O Campeonato Argentino do Brasil
River Plate, Boca Juniors, Vélez Sarsfield, San Lorenzo e outros times se enfrentam no Campeonato Argentino de Buenos Aires de Guarapari (ES).
Difícil? A gente explica.
Por Vitor Taveira
O jogo é truncado, brigado, em Buenos Aires.
O Rosario Central defende a liderança do Campeonato Argentino contra o River Plate. Ao longo da partida são quatro os jogadores que caem e precisam de atendimento médico. Mas não estamos no estádio Monumental de Nuñez. O campo é bem mais modesto. Estamos no interior de Guarapari, cidade litorânea do Espírito Santo conhecida por suas belas praias.
Buenos Aires é um distrito distante apenas doze quilômetros da faixa de areia e com uma outra realidade.
Subindo as montanhas o clima é mais ameno e com cachoeiras ao redor. Entre agricultores, trabalhadores humildes e moradores da capital com seus sítios de final de semana, o campo de futebol é uma das boas atrações para o domingo.
Com seis décadas de tradição, o clube local leva o nome do distrito capixaba, da capital portenha e também carrega as cores da seleção argentina.
Disputando o Campeonato Rural de Guarapari desde 1988, o Buenos Aires F.C. havia vencido nas duas categorias — aspirante e titular — em 2015. Mas no ano seguinte teve alguns atritos e decidiu se retirar do campeonato regional. Tudo porque um atleta da comunidade fora impedido de jogar por estar federado como profissional.
Foi daí que surgiu a ideia de criar um novo campeonato local para manter as atividades esportivas e a mobilização comunitária aos domingos.
Alguém sugeriu que o torneio fosse o Campeonato Argentino, uma homenagem ao próprio nome do distrito. Foi assim que em 2016 estrearam seis times no campeonato de Buenos Aires. Agora, em sua terceira edição, o torneio já conta com oito clubes de peso: Boca Juniors, River Plate, Vélez Starfield, San Lorenzo, Racing Club, Rosario Central, Estudiantes e Lanús. Todos utilizando uniformes similares aos originais.
Walison Pinto Bianchi, 18 anos, é um dos jogadores que foi campeão entre os aspirantes do Campeonato Rural pelo Buenos Aires F.C em 2015. Apesar do título, ele assegura não sentir saudades. “A gente se chateou muito quando o Buenos Aires foi cortado. Mas depois que fizeram o Argentino a gente nem ligou muito. O campeonato é bom, organizado, pontos corridos, com dois turnos, tem arbitragem, e cresce a cada ano”, diz o jovem que é filho de um caseiro com uma empregada de supermercado e que migrou de volta da cidade grande para o interior.
“Outro ponto positivo é que no Argentino todos os jogos são aqui em Buenos Aires. No Rural você joga em muitos lugares, perde muito tempo viajando pelo interior”, considera o jovem que este ano atua pelo San Lorenzo, mas já passou pelo Boca Juniors e Rosario Central.
Jogadores ciganos e torcedores vira-casaca
No Argentino, os times não possuem plantel fixo. A cada campeonato há um sorteio dos jogadores inscritos, divididos por posição. Tudo para tentar manter o equilíbrio entre as equipes participantes.
Cada time pode inscrever 18 atletas, sendo que o campeonato mobiliza 144 jogadores iniciais. Há ainda uma lista de espera que permite substituir aqueles que se lesionarem ou tenham outro impedimento para seguir na competição.
O Rosario Central é o atual bicampeão, mas por pura coincidência pois o time de um ano às vezes conserva apenas dois ou três jogadores da temporada anterior. Forma-se assim uma legião de jogadores-ciganos e torcedores vira-casacas, que a cada ano rumam a torcida para o time do parente ou amigo mais próximo. Dessa forma também se mantém a interação entre todos os participantes, não apenas os moradores de Buenos Aires mas também de outras comunidades rurais ao redor.
O mais interessante é que o Campeonato Argentino de Buenos Aires gerou outra dinâmica esportiva e comunitária.
“Começamos a convidar quem quisesse participar. Apareceram pessoas que já tinham parado de jogar. No Campeonato Rural são jogadores de ponta, escolhe-se os melhores jogadores para ter um time competitivo, vindos de fora das comunidades. No Argentino não temos essa preocupação, as pessoas jogam, brincam. Foi uma oportunidade de trazer de volta uma disputa saudável, com brincadeira e também praticando um exercício físico”, explica Everaldo Arpini, um dos cartolas que participam da organização do campeonato.
Assim como era no Rural, o Campeonato Argentino ocupa todo o segundo semestre na região. Este ano começou no dia 5 de agosto e a final está prevista para 16 de dezembro.
A cada domingo são quatro jogos em sequência, a bola rola entre 9h e 17h. O calendário só faz uma breve pausa em alguns poucos domingos de atividades comunitárias como a caminhada ecológica, a festa de uma das primeiras famílias da região e na final do Campeonato Rural, pois mesmo que o Buenos Aires F.C. não o dispute mais, a paixão por el fútbol ainda fala mais alto.
Todos contra todos
No regulamento do Argentino, na primeira fase todas equipes se enfrentam em turno e returno. A vitória vale três pontos. No caso de empate, há disputa de pênaltis: o vencedor leva dois pontos e o perdedor fica só com um. A regra garante emoção e equilíbrio. Os quatro melhores classificados vão para as semifinais.
Mas essa admiração pelo futebol argentino obedece a limites. Ao contrário do bairro Real Copagre, em Teresina (PI), onde moradores pintaram uma rua com as cores da Argentina, na Buenos Aires capixaba, o muro das escadarias da Igreja, separada do campo apenas pela estrada, ainda traz a pintura da Copa do Mundo que lembra os cinco títulos da Seleção Brasileira.
Sem arquibancadas, os torcedores rodeiam os alambrados e a pequena área social. Com cerveja numa mão e churrasquinho na outra, José Luis Efigênio é um dos mais efusivos do lado de fora.
“Tira o 10, não tá jogando nada”, grita. Aos 62 anos, guia de pesca e frequentador do local há 20 anos, jogou o campeonato do ano passado ao lado de seu filho. Coincidentemente caíram no San Lorenzo por sorteio. Chegaram às semifinais. Este ano, por conta das viagens constantes a trabalho, não pôde participar do campeonato, mas quando está em Buenos Aires vai assistir, torcer e cornetar, é claro.
-Você não pode falar assim não, pai. O camisa 10 é o artilheiro do campeonato. Ele não tava jogando bem hoje. Já o Leo, que não tinha feito nenhum gol, meteu três.
Quem faz o alerta é o filho de José Luis ao sair de campo no fim da partida, ponderando os altos e baixos do futebol.
-Só participei da abertura e vim hoje. Eu não vi o cara jogar. Quando vi, ele não estava bem. Não jogou nada hoje- contestou o pai cheio de razão.
-Mas você viu? Eu dei o passe e ele fez o gol [foi no final da partida e o pai de fato nem viu pois estava conversando].
-Você tinha que estar nesse jogo há muito tempo. Não é porque sou seu pai, não — reclama José Luis sobre a injusta suplência do filho.
Leo, o jogador do hat-trick, é o atacante Leonardo Brambati, de 17 anos. Morador de Buenos Aires, começou a jogar aos 15 e já passou por River e Vélez, agora defende o bicampeão Rosario.
“Qualquer time serve. É bom porque você joga com todo mundo, faz amizades. No Campeonato Rural não temos oportunidade, no Argentino sim”, diz.
Pressionado pelo repórter confessa que se pudesse jogar na Argentina escolheria o Boca Juniors por ser o mais popular.
Centroavante sem chuteiras e o Rei da resenha
Pela fama de jogo “pegado”, o Boca também é o favorito de Jadir Oliveira, 50 anos, morador da comunidade vizinha de Boa Esperança.
Ele já foi à Argentina uma vez, mas “não deu tempo de ir ao estádio”. Afirma ter sido três vezes campeão do Campeonato Rural no passado, todas pelo time de sua comunidade.
No Campeonato Argentino capixaba, Jadir é o único jogador autorizado a jogar descalço. “A minha chuteira é o meu pé”, diz apontando para os pés curvados como meia-lua, deficiência que traz de nascença mas que não o impede de jogar.
“Eu nasci assim, pra mim não faz diferença. Mas hoje em dia o preparo físico pega”, comenta exibindo uma barriga respeitável.
Jadir é quem comanda a tradicional “resenha” pós-jogo no Bar do Ademir, localizado logo atrás do campo. “Ano passado a gente jogava e eu fazia questão de trazer o adversário para bater um papo com a gente”, conta o experiente boa-praça. A celebração, às vezes, dura até 23h.
Uma churrasqueira portátil assa a carne e a prosa rola. Dessa vez sem adversários, só com os derrotados colegas de San Lorenzo, lanterna do campeonato.
Centroavante, Jadir ainda não marcou no Campeonato Argentino. “Este ano está difícil, ano passado fiz vários gols. O time não está bem não. É por sorteio, então não dá pra escolher”, justifica. “A camisa pesou”, brinca sobre a goleada de 6x1 recém sofrida no clássico contra o Boca Juniors.
Mas Jadir não desanima. Se inclui orgulhoso num entusiasmado quarteto de cinquentões da equipe que somam mais 200 anos de idade. “O campeonato é uma iniciativa muito legal porque une a comunidade. Depois de 50 anos jogar no meio da garotada de 15 e 16 anos é uma satisfação”.
Everaldo, o cartola, destaca vários impactos do campeonato para a comunidade, desde a integração entre os vizinhos e a prática esportiva à movimentação do comércio local e geração de renda.
Sem grandes patrocinadores, a competição depende do autofinanciamento dos jogadores que pagam pelo uniforme e uma taxa de 120 reais por jogo para contratação de arbitragem, massagista e outros custos.
E é com o mesmo compromisso dos atletas que o Campeonato Argentino ajuda também na festa de Ano Novo de Buenos Aires. Cada jogador se compromete a vender ou comprar uma rifa valendo uma moto. A renda é revertida na compra de fogos de artifício e demais preparativos para o Reveillon.
No novo ano que virá, um novo sorteio dirá qual clube defender. E assim segue o toco y me voy do Campeonato Argentino de Buenos Aires de Guarapari (ES).