A estátua do Índio Condá

O dia em que o River conheceu o Índio

No estádio que homenageia o cacique Condá, a Chapecoense pôs o poderoso time argentino nas cordas — e mostrou que não é apenas uma zebra vivendo um breve momento de euforia

Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo
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15 min readNov 11, 2015

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POR LUÍS FELIPE DOS SANTOS

Uma terra de caingangues passou a ser cobiçada pelos pecuaristas que residiam em Guarapuava, no Paraná, pelos seus largos campos vicejantes para o gado. Os campos de Palmas também eram o cenário ideal para a construção de uma estrada que ligasse Guarapuava às Missões, no Rio Grande do Sul; porém, as picadas eram objeto de conflito entre indígenas e lusodescendentes. Nesta época — meados do século XIX — não existia um consenso internacional sobre os campos de Palmas: eles eram terra de litígio entre Espanha e Portugal, depois entre Argentina e Brasil.

Uma das lideranças estabelecidas na região era o cacique Condá, chamado de Vitorino Condá pelos imigrantes europeus: ele pediu para que os caciques parassem de atacar as tropas de pecuaristas que tentavam abrir as picadas. As picadas tornaram-se uma estrada, chamada Caminho das Missões, em 1845. Em 1895, o presidente norte-americano Grover Cleveland decidiu que a região de Chapecó não pertencia à Argentina, mas ao Brasil; uma guarnição militar brasileira já estava firme no território, e os imigrantes de ascendência lusitana, alemã ou italiana já ocupavam as terras que outrora foram dos kaingang.

Anos depois, teria início a questão do Contestado, que daria origem à guerra homônima — para além de uma luta entre Santa Catarina e Paraná pela posse da terra, estava a exploração do caboclo, o desengano da República e a iniciativa de Hermes da Fonseca de resolver questões sociais na base da baioneta.

A Arena Condá, antes de Chapecoense x River Plate.

A Rua Clevelândia é um dos limites da Arena Condá, doravante Estádio Índio Condá, casa que abriga os jogos da Chapecoense, associação de futebol fundada em 1973. Cento e vinte anos depois, argentinos de todas as províncias chegaram a Chapecó para resolver outra “questão de limites”: entre Chapecoense e River, somente um passaria adiante na Copa Sul-Americana.

A vida ao lado do palco

Janga, o histórico

“Nem o mais otimista dos torcedores poderia prever isso”. A frase é compartilhada por dois personagens do clube, um histórico e outro que está construindo a história.

Janga, o histórico, foi batizado como Jandir Moreira dos Santos. Jogou na Chapecoense entre 1976 e 1986 e ganhou dois títulos catarinenses — um deles tirado no tapetão. “Eu fui campeão aqui, dando meu suor, na beira do campo. Aí eles vieram aqui e tiraram a taça, na mão grande. Agora o Figueirense foi lá e fez a mesma coisa”. “Eles” são o Joinville, time que criou uma dinastia no futebol catarinense nos anos 80 e que ganhou um dos títulos da Chapecoense (em 1978) depois de uma disputa conturbada nos tribunais.

Janga aposentou-se em Chapecó e abriu uma lanchonete no centro da cidade, o Janga Dog, ao lado da esposa Elenir. Há dois anos, foi chamado pela direção da Chapecoense para transformar o restaurante em barraquinha e trabalhar dentro do estádio. “Para nós é muito melhor. Eu tenho 61 anos, a Elenir ficou um tempo doente (câncer de mama, está na fase da remissão), aqui é bem mais tranquilo. Antes nós ficávamos a madrugada toda, fechávamos às 8h da manhã. Não tenho nada a reclamar da Chapecoense. O clube nunca me abandonou, em todo esse tempo, sempre me ajudou muito”.

Até hoje, Janga é reconhecido pelos atletas e pelos torcedores da Chapecoense, pelo seu histórico no clube. Lamenta o fato de que o futebol, na sua época, não dava o mesmo dinheiro de hoje.

“O que eu ganhei pelo título catarinense? Uma taça para levantar. E só. Hoje, com a grana que esses caras ganham, eu jogaria só dois anos. Olha quantos jogadores da nossa época ficaram sem nada! Mesmo os que passaram pelo Grêmio, pelo Internacional…”

E ele aconselha os jovens de hoje? “Esses aí têm outra cabeça. São muito mais espertos, muito mais inteligentes, sabem guardar dinheiro, sabem se manter na vida”.

Janga é o quarto, no alto, da esquerda para a direita. (Origem da foto)

O casal não sabe quantos cachorros quentes vende por jogo. Sabe, porém, que o horário preferido é o das 18h30 no domingo — às 11h a venda é pior, diz Elenir. “Aqui ainda tem a tradição gaúcha do churrasco, o pessoal vai comer em casa”, diz.

Mauro Stumpf, o gestor

O outro personagem é Mauro Stumpf, vice de futebol da equipe desde 2011. Stumpf foi um dos responsáveis pela ascensão meteórica da Chapecoense da Série D para a Série A, com direito a passagem pela Sul-Americana e chance de Copa Libertadores. “Nem o mais otimista dos torcedores poderia acreditar”, ele afirma.

“Todos nos perguntam qual é o segredo da Chapecoense. Eu só consigo enxergar credibilidade, seriedade e trabalho”.

Desde o início da gestão do presidente Sandro Palaoro, a Chapecoense adota um sistema de gestão compartilhada. “Dizem que o Santos pegou esse sistema do Barcelona. Mas nós aplicamos ele há quatro anos!”, afirma Andrei Copetti, diretor de marketing. As decisões são tomadas por um colegiado de oito gestores, do qual participam presidente e vice do conselho deliberativo. A austeridade financeira também é adotada pela equipe. “No início do ano, o financeiro me diz que eu tenho X para gastar. E eu tenho que me virar com isso pelo resto do ano. Não tem mais nem menos”, afirma Stumpf, que é sócio-gerente de uma empresa de importação. “Essa é a vantagem da nossa gestão: todos são empresários, estão acostumados com metodologia de gestão nas suas empresas. Não foi difícil transportar isso para a Chapecoense”, diz Copetti.

Mauro sonhava em ser jogador de futebol, mas não conseguiu. “Eu era de família pobre. Meu pai exigia que eu dividisse a bola com o serviço, e teve uma hora que não deu mais para fazer isso”. Jogou, porém, por vários anos futsal na Associação Chapecó, antes de se tornar o importador do energético Shark. Entrou na Chapecoense em uma situação complicada: o clube só não caiu para a Série B do Catarinense em 2010 porque o Atlético Herrmann Eichinger, de Ibirama, desistiu da competição. Em 2011, o presidente e empresário do ramo de frutas Sandro Palaoro assume e coloca Mauro no departamento de futebol, ao lado de outros dois ex-boleiros: Cadu Gaúcho, ex-jogador da Chapecoense recém aposentado, e João Carlos Maringá, um jogador histórico do futebol catarinense nos anos 80.

“Nós não temos uma equipe de olheiros que repassa informações para o departamento de futebol e faz a triagem. Nós mesmos procuramos os jogadores. Estamos sempre assistindo aos jogos e trocando mensagens: ‘Viu esse? Viu aquele? O que acha? Pode servir?’. Ontem mesmo estava assistindo Huracán e Defensor”, disse Mauro, no dia da partida histórica para a Chapecoense.

A cidade, calma

Chapecó é uma cidade com ruas planejadas, de traçado xadrez, e a Arena Condá fica na zona central do município. As ruas ali são bem limpas, a terra é bem vermelha, as pessoas param nas faixas de pedestres e o tráfego é intenso para uma cidade de 200 mil habitantes. “É muita gente com dinheiro aqui. Tem muito carro para poucas pessoas”, diz um morador veterano. Um dos horários de pico é às 12h, quando vários dos trabalhadores saem — de carro — para almoçar nas suas casas.

Barcelona atrás, Chapecoense na frente.

Também por isso, apesar do grande número de camisetas da Chapecoense nas ruas, o clima de jogo não era intenso na manhã e na tarde que antecediam ao conflito histórico. Em um determinado momento, as camisetas do River eram mais presentes no entorno da Arena Condá; muitos torcedores millonarios saíram de Misiones de madrugada e chegaram muito cedo em Chapecó. Entre as 10h e as 15h, era normal encontrar um torcedor do River desavisado entrando em qualquer portão entreaberto da Arena Condá, à procura da bilheteria. Alguns ficavam para conhecer o gramado onde seria a partida.

Entre esses estavam um engenheiro e três professores. Saíram de Misiones a 1h e chegaram às 6h em Chapecó, ficando hospedados no hotel Eston. No Almasty, ao lado do Eston, eram tantos torcedores do River que eles se sentiram à vontade para colocar os trapos nas janelas. “Ih, se a Torcida Jovem vê isso aqui…”, disse um dos funcionários do hotel. Talvez por coincidência, uma obra impedia o tráfego na faixa da Avenida Nereu Ramos onde ficavam os dois hotéis. Por prudência, o River se hospedou em São Carlos, uma cidade que fica a poucos quilômetros de Chapecó.

Os primeiros torcedores do River a chegar no estádio

“Nós gostamos muito da cidade. As pessoas são muito solícitas, simpáticas, ajudam sempre. Tem aquela rivalidade normal, aquelas piadas com argentinos, mas o clima é muito amistoso”, disse um dos professores. “E o estádio é lindo! O campo está muito bem cuidado”, disse outro deles. Eles costumam acompanhar o River sempre. “O time mudou muito de 2011 para cá (ano em que o River caiu para a segunda divisão). Mudou a direção, que contratou jogadores melhores, mas especialmente a filosofia de trabalho. O time do Gallardo não se entrega, é mentalmente muito poderoso”. Será que dá para ganhar o Mundial?

“Sem dúvida! O Messi treme quando vê essa camisa!”

Nahuel, um estudante de 22 anos também de Misiones, chegou à Arena Condá com uma camiseta do Milan. Estava curioso para saber mais sobre a importância da Chapecoense. “Seria Inter, Grêmio e Chapecoense a ordem, é isso?” “Não, a Chapecoense é de Santa Catarina”, respondeu um torcedor.

“Como essa gente é educada!”, disse dona Elenir, ao lado de Janga.

Os torcedores do River que circularam pela cidade puderam turistar: comer nos restaurantes locais, conhecer os pontos principais, comprar produtos da região. Ali pelas 17h, a liberdade foi cerceada: duas lonas gigantescas foram colocadas entre dois acessos da Arena Condá e os torcedores de branco e vermelho foram orientados a não sair dali, a pedido do chefe de segurança. “Senão vira casa da mãe joana!”, disse um dos seguranças.

Não existiam ambulantes no local — como em todo o entorno da Arena. As pessoas abriam o porta-malas dos seus carros e instalavam a churrasqueira e o freezer com cerveja. Apenas dois ou três bares estavam abertos para receber os torcedores da Chape. Os visitantes que chegaram cedo demais tinham que aguardar a abertura dos portões.

Sertanejo universitário, porta-malas abertos, cerveja e churrasco.

A cidade, em chamas

O time juvenil de vôlei feminino da Unoesc/Chapecó treinava no ginásio Ivo Silveira às 17h15 da tarde de Copa Sul-Americana. As meninas eram acompanhadas pelos seus pais e por alguns meninos do time de vôlei masculino, que aproveitavam o treino para descansar, brincar e combinar as saídas. Ao final do treino, saíram quase todos juntos do ginásio em direção a uma lanchonete local; para fazer isso, passaram pelas duas lonas que impediam a visão dos torcedores do River Plate.

Uma mãe, com o filho pequeno, tentou buscar a filha de carro e demorou para perceber que não teria onde estacionar. As casas que ladeavam a Arena Condá estavam tão isoladas quanto os hinchas do River. Uma banda tocava bumbos, murgas e taróis enquanto o sol começava a se pôr. Ao lado do ginásio, já com as luzes desligadas devido ao final do treino, torcedores uniformizados combinavam a distribuição de sinalizadores para a chegada do time.

Uma das lonas

“Em tantos jogos ruins nós viemos, e no jogo mais foda a gente vai ficar de fora”, lamentaram adolescentes, com a camisa da Torcida Jovem, que não poderiam pagar os ingressos de três dígitos. Antes da noite chegar, eles já haviam deixado o entorno do estádio.

Torcedores do River ocupando o entorno do estádio

Maurício Silva, ambulante, estava confiante na vitória da Chapecoense. “Um cinco a zero não sei, mas um quatro a zero pode ser”, brincou.

“Qualquer torcedor do mundo que vier aqui vai se sentir em casa. Chapecó não é de confusão, aqui é um povo ordeiro”.

E os ingressos caros? “Por mim, o ingresso poderia ser R$ 500. Eu sou sócio, tranquilo! O cara que é sócio apoia a Chapecoense, vai a três, quatro jogos por mês e não esquenta a cabeça”. Outro torcedor concorda: “Acho que a Chapecoense está no caminho certo, com o plano de sócios. Quem vem só em jogo bom tem que pagar mais caro”.

No momento em que abriram os portões, cerca de três mil ingressos ainda estavam à venda. Durante o jogo, espaços vazios eram visíveis nos setores da geral e das sociais.

Esse grupo de amigos acompanha a Chapecoense desde os anos 80. Alguns torcem para outros times, também.

“Esse aqui jogou no juvenil da Chapecoense. Nos anos 80. E é colorado.”
“Ex-colorado”, me corrige ele. “Hoje, só apoio a Chape”.

Música alta, bebida nos carros, drones voando, foguetes espoucando por todos os lugares e uma distribuição de sinalizadores às escondidas na entrada do ônibus do clube. A noite chegou com a expectativa e a esperança de uma grande vitória; as pessoas chegaram em casa, vestiram suas camisetas verdes e foram para bares, ruas e o estádio; a cidade virou um grande teatro para o espetáculo da Chapecoense e da sua torcida.

A festa

“Com apenas oito anos de idade, a algazarra produzida no interior do Fortim de Atalaia, ao ataque persistente dos Camés e Dorins, naquele ponto distante e remoto da imensa província de São Paulo, angustiava o pequeno Vitorino. Ao menino causava assombro seguir com o olhar curioso e amedrontado o rastro deixado pelas flechas incendiárias riscando a escuridão do céu que, auxiliados pelos guerreiros Kaingang, buscavam com galhardia defender aquele ponto avançado da frente branca de ocupação”. (Marco Aurélio Nedel — no livro Condá: o imperador do Oeste)

Na noite daquela quarta-feira não tínhamos as flechas incendiárias nem índios kaingang, mas tínhamos os sinalizadores; Chapecó não era o Fortim de Atalaia, e a província de São Paulo já não é mais tão grande assim. O olhar curioso e amedrontado deixado pelos meninos e pelas meninas que acompanhavam a chegada da Chapecoense no ônibus existia, entretanto; dividia espaço com a excitação absurda dos jovens, das jovens, dos senhores, das senhoras, saudando a delegação verde e branca como se fossem os maiores caciques rumo ao campo de batalha. Naquele momento, Chapecó se ouviu e fez ressoar um grito de guerra, que só silenciaria com os aplausos posteriores ao apito final.

“Vamos ganhar Chapeeeeeeee”

William Barbio era um dos únicos jogadores da Chapecoense que podia ser visto ao lado da janela. Tentava mostrar que estava concentrado, mas não conseguia esconder com os olhos o susto ao ver aquela festa toda; Giba, assessor da Chapecoense, tentava filmar tudo de dentro do ônibus, enquanto o motorista tomava cuidado para não atropelar ninguém.

Caixões com a faixa vermelha do River com a inscrição “B” apareceram: três, ao todo. Também apareceu ele, o fantasma da B, o personagem que parou um jogo da Libertadores da América neste ano e que ainda causa furor entre todos que se vestem de Boca Juniors no coração.

O procedimento normal em uma chegada de ônibus com fumaceira e festa é: os torcedores cercam o ônibus pelas calçadas, o ônibus entra no complexo do estádio, a polícia impede os torcedores de levarem o ônibus até o complexo do estádio, alguns torcedores sem sinalizadores aplaudem e gritam para os atletas e eles entram no corredor que dá acesso ao vestiário.

Claro que não era um jogo normal. As três organizadas (Guerreiros do Verdão, Torcida Jovem e a Barra da Chape) levaram os jogadores até A PORTA do vestiário. Com sinalizadores, bumbos, fantasma e pelo menos umas 800 pessoas ao redor.

Aquela luz ali é a porta do vestiário

As torcidas carregaram toda aquela emoção para dentro do estádio. O teatro saía da contemplação e tomava uma forma de caldeirão; os espaços vazios das arquibancadas verdes eram maiores na torcida do River, silenciosa pelo excesso de confiança na classificação e pelo atraso de dois ônibus que vinham de Buenos Aires.

Diretores e funcionários da Chapecoense recebiam com carinho os jornalistas estrangeiros, a diretoria do River e vários visitantes ilustres — como o ex-presidente do Inter e hoje empresário de futebol Fernando Carvalho, que desceu dos camarotes e foi para as sociais durante a partida.

A estrutura improvisada, entretanto, mostrou falhas. Insetos de todos os tipos atacaram as cabines de imprensa. Jornalistas da ESPN argentina, que chegaram atrasados, ficaram ao meu lado em uma tenda escura com apenas algumas tomadas funcionando — claramente irritados, foram orientados a buscar uma posição melhor e mais iluminada. Enquanto isso, as vozes verdes se aqueciam para a peleja.

Extintores de cor esverdeada saudavam a chegada dos 11 da Chapecoense que iriam enfrentar o campeão da América. A sorte estava lançada.

A peleia

Bruno Rangel tem 33 anos de idade, 1,81 de altura e é o único jogador da Chapecoense que tem uma bandeira com a sua imagem na torcida.

O matador

O motivo da bandeira é histórico: ele fez 31 gols pela Chapecoense na Série B do Campeonato Brasileiro de 2013. O gol que decretou o acesso, inclusive, foi dele.

Depois da Série B, Rangel foi ao Al-Arabi, do Catar, onde fez dois gols em sete jogos e um pé de meia para boa parte da vida. Voltou no meio da Copa do Mundo de 2014, sob aplausos e esperanças.

No Brasileiro de 2015, Rangel é responsável por 28% dos gols da Chapecoense — percentual que o deixa em 4º lugar em importância de um artilheiro para o time, segundo o FutDados. Nada mais justo que ele tenha sido o responsável pelos dois gols do Verdão do Oeste contra o River Plate.

Era também o 100º jogo de Bruno Rangel com a camiseta da Chapecoense. Com os dois gols, ele ficou a oito de alcançar o maior goleador da história do clube — cujo apelido, por sinal, é Índio.

“Vai ficar marcado para sempre na minha vida”, disse Bruno Rangel.

Não só na vida dele.

Quando a bola começou a rolar, a Arena Condá mostrava uma faceta um tanto quanto diferente das grandes noites de Copa pelos estádios da América do Sul, mas bem peculiar do local. Famílias inteiras se reuniram, encontravam colegas de trabalho, vizinhos, colegas de escola e até mesmo velhos conhecidos que há muito não se viam.

Nas sociais, um espaço grande separava o último degrau das arquibancadas do alambrado. No alambrado, jovens e torcedores mais fanáticos aproveitavam para xingar os árbitros e os atletas do River Plate. Alheias a isso, crianças corriam pelo largo espaço, pulando corda, desfilando tênis de luzinhas e brincando de esconder.

Família

Entre crianças que ignoravam, espectadores que desfrutavam e torcedores que torciam, o ambiente da Arena Condá se tornou inóspito aos visitantes. O silêncio dos momentos de ataque do adversário contrastava com o barulho ensurdecedor dos momentos de perigo, o calor, os insetos e as músicas das charangas.

Quando a Chapecoense fez o segundo gol, o River Plate foi para as cordas. Marcelo Gallardo tentava invadir o campo, orientando seu time a defender com concentração. Os cruzamentos se multiplicavam, as chances também, Barovero fazia milagres, a trave também. “Não era para ser”, disse um torcedor quando uma bola bateu no travessão aos 43 minutos do segundo tempo. Talvez não fosse mesmo.

Mesmo com um time extenuado e uma torcida incrédula no que acabava de ver, o River Plate saiu da Arena Condá classificado. A classificação, entretanto, não impediu uma miríade de aplausos dos torcedores verdes.

“Aquela bola do Túlio no final do jogo foi cruel demais. Ir para os pênaltis seria muito legal”, disse o técnico Guto Ferreira, ao lado de uma coruja, na sala de imprensa. “Se salvó de milagro”, disse o Diário Olé. No le sobró nada”, completou o La Nación.

A história estava escrita.

Epílogo

Eli Maria Bellani, mestre em história, trabalha na Chapecoense em convênio com a Unochapecó. Seu objetivo, nesse trabalho, é resgatar toda a documentação da história da Chapecoense e do futebol de Chapecó, a fim de construir um belo memorial para o clube.

O livro “O futebol e a ocupação do espaço social em Chapecó”, de sua autoria, conta através da história dos clubes e dos fundadores como que o futebol surgiu na cidade de Vitorino Condá. Em 1917, resolvida a “Questão de Limites” que proporcionou a criação do município dentro das fronteiras de Santa Catarina, uma delegação de funcionários públicos é enviada de Florianópolis para constituir a comarca; dois anos depois, em 1919, surge o “Club Passo Bormann Foot Ball”, dirigido pelo jornalista e delegado de polícia José Curió de Carvalho.

O futebol amador mobilizava a população, mas os clubes eram muitos; a maior identificação aconteceu em torno de Atlético Chapecó e Independente, que chegaram a fazer um clássico local. Em 1973, a cena amadora local arrefeceu, e os dirigentes desses clubes (Alvadir Pelisser, Heitor Pasqualotto, Altair Zanella, Lotário Immich e Vicente Delai) resolveram formar a Associação Chapecoense de Futebol.

Zanella foi de ônibus até Buenos Aires para assistir ao primeiro jogo entre Chapecoense e River Plate. Aos 74 anos, percorreu 1,3 mil quilômetros para assistir à peleia.

A Chapecoense não é apenas uma zebra que chegou a um grande momento no futebol: é um clube que respeita, apoia e valoriza a sua própria história, e que a constrói com paixão, com inserção na comunidade e com apoio científico.

Nenhum clube sobe quatro divisões por acaso.

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