo que Él hiciera con su vida, importaba lo que ya había hecho con las nuestras.

Si “la pelota no se mancha” nuestras memorias tampoco. Sacheri en Me van a tener que disculpar lo expresa con sencillez y eficacia maradoniana. “A los de acá no nos cabe otra que contestar en una cancha, porque no tenemos otro sitio, porque somos pocos, porque estamos solos, porque somos pobres. Pero ahí está la cancha, el fútbol, y son ellos o nosotros”.

Ellos o nosotros. Y Diego durante muchos años nos compuso una sinfonía en la cual fue construyendo un nosotros. Un nosotros enriquecido, articulado y fusionado con los parches de memoria y las reivindicaciones personales que cada uno añadió a lo que sucedió en el césped. Esa melodía coral nunca contuvo sólo fútbol. Diego nos enseñó a ganar y a ser felices en un mundo en el que, por lo general y lejos las canchas, solíamos (y solemos) perder.

El 26 de noviembre, ante la imposibilidad de ir a despedirlo a la Casa Rosada, y casi a la misma hora en que comenzaba el velatorio y el largo peregrinar de cientos de miles de personas por el centro de Buenos Aires, fui a la Paternal. Pasé primero por la cancha de Argentinos Juniors y luego por la casa de Lascano, esa que le compró a don Diego y doña Tota cuando hizo su primer contrato profesional.

En los altares se multiplicaban las flores, camisetas, fotos y carteles urgentes que decían, entre otras cosas, “buen viaje” y “gracias”. ¿Qué decirle a este tipo?, me preguntaba y me sigo preguntando ¿Cómo podemos llorarlo así? y ¿cómo podríamos no hacerlo? Si nos ata una deuda de gratitud impagable.

Los artistas como Diego –sostuvo Bielsa al ser consultado por la prensa británica– nos hacen creer que todos somos capaces de hacer las mismas cosas que ellos. “Por eso la pérdida de un ídolo golpea tanto a los más excluidos, a los más indefensos porque son los que más necesitan creer que es posible triunfar.”

Quizá por eso no me sorprendió tanto constatar que los más emocionados frente a los altares de Paternal hayan sido, sobre todo, laburantes. Barrenderos abrazados frente a la casa de Lascano, un pasea perros o los muchos camioneros que dejaban sus vehículos en doble fila para bajar a rezar un breve instante antes de seguir el reparto. Por televisión también se multiplicaron los testimonios de los que habitualmente son excluidos. Gente que, mientras prendía una vela o hacía la cola para ingresar a la Casa Rosada, no dudó en contar que en un mundo de privaciones y hambre Diego les había dado sus únicas alegrías.

Dicen que en los últimos tiempos estaba triste y muy solo, que ya no se sentía a la altura de su leyenda. El tipo que nos hizo llorar y saltar de felicidad frente a la tele, abrazados a los nuestros, estaba solo. Se apagó como un fuego que ya no tenía de dónde seguir quemando para alimentar el mito. Quedaba un último madero: su carne mortal.

Ojalá de alguna manera sepa que nunca dejamos de amarlo y que nunca dejaremos de hacerlo. Ojalá haya recibido los rezos de todos los credos.

Ojalá se ría al ver que Segurola y Habana, en el coqueto barrio de Devoto, se convirtió de ahora y para siempre en una de las paradas obligadas en el camino del Diez: Diego intersección Maradona, comuna 10.

Vivimos los días de Maradona. Todavía no creo lleguemos a dimensionar lo que eso significa. Fuimos contemporáneos a una leyenda que, todo hace pensar, crecerá exponencialmente con cada relato, con cada historia. Diego ya está en nosotros y, a la vez, está más allá de nosotros. No lo pudieron domesticar en vida. Menos ahora, que su rostro se multiplicará en altares paganos, remeras y pieles. Se le atribuirán bellos milagros. Y ocurrirán…

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