Ronaldo, lateral-direito do Brasil na Olimpíada de 1984, exibe a medalha de prata conquistada em Los Angeles. Foto: Bruno Graziano/Reprodução

Ouro olímpico: vida e obra de uma obsessão

A história de uma sina chamada “único título que falta ao futebol brasileiro”

Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo
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22 min readAug 2, 2016

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POR PAULO SILVA JUNIOR*

Ronaldo apertou a passada para invadir a área pelo lado direito do ataque brasileiro. No mínimo puxaria a marcação, daria uma opção de passe ou aproveitaria um rebote. Mas um cruzamento errado o encontrou no tempo certo, com espaço e apoio ideais para a finalização de primeira, chute rasteiro, cruzado, para marcar o gol garantiu a primeira medalha olímpica para o futebol brasileiro.

Ronaldo é Ronaldo Moraes, o único Ronaldo que vestiu a camisa amarela numa final olímpica de futebol. E olha que a concorrência é pesada para o lateral-direito medalha de prata em Los Angeles, 1984. O Fenômeno, então Ronaldinho, capa de revista com uma nota de dólar projetada ao corpo, titular na mais famosa derrota da amarelinha na história dos Jogos, chegou no máximo ao bronze em 1996. O Gaúcho, numa rara carreira com duas edições de Olimpíada no currículo, acabou protagonista da derrota em 2000, e repetiu o bronze do amigo após ser atropelado num clássico em 2008.

A campanha da primeira prata é também a primeira em que a Seleção Brasileira conquistou resultados relevantes na disputa olímpica. Até então, com competições exclusivas para amadores, o Brasil havia participado de seis edições entre 1952 e 1980, sempre parando em camisas pesadas de Copa do Mundo ou nas equipes do leste europeu, que levaram todos os títulos neste período.

Em 1984, quando o Comitê Olímpico Internacional (COI) decidiu pela inclusão de profissionais nos Jogos desde que não tivessem participado de uma Copa do Mundo, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) não tinha — novidade! — um projeto para a formação de uma seleção. Ou melhor, tinha uma solução mais fácil: levar a base de um grande time brasileiro. O Fluminense, primeiro convidado e campeão brasileiro daquele ano, não conseguiu adiar seus compromissos com a Federação Carioca, que não queria ver o Tricolor escalando juniores nos jogos locais. E o escolhido acabou sendo o Internacional, com 11 jogadores no elenco final de 17 comandados por Jair Picerni.

“Eu fiquei surpreso, porque cogitavam o meu nome, mas já se falava muito da posição da CBF de levar uma base. Era minha primeira convocação para uma seleção brasileira, e o time titular, desde o início, era o Internacional e mais eu, o Gilmar Popoca (Flamengo) e o Tonho, que era do Grêmio, mas estava emprestado para o Aimoré. O time mudou pouco, a única briga por posição de verdade era entre o Chicão, da Ponte Preta, que começou jogando, e o Kita, centroavante do Inter”, conta Ronaldo Moraes à reportagem.

O futebol não era o grande destaque da cobertura olímpica. O caderno de Esportes da Folha de S. Paulo em 30 de julho de 1984, por exemplo, deu manchete à prova dos 400m medley e a chance de ouro do nadador Ricardo Prado — ele ficaria com a prata mais tarde, perdendo a disputa para o canadense Alex Baumann, que alcançou um novo recorde mundial na final. Como desde aquele tempo a bola já não parava de rolar no Brasil, a capa ainda tinha a virada do Corinthians sobre a Portuguesa e os gols de Serginho na vitória do Santos contra o Botafogo em Ribeirão Preto, durante o começo de Campeonato Paulista. O Estadual do Rio de Janeiro também seguiu normalmente, e no Gaúcho o Internacional estreou em 25 de agosto, duas semanas depois da final nos Estados Unidos.

A preparação foi confusa, especialidade da casa. Na edição de 1 de julho, a 30 dias da estreia, a Folha estampava: “Inter deve ser base da seleção e Picerni pode perder o cargo”. O clube gaúcho estaria exigindo que o treinador fosse Otacílio Gonçalves, além de uma compensação financeira em razão de uma excursão já marcada. De uma lista de 40 jogadores reunidos 40 dias antes, Picerni manteve poucos nomes, e alguns dos excluídos chegaram a ficar aliviados com o corte. No anúncio dos 22 que treinariam em Porto Alegre, Picerni admitiu que só dias antes o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) havia sido informado sobre o critério de não poder convocar jogadores cujos nomes haviam sido enviados para a FIFA nas Copas do Mundo. Do frio de julho no Rio Grande do Sul, o que contrastava com o calor esperado em Los Angeles, a delegação ainda passou uns dias em Vitória, no Espírito Santo, antes de embarcar com o elenco final.

Revista Placar, agosto de 1984.

Ainda que o sucesso da SeleInter, como ficou conhecida, fosse uma incógnita, e a fase de treinos durasse nem duas semanas, havia um certo otimismo principalmente pela presença da base de um dos melhores times do país, do fim da era dos amadores, que havia consagrado a Cortina de Ferro, e também pela ausência dessas seleções — URSS, Polônia, Hungria, Bulgária e a então campeã Tchecoslováquia, fruto do boicote do bloco aos Jogos de 1984.

Na primeira fase, o Brasil correspondeu vencendo a Arábia Saudita por 3 a 1, a Alemanha Ocidental por 1 a 0 e o Marrocos por 2 a 0. Nas quartas de final, uma surpreendente dificuldade contra o Canadá. O Brasil saiu atrás e empatou com Gilmar Popoca, artilheiro do time, para passar sem gols pela prorrogação e avançar nos pênaltis. Aí viria a partida que credenciou aquele time a ser reconhecido mesmo sem o título.

“Contra a Itália se falava muito que seria uma revanche”, lembra Ronaldo. Eram dois anos e um mês do jogo no Sarriá, os 3 a 2 de Paolo Rossi contra uma seleção que em pouca coisa parecia a que vestiu a camisa amarela no Estádio de Stanford, na Califórnia. “Comparar as seleções seria até covardia. Não que nosso time de 1984 fosse ruim, mas ele tinha muita força, enquanto o de 1982 era muito mais técnica”.

Gilmar Popoca, sempre ele, abriu o placar no segundo tempo de um jogo pegado, cujos melhores momentos disponíveis na internet reservam um chute em jogador caído e uma cotovelada em boca do estômago fora do lance. Fanna empatou na sequência, e Ronaldo, no início da prorrogação, garantiu o 2 a 1. Se o Brasil tinha futuros jogadores de Mundiais, como Gilmar Rinaldi, Mauro Galvão e Dunga, os italianos tinham Franco Baresi e Daniele Massaro, que reencontrariam o Brasil na final da Copa de 1994.

Na decisão contra uma França descrita por Ronaldo como um time “muito bom tecnicamente, muito certinho e muito agrupado”, o Brasil perdeu por 2 a 0 diante de mais de 100 mil pessoas no Rose Bowl. Diferentemente das últimas medalhas trazidas pelo futebol de 1996 para cá, porém, aquela primeira não foi condenada ao fracasso, ao ouro perdido. Pelo contrário.

“Não me recordo de ter essa pressão pelo ouro. Após o jogo, perfilado, vendo a alegria da França, você sente uma tristeza muito grande, perder é sempre duro. Mas quando chegamos ao Brasil não senti nenhum tipo de cobrança, mas sim reconhecimento. Foi um trabalho legal, muito curto, e chegamos na final”, finaliza.

A própria repercussão do dia seguinte — dividindo espaço com uma geração de prata mais famosa, a do vôlei masculino — também ressaltava que esse grupo de jogadores tinha ido longe demais para a importância dada pela CBF, que perdeu a chance de testar mais nomes com potencial para o Mundial de 1986. “Um brilho, no peito — nosso futebol driblou a incompetência dos dirigentes, atravessou a dureza do torneio e ainda subiu ao pódio”, era a chamada da Placar seguinte aos Jogos.

Suécia x Inglaterra, 1912: Foto: Biblioteca do Congresso

A briga eterna

Quando Pierre de Coubertin criou o COI, em 1894, a Federação Inglesa de Futebol já tinha 30 anos completos. O esporte fazia, claro, parte dos planos dos Jogos Olímpicos da Era Moderna. Ainda assim, não houve bola rolando na primeira edição, em 1896, já que não apareceram países interessados. As duas edições seguintes (1900 e 1904), além da competição-extra marcada para 1906, contaram com a modalidade em torneios de caráter amistoso, não muito reconhecidos e com poucos países participando, geralmente com representantes como o Galt FC, universidade canadense que levou o ouro para o país em St. Louis, nos Jogos de 1904.

Na edição seguinte, em Londres, o torneio de futebol teve caráter oficial. Um acordo estabeleceu que as regras seriam as adotadas pelo país sede e o título vai para a Grã-Bretanha. Já naquela época teve início o debate: o futebol deve ou não participar do programa olímpico?

“Isso começa em 1912. O COI, formado pela aristocracia da época, queria que os jogos fossem para os aristocratas. E o futebol, por já ser muito popular em vários países naquele momento, começa a atrair gente que não é da aristocracia, claro. Então o COI se reúne para tratar disso. Vem a I Guerra Mundial, o futebol retorna em 1920 junto com a Olimpíada, e chega em 1924 a Paris, já na época dos grandes estádios, atraindo muita gente. Isso passa a ser rentável para o COI, ainda que o Comitê em vários documentos de vários momentos deixe claro que a questão financeira não importa, e sim a manutenção do espírito olímpico. O espírito olímpico está pautado na visão do COI em manter aquele ambiente restrito. O que é ter espírito olímpico? Ter espírito olímpico nada mais é que ter tempo livre para praticar esporte. Ou seja, aquele que trabalha não vai acessar isso”, explica o professor Sérgio Giglio, da Unicamp, cuja tese de Doutorado na Universidade de São Paulo (USP) tratou exatamente do assunto.

O Brasil ficou fora desse momento inicial. Em 1920, o país mandou seus primeiros atletas aos Jogos, mas no futebol os registros são de uma intenção que ficou apenas na vontade, principalmente pela curiosidade por medir forças diante de Uruguai e Argentina. Sem verba, a seleção olímpica brasileira foi sendo adiada enquanto a Celeste, bicampeã nos anos 1920, ganhava e encantava.

A briga entre COI e FIFA continuou, sempre em torno do controle da modalidade Em 1925, um congresso em Praga mostrava a divergência entre as entidades no momento se discutia o amadorismo. Um técnico remunerado, por exemplo, não podia treinar uma equipe olímpica, já que isso feria o conceito de “amador” da época. A FIFA se mostrava a favor da “compensação por perda de salário”, ou seja, o empregado que se afastava para competir no torneio de futebol, por exemplo, deveria receber uma recompensa por deixar os ordenados em seu país. Já o COI achava isso absurdo e desejava um evento apenas com atletas amadores. Na sequência, numa nova reunião da FIFA já no final dos Jogos de Amsterdam, em 1928, a entidade firmou posição e criou a Copa do Mundo, um torneio tanto para amadores quanto profissionais. O COI aceitou a decisão, mas tirou o futebol dos Jogos de 1932, enquanto o Mundial de 1930 — sediado no Uruguai em homenagem ao atual bicampeão olímpico e diante da crise financeira na Europa — e de 1934 aconteceram sob grande sucesso.

O COI, que não é bobo desde aquela época, fez o futebol retornar em 1936, com o Comitê inserindo uma nova determinação: competições do tipo Copa do Mundo, isso para todos os esportes, nunca deveriam acontecer no mesmo ano da Olimpíada. E assim seguiram, como dois irmãos brigões cada qual no seu canto. Mundial para todos, a cada quatro anos, Olimpíada para amadores, também a cada quatro anos, e que um não pegasse o lugar do outro.

Brasil, 1952. Foto: Arquivo Público do Estado de São Paulo

“Em 1936, tem uma partida entre Áustria e Peru que termina empatada em 2 a 2 e na prorrogação o Peru vence. Durante a partida, um torcedor invade o campo e dá um chute num austríaco. A Áustria, depois do jogo, pede para que a FIFA reconsidere o resultado, dizendo que um torcedor peruano chutou um jogador e essa ação interferiu no jogo. A FIFA, uma entidade eurocêntrica, monta uma comissão e decide que a partida deve ser jogada novamente. O Peru diz que não vai jogar. A FIFA não muda de posição, e o Peru tem uma das atitudes, para mim, mais significativas de como deve ser o posicionamento de um país num evento como esse: se retira por completo, não só o futebol, mas com todos os atletas. O jogo é remarcado, o Peru não vai e a Áustria avança. Não encontrei nada sobre a posição do Brasil, mas o Chile se posiciona a favor dos sul-americanos, o Uruguai também, enquanto a Argentina diz que irá respeitar a decisão da FIFA. Então isso vai dando uma dimensão política do que o futebol representa internacionalmente, não só em Jogos Olímpicos, mas também em Copas e pela presença da FIFA”, narra o professor.

Diante desse modelo de competição excluindo os profissionais, os países do Leste Europeu monopolizaram as conquistas no período. Os jogadores da região, como o húngaro Ferenc Puskas, tinham a vantagem de serem registrados como funcionários públicos, até membros do Exército, para receberem salários e serem jogadores amadores para o regulamento olímpico — em tese, não tinham remuneração proveniente do esporte, o chamado amadorismo marrom.

Se o Brasil, que estreou no futebol dos Jogos em 1952, era uma das vítimas das seleções do bloco socialista, também havia uma forma de driblar a chancela do profissionalismo por aqui. Os chamados contratos de gaveta permitiram que vários atletas, como Gerson, aos 19 anos em 1960, seguissem sem vínculo de emprego com os respectivos clubes ainda que já fizessem parte dos elencos profissionais.

Nesse período, a CBD passou a publicar listas às vezes com mais de 100 nomes de jogadores que não poderiam se tornar profissionais porque estavam nos planos do time olímpico, sendo que muitos deles, em razão da restrição, vinham de times menores — camisas como América-RJ, Bomsucesso e Juventus-SP eram representadas.

Segundo Giglio, que entrevistou para seu trabalho grande parte dos futebolistas brasileiros vivos que já participaram dos Jogos, alguns relataram que a convocação chegou a atrapalhar a carreira nos clubes, já que adiou a presença no time principal.

Dois anos depois do Maracanazo, o Brasil viajou para Helsinque, na Finlândia, com nomes como o goleiro Carlos Alberto Martins Cavalheiro, que era militar assim como Puskas, o atacante Larry, artilheiro do Internacional, Evaristo de Macedo, ainda antes de estourar no Flamengo, e Vavá, que depois seria bicampeão mundial. O time começou goleando a Holanda por 5 a 1, depois passou pela seleção de Luxemburgo, mas caiu nas quartas de final, na prorrogação, diante da Alemanha.

Jornal do Brasil, 1976

Sempre dependente de verbas do governo, a delegação não viajou aos Jogos de 1956. Em 1960, quando pela primeira vez foi disputado um torneio pré-olímpico, o Brasil caiu na primeira fase em Roma mesmo vencendo Grã-Bretanha e China, mas perdendo para a Itália que acabou líder invicta da chave. Na edição seguinte, em Tóquio, nova queda na fase inicial, empatando com o Egito, goleando a Coreia do Sul, e não suportando a forte Tchecoslováquia. Em 1968, na Cidade do México, cenário parecido, com dois empates (Japão e Nigéria) e eliminação no grupo perdendo da Espanha.

A geração seguinte tinha Falcão e Roberto Dinamite em Munique-1972, mas alcançou só um ponto ganho em três jogos, na igualdade frente à Hungria, além de derrotas para Dinamarca e Irã. Em Montreal-1976, pela primeira vez a seleção fez um jogo de medalha, em elenco com nomes que chegariam à Copa do Mundo, como Junior, Edinho e Batista. O Brasil passou pela primeira fase contra Alemanha Ocidental e Espanha, mas perdeu a semifinal para a Polônia e a disputa do bronze frente à União Soviética.

“Os atletas relatam que não havia grande expectativa sobre esse futebol, já que eles queriam mesmo era se tornar profissionais. Então a própria dimensão sobre o que é ser atleta olímpico se perdia diante dessa proibição em termos de contrato e ascensão na carreira de jogador”, avalia Giglio.

Placar, de 1988

As pratas

As restrições seguem, com a FIFA querendo manter uma diferenciação de seu campeonato sobre o do COI. Quando o futebol olímpico precisa respeitar os novos tempos e, finalmente, permitir jogadores profissionais a partir de 1984, os de Copa do Mundo estão vetados. Aí surge a SeleInter, recolocando o Brasil nos Jogos depois de não viajar em 1980 como resultado de um grande fiasco no Pré-Olímpico, um quinto lugar entre sete participantes e a primeira ausência por motivos técnicos desde a estreia.

O regulamento de 1984 foi mantido para 1988, e o time comandado por Carlos Alberto Silva foi para Seul com uma equipe que conquistou a simpatia da torcida, formada por jogadores jovens, em alta nos respectivos clubes, que se tornariam referências inclusive para os Mundiais seguintes: Taffarel, 22 anos, do Inter; Jorginho, 22, do Flamengo; Mazinho, 22, do Vasco; Romário, 22, também do Vasco; Bebeto, 24, do Flamengo.

Última Hora, 1984

Na primeira fase, em setembro daquele ano, a seleção marcou nove gols e passou com três vitórias sobre Austrália, Iugoslávia e Nigéria. Nas quartas, 1 a 0 sobre a eterna rival Argentina, e na semifinal Taffarel garantiu nos pênaltis após empate por 1 a 1 diante da Alemanha. Na finalíssima, o Brasil acordou cedo para vencer o fuso-horário, mas acabou lamentando a medalha de prata na prorrogação do gol de Savichev, encobrindo o goleiro e garantindo o título para os soviéticos.

Numa nova queda de braço de hierarquia e domínio da elite do futebol, o torneio passou a ser sub-23 a partir de Barcelona-92 — a FIFA conseguia, assim, manter o primeiro nível do futebol adulto exclusivo na Copa do Mundo. Aliás, ainda antes, a entidade máxima do futebol, numa das bandeiras de João Havelange, havia criado o Mundial Sub-20, que desde 1977 acontece a cada dois anos, geralmente em países de menor expressão no futebol, intercalando com os Jogos Olímpicos e os Mundiais, e dando o claro recado aos garotos: seja, desde cedo, um atleta FIFA. Mas o Brasil ficou fora dos Jogos na Espanha, o primeiro para jovens, quando fracassou no Pré-Olímpico mesmo com um elenco recheado de figuras como Cafu, Roberto Carlos, Márcio Santos, Marcelinho Carioca e Dener.

Zé Elias exibe a revista Placar. Foto: Bruno Graziano/Reprodução

Ele é perigoso

Zé Elias encontra a reportagem e sorri diante da capa da revista Placar, ‘Os caçadores de ouro’, que ele dividiu há 20 anos ao lado de Dida, Flávio Conceição, Zé Maria e Rivaldo. O ex-volante lembra da pressão antes dos Jogos de Atlanta, em 1996, mas principalmente pelas reportagens, nem tanto no vestiário. “Quando você tem 19, 22 anos, o que você menos pensa é em responsabilidade. E só caiu a ficha que nós tínhamos perdido a medalha quando acabou o jogo contra a Nigéria”, revela.

Medalha, no caso, é sinônimo de ouro. A própria matéria da capa em questão escancarava a expectativa em torno daquele elenco que tinha o então melhor jogador do mundo, Ronaldo, ainda reserva de Zagallo no início, e o que vinha sendo o grande talento do futebol jogado no país, Rivaldo, este último um dos três jogadores acima do limite de idade, junto de Aldair e Bebeto — regra que era inaugurada ali no torneio dos EUA.

“Desta vez o escrete entra em campo para valer. Terminou a época em que a desorganização dos dirigentes brasileiros, somados ao limites impostos à inscrição de jogadores profissionais, implicavam em que fôssemos representados nos Jogos sempre por seleções improvisadas”, colocava a revista, lembrando que a CBF investiu cerca de 3,5 milhões de dólares no projeto olímpico, mais que todo o recurso do COB para o restante da delegação.

Revista Placar, edição de junho de 1996.

A estreia foi a pior possível. O Brasil perdeu para o Japão, 1 a 0, na famosa trombada de Dida com Aldair. Depois, já com Zé Elias e Ronaldo entre os titulares, venceu a Hungria por 3 a 1 e a Nigéria pelo placar mínimo, um golaço do camisa 18 que viria a ganhar a Bola de Ouro da FIFA no final do ano. No mata-mata, a seleção levou sustos, mas venceu Gana de virada. E a semifinal, o reencontro com os nigerianos, deu no que deu.

“A gente sabia da concentração que tinha de entrar, tanto que o primeiro tempo virou 3 a 1 para a gente, mas podia ser cinco. E tinha uma brincadeira com o Rivaldo, porque a projeção dele era ser o melhor jogador da Olimpíada, mas ele caiu de produção, num imbróglio de ir para o La Coruña ou não. E nesse jogo ele falou: minha fase está tão ruim, que se eu entrar é perigoso a gente perder. O técnico da Nigéria colocou o time para a frente, deixou bem ofensivo, e nosso time naturalmente voltou para segurar. E o Rivaldo entrou, mas no primeiro lance perdeu a bola e saiu o gol deles. Eles fizeram 3 a 2 e no finalzinho empataram com méritos. Arriscaram e funcionou. Na prorrogação, eu lembro que estava próximo do Aldair, mas aí o Kanu domina, tira, faz o gol e acaba”, lembra Zé Elias.

A famosa narração de Galvão Bueno, cantando o “ele é perigoso” instantes antes do gol decisivo do atacante nigeriano do Ajax, ajudou a eternizar umas das mais lembradas derrotas da seleção brasileira em toda a história. Não só para quem assistiu, mas refletida também na cobrança sofrida pelo elenco antes do jogo do bronze.

“O Zagallo veio, deu as instruções, e o Ricardo Teixeira, presidente da CBF, falou: vocês têm obrigação de trazer a medalha de bronze, estamos entendidos? Foi a primeira cobrança direta de que a gente tinha de vencer”, retoma Zé. Em campo, vitória por 5 a 0 contra Portugal.

“Para a Nigéria, a vitória de virada sobre o Brasil teria o mesmo peso de, por exemplo, uma vitória dos brasileiros sobre o Dream Team. O time viajou os 300 quilômetros que separam Athens de Birmingham, local da partida anterior contra o México, de ônibus. Ficou num hotel sem luxo, cada jogador teve que levar sua própria mala para o quarto e, como o restaurante estava fechado, tiveram que se virar com algumas pizzas”, traz a edição seguinte de Placar. As críticas à postura daquele time ainda aumentaram quando os brasileiros receberam as medalhas de bronze após a partida contra os portugueses, numa cerimônia meio improvisada, não comparecendo à premiação após a final com uma frágil justificativa de logística de voo.

Se 1996 tinha tudo para dar certo, o time de 2000 também não fica para trás. O elenco levado por Vanderlei Luxemburgo ficou em primeiro do grupo na primeira fase em Sidney passando por Eslováquia e Japão, mas perdendo da África do Sul. Sinal de alerta ligado e má fase confirmada nas quartas de final, com uma eliminação tão traumática quanto a da geração anterior. Ronaldinho Gaúcho marcou nos acréscimos do segundo tempo para levar a disputa da vaga à prorrogação contra Camarões, mas os africanos marcaram o gol de ouro tal qual os nigerianos de 1996, desta vez com ares de maior heroísmo pelo chute de M’Bami sair certeiro quando a equipe tinha dois jogadores expulsos.

A conquista não veio com Ronaldo, nem com Ronaldinho, mas depois do título mundial em 2002 e de um técnico exclusivo para o time sub-23, não poderia passar de 2004. A convocação de Ricardo Gomes tinha campeões nacionais pelo Cruzeiro — Gomes, Maicon, Dracena, Wendell — e pelo Santos — Alex, Paulo Almeida e, principalmente, Diego e Robinho -, além de outros jovens talentos como Nilmar e Dagoberto. Mas o fracasso seria ainda maior: o time não se classificou no Pré-Olímpico e assistiu de casa a Argentina ser campeã em Atenas.

Na edição seguinte, em Pequim-2008, Dunga escolheu Ronaldinho como o veterano para comandar uma seleção novamente repleta de nomes de categoria como Thiago Silva (já com 24 anos), Marcelo, Ramires, Hernanes, Anderson, Alexandre Pato e Diego. Essa turma passou por Bélgica, Nova Zelândia e China no grupo, sofreu na prorrogação contra Camarões e foi atropelada por 3 a 0 na semifinal para a Argentina de Riqulme, Messi, Di Maria e Aguero, numa atuação apagada e que culminou numa melancólica, mais uma, disputa pelo bronze, vencida por 3 a 0 contra os belgas.

Por fim, mais um capítulo para a lista de “agora vai”, este com Mano Menezes que levou aos Jogos de Londres, em 2012, Thiago Silva e Marcelo como atletas acima dos 23 anos, além de Hulk, os três de nível de Copa do Mundo e titulares no Mundial-2014. Levou também, claro, Neymar, grande estrela da companhia, e mais Ganso, Oscar, Lucas, Damião. Dessa vez a tabela não mostrava Argentina, nem Nigéria, nem Camarões. Não era possível.

Era. A primeira fase de nove pontos para cima de Egito, Belarus e Nova Zelândia não soou como mais que obrigação. No caminho até a final, Honduras e Coreia do Sul. Feito. E o otimismo desabou com um gol sofrido logo no primeiro minuto de jogo em Wembley, depois outro, e medalha de prata com 2 a 1 para o México.

Neymar durante treino para os Jogos do Rio. Créditos: Lucas Figueiredo / MoWa Sports

Quanto vale?

Para o jornalista Luis Augusto Simon, o Menon, autor do o livro Gol de ouro: A história do futebol nos Jogos Olímpicos, a obsessão brasileira pela medalha de ouro é progressiva. Começa em 1988, impulsionada por um gosto de “quero mais” nascido com a prata de quatro anos antes, é impulsionada com a vergonha da derrota de 1996, e assim segue: “Vergonha que se repetiu quatro anos depois, contra Camarões, quando o Brasil tinha dois a mais. Essa Olimpíada foi usada como muleta para Luxemburgo. Ele tentou o ouro para garantir o emprego na seleção principal, o mesmo que Dunga faria agora e que Tite se recusou a fazer. O bicampeonato da Argentina (2004–08) também ajudou na formação da obsessão. E ainda mais ao perder para o México”, escreve à reportagem.

Os ouros argentinos são, de fato, elemento curioso dessa loucura brasileira em relação ao título que jamais veio. “É uma obsessão datada, que se adormece por mais de três anos depois de cada novo fracasso e ressurge avassaladora nos meses antes da Olimpíada. O curioso é que é uma obsessão que nasce e morre no próprio país — nunca, em qualquer situação de discussão de futebol, escutei algo do tipo ‘ah, mas o Brasil não tem uma medalha de ouro no futebol’. Aliás, um exemplo de como essa obsessão é completamente voltada para o próprio umbigo: brasileiro adora dizer que a Argentina não ganhou nada nos últimos 23 anos — e nisso, ‘esquece’ duas medalhas de ouro; a mesma medalha que, quando (e se) o Brasil ganhar será lembrada pra sempre e considerada título importante”, coloca o jornalista Thiago Arantes, que cobriu a Olimpíada em Londres e compara a derrota em Wembley ao nível de uma eliminação de Copa do Mundo. “A febre do ouro acaba cegando a análise, colocando no mesmo saco equipes diferentes. Fica parecendo que o ouro sempre ‘escapou’, quando na verdade ele só foi uma possibilidade real mesmo em 1988, 1996, 2000 e 2012… E em três casos o time foi ao pódio. A busca da medalha inédita tornou-se maior do que a discussão sobre os métodos, a preparação, o mérito dos adversários (na final de 2012, o México foi muito melhor)”.

Tamanha importância dada pelo Brasil, desproporcional se comparada com outras das principais seleções do planeta, se reflete na opção atual de não ter Neymar na Copa América deste ano e optar por guardar a maior referência técnica do time principal para a Olimpíada. Bruno Freitas, repórter que cobriu de perto a Seleção Brasileira no ciclo de Dunga entre 2006 e 2008, acredita que os Jogos atrapalham a formação do time de cima. “Creio que foi sábia a decisão do Tite de se afastar do projeto olímpico. Minha expectativa é de que o Brasil tire isso da lista este ano, com a oportunidade de jogar em casa, para não ter que lidar com essa divisão de frentes em ciclos futuros”.

Curioso que essa opção na relação com Neymar e o Barcelona, clube que não liberaria o atleta para duas competições de seleções em sequência, acontece num momento em que o torneio olímpico viva talvez seu período de menor prestígio. Campeões da Eurocopa com Portugal, ainda que dentro do limite dos 23 anos, não estarão no Rio de Janeiro, assim como as vindas de nomes como Cristiano Ronaldo ou Ibrahimovic não passaram de sondagens. As grandes estrelas do futebol mundial estão completamente alheias ao torneio, ainda que a CBF tenha colocado em Neymar toda uma expectativa exclusiva para os seis jogos até o título que pode vir no Maracanã.

Diante desse cenário de difícil liberação dos times europeus — não são obrigados, outra tacada da FIFA para não prestigiar o torneio — e sequência das ligas de clubes como o Campeonato Brasileiro, que segue normalmente, o torneio olímpico, para muitos, não faz mais sentido. “Deveria voltar mais ao passado, sem inclusão de atletas acima de 23 anos, transformando em sub-20 mesmo. Tirar o futebol do programa olímpico (como muitos pregam, e eu sinceramente não sentiria qualquer falta) não aconteceria, pois a Fifa é filiada ao COI”, afirma o jornalista Tonhão Strini, que acompanhou a seleção na Grã-Bretanha há quatro anos. E esse corpo estranho desde sempre, nas idas e vindas do futebol e suas restrições nos Jogos, alcança também os atletas ouvidos pela reportagem.

Ronaldo, prata em 1984, admitiu que não se reconhece como um atleta olímpico, e que vê a alcunha mais adequada aos outros esportes, mesmo que veja a campanha como um dos momentos mais importantes de sua carreira. Zé Elias, bronze em 1996, também disse que só foi se dar conta do feito muito posteriormente, ao reconhecer na medalha uma conquista que muitos esportistas em todo o planeta sempre desejaram e ele, enquanto futebolista, alcançou. Por fim, o meio-campista Hernanes, também bronze em 2008, escreveu à reportagem sua impressão sobre a presença do futebol nos Jogos.

“Nós sabemos que no futebol existem outras competições que se dá maior importância, como Copa do Mundo, Eurocopa, Copa América, Champions League, Libertadores… Então, na Olimpíada acabam dando mais espaço para outros esportes, que não costumam ter tanta visibilidade quanto o futebol tem durante o ano todo. Mas, ainda assim, nos jogos finais, lembro que fomos para a Vila Olímpica e pudemos desfrutar desse momento de ficar ao lado de esportistas do mundo inteiro.”

Tirar o futebol dos Jogos é impensável, tanto pela filiação da FIFA ao COI, quanto pela questão financeira: um jogo de 90 minutos enche um estádio tanto quanto um dia de atletismo. Concorrer com a Copa do Mundo menos ainda, não há motivos para essa distância ser aliviada pela FIFA, que aliás nem deu corda para mobilizações de atletas do futsal em ver o esporte nos Jogos Olímpicos, enquanto o Mundial da modalidade é visto por cada vez mais gente.

“Penso que se for ter alguma alteração, será sempre no caminho de mais restrições, caso o novo presidente da FIFA queira mexer nessa longa disputa. E eu temo que se ele não conhecer como se deu o processo, talvez cometa alguns equívocos. Agora, acho que os brasileiros vão assistir aos jogos do futebol no Rio muito mais para se fazer presente neste momento histórico, dos primeiros Jogos na America do Sul, que em razão de ser atraído pelo futebol olímpico”, finaliza o professor Sérgio Giglio.

Com grande interesse ou não, escolhendo o motivo favorito — dos títulos do Uruguai, da estreia em tempos pré-conquistas da Copa do Mundo, das frustrações diante do Leste Europeu, da prata da SeleInter, da nova prata de Taffarel e Romário, da vergonhosa virada para a Nigéria, da inexplicável derrota para Camarões, da goleada para a Argentina, do mal futebol contra o México — o futebol na Olimpíada é grande tema por aqui, sempre. Assunto que se fortalecerá no Rio de Janeiro ou ganhará um simbólico ponto final, seja qual for o tamanho disso.

* Essa reportagem contou com a colaboração de produção e pesquisa da equipe do Museu do Futebol durante a montagem da exposição especial sobre o futebol nos Jogos Olímpicos, lançada em julho e que recomendamos a visita.

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