Torneio de contos de futebol — Mario Benedetti: GRUPO D [encerrado]

Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo
35 min readMay 15, 2020

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Resultado: Chavelines (Gol azul) vence o grupo com 45,8% dos votos e está classificado à segunda fase. Votação atualizada e final no fim da página. Reforçamos para autores e autoras manterem o anonimato até o fim do torneio, mesmo que o texto tenha sido eliminado

Por Dios, o tempo voa, toda Copa é o mesmo. Semanas de ansiedade para ver o bicho pegando e quando se dá conta já corre o Grupo D, o álbum amassado, a tabela toda rabiscada, os olhos atrás da bola… mitad de los equipos! Já são três garantidos na fase final: quem será o quarto?

Em campo, Sacachispas, Rio Grande, Trasandino, Boyacá Chicó e Sport Chavelines. A mesa redonda virou para lá e para cá, buscou novos argumentos até no videotape da madrugada, mas não foi fácil apontar favoritos.

A votação do Grupo D fica aberta até domingo, 17 de maio, às 23h59. Leia os cinco textos e vote no campeão do grupo em enquete ao fim desta página (você precisará logar numa conta Google — também somos vítimas das grandes corporações). Somente o primeiro colocado da chave avança para a segunda fase.

O Grupo E está marcado para terça-feira, 19 de maio. Regulamento e tabela completa aqui. Bom jogo!

ATENÇÃO: Reforçamos aos autores e autoras que não identifiquem (muito menos republiquem) seus textos nem seus grupos até o final da Copa.

Nota: nenhum conto sofreu qualquer tipo de edição por parte da equipe do Puntero Izquierdo.

De bar em bar, a vida

Naquela noite inesquecível, por volta das vinte horas, o grande Capitán deixa o Hotel Paissandú, no bairro do Flamengo, separando-se de seus companheiros, de integrantes da comissão técnica e de funcionários da embaixada, que comemoravam efusivamente o triunfo da Celeste Olímpica. O Negro Jefe caminha solitário pelas ruas do Rio, queria estar consigo mesmo, refletir sobre tudo o que aconteceu naquele dia. Logo se depara com semblantes tristes, alguns rostos que revelavam as marcas profundas daquela tarde, muitos dos quais protagonizaram aquele imenso silêncio ensurdecedor no palco monumental.

Após percorrer algumas quadras, avista um bar, quer tomar mais um trago para comemorar aquele feito que entraria para os anais do futebol mundial. Não pode deixar de pensar no que se passou poucas horas antes, ainda está inebriado pela conquista. Porém, ao olhar em seu redor, aqueles rostos tristes e inconsoláveis se multiplicam, aproxima-se do balcão e pede uma aguardente: “Una caña, por favor.” Seu sotaque e linguajar o traem e, logo, é reconhecido por Noca, homem simples, que toma um trago de rabo de galo ali no balcão, para anestesiar a dor que sente e que insiste em não passar, a dor da tragédia que se instalou em seu peito e se abateu sobre o coliseu de pedra e a cidade protegida por São Sebastião.

Quis o destino que o estivador e o capitão celeste se cruzassem naquele bar. Enquanto Obdúlio, poucas horas atrás, vivenciara a partida de dentro das quatro linhas, Noca tinha estado nas arquibancadas, fora fulminado como muitos, vira os jornais queimados e sendo levados ao vento nos degraus do Estádio Municipal após o arbitro trilar o apito final e decretar a morte de uma esperança. Assim, naquele mar de mais de duzentas mil almas que deixaram o coliseu e inundaram as ruas da capital federal com um grande velório coletivo estava Noca. Sem vontade de ir para casa, um barraco no alto do Morro da Favela, e presenciar a tristeza e o choro inconsolável de seus entes queridos, o estivador preferiu ir beber em algum bar longe dali.

Noca se sente como o padroeiro da cidade, atado a uma árvore e flechado de morte, coração sangrando, um sangue mais espesso do que aquele fluido rabo de galo que, agora, bebe. Mas ainda é apenas o terceiro trago, não é possível que aguardente e Cinzano fizessem tão rápido o seu efeito, ainda mais para Noca, frequentador assíduo dos bares. Diante de seus olhos, ao lado, no balcão, está Obdúlio. Sim, um dos integrantes da Guarda Pretoriana do Imperador Diocleciano, que o havia flechado mortalmente. Reconhecia-o das primeiras páginas dos jornais dos últimos dias, um deles, aliás, exibia em manchete: “Estes são os campeões do mundo”. Lembra-se de que eram outros rostos, não aquele ali no balcão, eram rostos bem conhecidos, alguns de seu glorioso Vasco. Não se contém e dirige a palavra ao Negro Jefe:

─ Tomando uma para comemorar, amigo?
─ No, solo para me quedar un poco lejos del hotel y de las botellas de champán.
─ Então um brinde ao campeão mundial!
─ Gracias, amigo! Como te llamas?
─ Noca. Meu nome é Nicanor, mas me chamam de Noca, lá em casa e também na estiva.

De modo natural, cada um em sua língua, Noca e Obdúlio se comunicam, lado a lado, naquele balcão, irmanados num mesmo entorpecimento, um que havia sido flechado, o outro que cravara a lança no dragão. Tragédia? Milagro? Vivências distintas de um mesmo evento que, ontologicamente, se sucedeu naquele 16 de julho de 1950.

São Sebastião e São Jorge deixam o bar, após ingerirem alguns tragos para esquecer e comemorar. Caminham algumas quadras. Um quer arrancar as flechas do peito, mas não amaldiçoa os centuriões romanos. O outro, mira o dragão abatido, sem ódio e sem altivez, como se nutrisse apreço e respeito pela criatura mitológica. Noca sugere ao amigo que sigam para outro bar, mais próximo do porto, região que Noca conhece como a palma da mão, não muito longe do Morro da Favela. E a longa caminhada pelas ruas de um Rio em luto prossegue.

O estivador ainda não sabe que tem muito em comum com o Negro Jefe, para além da tez mulata. Assim como ele, Obdúlio teve infância difícil, no bairro humilde de La Teja, em Montevidéu. Nascera numa família numerosa e muito pobre, com doze irmãos, feito Noca. “Yo era un negrito pobre, andaba siempre de alpargatas, mi gastada campera y la boina”. Não sabia também que o capitão celeste, na tenra idade, tinha vendido jornais na rua e engraxado sapatos. A pobreza não lhe permitia uma infância feliz, pouco frequentou a escola. Filho mais velho, Noca também tivera de amadurecer bem cedo para ajudar os pais e os doze irmãos menores, encarar a dureza da vida gritando “Olha O Globo!” ou “O Correio da Manhã!” e deixando lustrosos os sapatos dos “magnatas” do asfalto com a graxa Nugget. Ainda se lembrava de sua mãe, que descia o Morro da Favela junto com ele para buscar água na bica e subia cantando. Mais tarde, seria eternizada na famosa marchinha de carnaval:

Lata d’água na cabeça,

Lá vai Maria, lá vai Maria,

Sobe o morro e não se cansa,

Pela mão leva a criança,

Lá vai Maria…

No balcão do próximo bar, nas imediações da Praça Mauá, os dois prosseguem num dedo de prosa, preenchem o tempo do entorpecimento com a curiosidade que parecem nutrir um pelo outro. Um duplo? Talvez. Noca pergunta a Obdúlio sua idade:

─ Treinta y tres años.
─ Eu também, sou de setembro.
─ Mi cumpleaños és el 20 de septiembre.

Olhos arregalados, espantado com a resposta do Negro Jefe, Noca mostra-lhe a data de nascimento registrada na carteira de trabalho já bem surrada: 20 de setembro de 1917. Descontraídos pela conversa e pela bebida, se sentem como velhos e bons companheiros. Noca conta-lhe sobre as duras jornadas como estivador no cais do porto, descarregando e carregando navios de todas as partes do mundo. Carregava nos ombros muitas sacas de café pesando até quatro arrobas, dos armazéns para os compartimentos de carga das embarcações. Se conhecesse as pinturas de Portinari dos anos 1930, “O estivador” e “Café”, se veria como se estivesse diante de um espelho.

Os minutos e as horas passam, regados a rodadas e rodadas de aguardente e rabo de galo, evitam falar do ocorrido há poucas horas atrás. Não falam de Ghiggia, Barbosa, Máspoli, Bigode… Falam do jogo da vida, de suas vidas, em partidas jogadas com muita dificuldade desde a tenra infância. Obdúlio conta-lhe que sua vida não é fácil, engana-se quem pensa que o capitão uruguaio tenha feito fortuna como jogador. Não era mais um garoto, e sua preocupação com o futuro da família fez com que solicitasse ao presidente da Asociación Uruguaya de Fútbol um cargo público, que lhe foi concedido quando o campeonato mundial já estava em andamento. Recebera um telegrama de confirmação, uma motivação a mais para a vitória.

Já em leve estado de embriaguez, os dois notam algo acima das prateleiras de bebidas na parede atrás do balcão: um nicho, espécie de oratório, em que figuram, lado a lado, imagens de São Sebastião e de São Jorge. Sob o olhar dos santos, o martirizado e o guerreiro, o estivador e o campeão não se dão conta das horas, já passa da meia noite e o dono do bar já começa a colocar as cadeiras sobre as mesas e deixa preparado o gancho de ferro para baixar a porta corrediça, enquanto varre o estabelecimento vazio. São os últimos fregueses, decidem sair. Antes, Noca faz questão de pagar a conta dos dois. Na calçada, um breve sorriso e um longo aperto de mão. Antes de se separarem, já meio alto, o Negro Jefe lhe diz:

─ La final se dio así… porque estaba escrito que… fuera para nosotros… Si ganamos, fue un milagro… Métaselo en la cabeza…, ganamos porque ganamos, nada más.
─ Não nos esqueceremos desse dia…, estará como que entranhado em nossa alma. Seguiremos jogando o jogo da vida…, na esperança de encontrar o alento… que nos foi tirado no jogo do campo…
─ Estás equivocado…, no sea bobo negrito… Son cosas de la vida… ¿Verdad? mi amigo… ¡Una cosa impresionante!… Entramos a la cancha decididos a ser campeones mundiales… En la cancha y en la vida…, es preciso jugar para ganar y querer ganar… El partido de la vida se juega aquí abajo… Noca, los brasileños son mui buenos amigos… A los hermanos brasileños… los quiero como se fueram hermanos… Y para mi el mejor fútbol del mundo es el brasileño… En el fútbol, conocer a los hombres vale mucho… Hay que aprender a observar al adversario… Se ganó con la mente, non co la habilidad… Amigo, le deseo mucha suerte… y que tenga muchas felicidads junto a su familia!

El Capitán e o estivador se entreolham pela última vez, se afastam e desaparecem na bruma da noite. Noca toma o rumo do Morro da Favela, teria de beber uma boa caneca de café coado por dona Leonor, para se recuperar e, às cinco da manhã, despertar para mais um dia de trabalho no cais do porto, em meio a pilhas e pilhas de sacas de café e de milho, e de pesados fardos de algodão. No retorno ao hotel Paissandú, Obdúlio, não um coração de herói, mas um corazón de gigante, ainda se lembra da resposta que dera a um jornalista uruguaio quando deixava o gramado do monumental Estádio Municipal, logo após a partida: “Fue casualdidad”.

Depois daquela noite, nunca mais se viram, seguiam jogando o jogo de suas vidas, sem um saber do outro. Noca procurou ler, com dificuldade, os jornais para saber como ia o amigo, mas as notícias eram escassas. No Jornal dos Sports, lera algumas poucas matérias que davam notícias de Obdúlio na Copa de 1954, na Suíça, e atuando pelo Peñarol, e nas transmissões de rádio, quando ouvia os jogos do gigante da colina e da seleção, de vez em quando, fazia-se menção àquele dia, em que o altivo e viril capitão uruguaio levara a Celeste a um triunfo inesquecível. Lera também, não se lembra mais onde, que o Negro Jefe nutria uma admiração especial por Carlos Gardel, que conhecera ainda adolescente, quando trabalhava como mensageiro de um hotel. Imaginava-o ouvindo os versos de La Cumparsita:

Los amigos ya no vienen

Ni siquiera a visitarme,

Nadie quiere consolarme

En mi aflicción.

Aquele tango era melancólico demais para Noca, versado no samba, no Morro da Favela. Preferia o partido alto, o ritmo dos tambores de seus ancestrais, soando na Praça Onze, na Mangueira, no Estácio e no Salgueiro. Uma cantora que surgira recentemente lhe tocava fundo na alma:

Flechas sorrateiras, cheias de veneno

Querem atingir o meu coração

Mas o meu amor sempre tão sereno

Serve de escudo pra qualquer ingratidão.

Aquele último bar em que Noca e Obdúlio estiveram na noite de 16 de julho de 1950 tornou-se um ponto de peregrinação para o estivador. Todo ano, no dia 20 de janeiro e, respectivamente, no dia 23 de abril, Noca ia ao Flor do Cais e pedia ao português, seu Antônio, com quem fizera amizade, para colocar, lá no alto, no nicho, diante das imagens de São Sebastião e de São Jorge, uma vela acesa, um copo de aguardente e um de rabo de galo. E dizia emocionado, removendo as flechas do peito e bebendo um trago:

─ À sua saúde, campeão!

Por causa de um pôster do Grêmio em 1983

Bem, se eu contar que eu nasci por culpa do Grêmio, será que vocês acreditam?

Eu sei, eu sei: como raios que essa gringa sabe o que é o Grêmio, para começo de conversa? Afinal, tá na minha cara e no meu passaporte: sou filha dileta da cidade de Londres. Diz a lenda que, depois de pai, mãe e parteira, a primeira coisa que eu vi na vida foi o Liverpool ganhar a final da FA Cup de 1986, três a um para cima do Everton — o gol do Everton foi marcado pelo Gary Lineker, o ídolo da senhora minha mamãe, que diz que ele só não é perfeito porque nunca jogou pelo Arsenal.

Mas o sobrenome é Silva e o sangue não nega o que herdou. Tenho cara de gringa e o sotaque para combinar com a cara, mas meu pai era cria do bairro de Menino Deus, Porto Alegre. A vida tem dessas coisas: eu existo por causa de um jogo que meu pai nunca viu. Como seria a minha existência, se não fosse a escalação do Grêmio em 1983?

***

Meu pai não veio para Londres porque quis. Veio porque ou era dar no pé ou ficar para virar um desaparecido. Eu não me importo com a sua opinião política — acredite em mim, eu encontro todo tipo de gente no consulado brasileiro — , mas a história do meu pai é essa: a situação política no Brasil apertou, o pessoal com quem ele andava começou a aparecer morto ou preso, alguém em Londres arranjou um canto para ele e ele deu no pé.

As roupas que aguentavam o frio de Porto Alegre não deram nem para aguentar o outono da Inglaterra; estudo, ele não teve como completar. Ele foi se virando porque enfiou na cabeça que queria voltar para casa e ver o Grêmio jogar no Estádio Olímpico de novo.

O elo que me une ao Brasil do meu pai, o Brasil que ele perdeu quando foi obrigado a se exilar, sempre foi o futebol. Imagine você como era conseguir qualquer informação sobre o Grêmio quando não tinha tevê a cabo, nem internet, nem coisa nenhuma. Ligação internacional demorava metade de um dia para completar, quando completava. Como essa operação saía caro, não dava para gastar tempo falando de futebol: quando meu pai ligava para os pais, era para saber de nascimentos, casamentos e enterros, para desejar Feliz Natal ou Feliz Aniversário. E só isso. Não dava tempo de perguntar muito mais coisa.

E, com o tempo, não houve também para quem perguntar.

Nem eu nem minha mãe conhecemos meus avós paternos. Quando veio a Lei da Anistia, meu pai decidiu ficar em Londres — não tinha motivo para ele voltar para o Brasil, sem pais para rever, sem família que realmente o quisesse de volta; depois, muito tempo depois eu fui entender o trauma que ele carregou consigo, o desalento que o fez ficar numa ilha chuvosa e sem churrasco decente. Onde era seguro, onde bem ou mal ele se sentia aceito.

Você me pergunta onde o Grêmio entra nessa história.

Calma que eu já chego lá. Tem um Paolo Rossi no caminho, antes.

***

Diz a história que meus pais se conheceram em um pub, durante a Copa de 1982. Minha mãe estava trabalhando atrás do balcão, pouco se danando com os jogos porque tinha gente demais para servir e bêbado quando encana com você é uma desgraça — ela tinha que ficar ligada o tempo todo para ninguém vir passar a mão nela. Já meu pai veio com um bando de amigos do trabalho, mais para beber do que para ver os jogos, verdade fosse dita (minha avó tinha morrido três meses antes, meu avô seis meses antes; se ele estava no pub, era porque precisava apagar-se, não era para ver Falcão, Sócrates nem Zico.)

Eles até trocaram telefones, mas não rolou nada na ocasião. Meu pai ficou bêbado de tropeçar nas próprias pernas porque o Brasil perdeu para a Itália daquela maneira estapafúrdia que vocês já conhecem — e, na confusão, perdeu o telefone da minha mãe; depois ele ficou achando que tinha sido só um sonho de elefante rosa, que é como as pessoas por aqui descrevem os delírios que te passam depois de cinco ou seis cervejas. Minha mãe, por sua vez, atendeu tanta gente no bar que depois nem lembrou de quem era o telefone anotado no papelzinho que estava no seu bolso, e não telefonou para descobrir quem era.

Tudo ficaria por isso mesmo se não fosse o Grêmio.

Meu pai tinha um amigo no Brasil que mandava revistas e cacarecos pelo malote da VARIG (que era o único jeito de receber coisas do exterior sem demorar vinte anos para os correios entregarem, e isso quando entregavam) — e, passados vários meses desse encontro estranho no pub, calhou desse amigo mandar um pôster do “Zero Hora” com o time que ganhou pela primeira vez a Libertadores da América, em 1983: Mazarópi, Jorge Baidek, Hugo de León, Paulo Roberto, China, Casemiro, Renato Portaluppi, Osvaldo, Caio, Tita e Tarciso.

Meu pai na época trabalhava em uma biboca que vendia café e doces na porta do metrô, e só de birra ele pendurou o cartaz na parede atrás dele, ao lado do pôster do Tottenham Hotspurs que o colega do turno da manhã tinha pregado por ali. Como tinha estrangeiro à beça na região, ninguém achou estranho. Um ou outro perguntava quem eram os camaradas na foto, mas não rendia muita conversa. O pessoal não é muito de bater papo quando está comprando o chá com pão doce e a cartela de cigarros semanal para encarar a jornada de trabalho até o centro da cidade.

Passa o tempo, chega o verão, uma baita duma tempestade começa, e minha mãe se abriga debaixo do toldo da birosca porque o guarda-chuva foi para o espaço. Sem ter muito o que fazer, ela (ainda sem se lembrar que o meu pai estava no pub meses antes, e meu pai ainda sem se dar conta de que aquela era a loira que o deixou sair sem pagar pela última cerveja da rodada) decide puxar papo. Falam da chuva, falam da rua que está suja, do trem que sempre atrasa; ela olha para os pôsteres na parede, comenta que torce para o Arsenal e…

— Eles jogam bem? — Minha mãe apontou o pôster na parede.

— Faz doze anos que eu não os vejo jogar — meu pai respondeu.

Diz minha mãe que meu pai chorou quando disse isso. Meu pai diz que ela devia estar confundindo as histórias. O fato é que aquela frase abriu as portas de muita coisa emperradas na alma do velho, e ele começou a falar e falar como se não soubesse como colocar ponto final nas coisas. Ele, que se fiava em poder ver um jogo do time de coração de novo, e que tinha desistido disso, e que só tinha um pôster e umas cartas dos amigos para contar como tinha sido a conquista da América, desabou enfim diante de uma quase estranha.

Dizem que os ingleses são reservados. E são, de fato, especialmente se comparados com os brasileiros. Mas minha mãe, por algum motivo, ouviu aquele lamento, e ouviu com afinco e atenção. Ela, que nunca precisou se perguntar porque as coisas eram como eram, que nunca tinha parado para pensar que o mundo era bem mais amplo do que as ruas do bairro, de repente se viu transportada para Menino Deus, para Porto Alegre, para um estádio que lhe foi descrito com todos os tons de azul e preto do mundo.

E para esse mundo, minha mãe ofereceu tons de vermelho e a sombra do estádio de Highbury, onde ela nasceu e foi criada: uma espécie de lar adotivo, com um estádio pequeno e um time chumbado mas que fazia barulho o suficiente. Não era o Estádio Olímpico de Porto Alegre, nunca seria, mas era algum lugar para se plantar enfim.

Recomeçar é pior do que começar, meu pai sempre dizia, porque você sempre pensa no que já aconteceu como um modelo para o que deveria vir à frente. Mas, você vê que engraçado? Recomeçar foi o que meu pai fez, e cá estou eu aqui por causa disso, escrevendo em português e sofrendo para achar os acentos no teclado britânico. Tudo por causa de um jogo que ele nunca viu, de um time do qual ele sente muitas saudades mesmo sem ter acompanhado de perto. Que não me digam que é só um jogo, porque não vou ter idioma para explicar quão errado a pessoa está.

Calanguinho

Durante uma hora chutei aquela bosta de bola dente de leite no portão de ferro com toda a força. Eu não queria fazer gols, só queria fazer barulho. Estava puto da vida porque meus pais não tinham me deixado ir pro sítio do Frango, onde a nossa turma ia passar o fim de semana — o Lelê, o Nariz, o Fraquinho, o Quinzinho, o Negão, o Gago, o Cadão, o Bruninho, o Calanguinho, o Jabá, o Esquilo e o Frango, claro. Eles iam andar a cavalo, nadar no açude, pescar no rio, chupar manga no pé, comer ração de coelho com sal, atirar torrões de barro uns nos outros e ajudar o peão a matar porco. Nenhum adulto acompanharia os moleques. Cada um teria que levar a própria comida na mochila. Da calçada de casa vi quando eles pararam na borracharia pra encher os pneus das bicicletas.

Chutei a bola no portão mais uma vez e depois chutei bem no meio do vidro da janela da sala, que não quebrou, ufa. Meu pai apareceu e gritou: toma cuidado com essa bola, pô. Meu pai era bravo em algumas situações, em outras era muito tolerante. Não dava pra saber. Assim como ele, eu não gostava de futebol. Ou melhor, adorava jogar futebol, joguei muito até os catorze anos, mas não gostava de ver os jogos na tevê. Achava a coisa mais chata do mundo. Ainda acho. Mas às vezes tenho um pouco de inveja dessas amizades criadas em torno da paixão por um time, essa camaradagem quase maçônica, meio mafiosa, cheia de regras veladas e sutis. No fundo eu me sentia um traidor por não torcer com a devida convicção pro Palmeiras do meu avô e, pra piorar, ter uma certa simpatia pelo Corinthians dos meus primos Caio e Camilo. Eu me sentia um traidor e um delicado. E delicado na minha terra era um xingamento, atributo de mulheres e viados. Mas foi essa delicadeza que me salvou. Me salvou do quê? Sei lá. Tudo já faz tempo demais. E eu tinha um lado perverso também.

Deixei a bola na varanda e entrei em casa. Abri a geladeira e comi um pedaço de doce de uva com leite condensado, meu preferido. Minha mãe fazia tudo o que eu pedia. E o que eu fazia por ela? Nada. Fui um filho difícil, sempre irritado, sempre preocupado, sempre ausente. Às vezes digo pra mim mesmo que os livros que escrevi foram em grande parte pra ela, mas não sei se é verdade. Talvez eu esteja inventando isso agora. Uma coisa é certa: se eu tivesse duas vidas, dava uma inteira pra minha mãe. Como só tenho uma, o negócio é tocar em frente e foda-se.

No dia seguinte fomos almoçar na minha avó materna. Macarrão e frango assado. Era sábado mas parecia domingo. Um silêncio incômodo pairava em cada janela aberta pro corredor atulhado de pardais mortos. Os pardais faziam ninhos nos caibros do telhado, e seus filhotes muitas vezes despencavam no chão. Minha avó recolhia os cadáveres com naturalidade. Mas eu sentia o estômago revirar. Ainda posso ver a cabeça branca e azulada desses bebês-passarinhos, as pálpebras grossas amarelas fechadas. Eu odiava aquilo. Nesses momentos, não tinha quem conseguisse me acalmar. Eu berrava “por quê, por quê, por quê?” — e chutava a parede feito um débil mental. Uma vez arranquei um pedaço do dedão fazendo isso. O futebol foi o jeito que encontrei de chutar o mundo sem quebrar o pé. Jogava de três a quatro vezes por semana, no campinho do Clube dos Bancários, na quadra da escola ou na rua. Mas de vez em quando eu preferia jogar sozinho, como quem cava um buraco pra se enterrar de olhos abertos.

Depois do almoço fui até o fundo do terreno e derrubei o mandiocal da minha avó. Quebrei um por um todos os pés. Sabia que estava fazendo um troço asqueroso, do qual iria me arrepender mais tarde, mas ao mesmo tempo aquilo me fazia sentir forte e livre, e eu gritava “madeeeeeeeeeeiraaa!” a cada golpe. Meu tio Mário, um cético, um cínico, um cara maravilhoso, gargalhou de rir quando lhe contaram. Minha avó ficou triste mas não me deu bronca, como se eu não fosse responsável por sua tristeza. Meu pai e minha mãe entraram em pânico. Acho que não me espancaram por pouco. Eles nunca me espancaram, aliás.

Na segunda-feira, na escola, meus amigos me trataram com desprezo. Criança é foda. Não perde uma oportunidade de humilhar e sair ganhando. São como aqueles executivos de Wall Street que, se for preciso, arrasam uma cidade pra fechar um bom negócio. (Estou pensando na série Billions.) A diferença é que as crianças também são poetas em estado selvagem.

— E aí, bebezão? Que que cê fez aqui na cidade? Brincou de boneca com as priminhas? — o Calanguinho me provocou.
— Não. Meti uma vassoura no cu da gorda da sua mãe — respondi.

Calanguinho me acertou um soco no nariz, e o sangue escorreu sobre a camiseta branca do uniforme. Acabamos na diretoria, e a diretora, como todos os adultos que conheci na minha infância, me defendeu. Disse que eu era um dos melhores alunos da escola, e a culpa portanto só podia ser do Calanguinho, um relaxado, um vagabundo. Não era mentira, mas eu também tinha exagerado. Contei pra diretora o lance da vassoura no cu da mãe do Calanguinho. Dona Nair me mandou calar a boca. Quer dizer que você está virando um boca suja também? Diz pra sua mãe vir ao colégio amanhã. Quero falar com ela.

Minha mãe era minha chapa, e durante todo o caminho, nervosa, como se estivesse com medo da diretora, repetia: o que você aprontou, hein? Nada, nada, eu dizia, e chorava de culpa pela angústia que tinha causado na minha loura mãe de olhos azuis, ou verdes, dependia da hora.

A diretora ameaçou me dar suspensão de três dias, mas levando em conta meu bom comportamento até então optou por um castigo de apenas um. Lembro que passei a manhã trancado no meu quarto, sonhando em mudar de país como nos filmes e nunca mais ver nenhum conhecido.

Calanguinho e eu nos afastamos. Mas no fim do ano, perigando tomar pau (ele só queria saber de futebol, jogava de segunda a segunda, e sejamos honestos: jogava bem pra caralho), ele veio me pedir ajuda pra fazer a lição de casa de Matemática e Português, as duas matérias em que eu arrebentava. Eu o ajudei, consciente de que agia com nobreza, embora essa nobreza tivesse uma aparência de humildade, que também era real, o que me deixava ainda mais feliz. O Calanguinho foi bem nas provas e passou de ano. Me agradeceu com um “valeu aí, valeu mesmo”, mas na segunda ou terceira vez em que nos encontramos ele voltou a me tratar feito um boçal. (A bondade gera desprezo e repulsa, e um irreprimível desejo de vingança. Se quiser ser bom com alguém, faça isso porque é o que tem que ser feito. Só não espere um reconhecimento tranquilo por parte da outra pessoa. Mais cedo ou mais tarde ela vai acabar jogando um balde de merda em cima da sua cabeça.)

Depois que saí do interior, fiquei vinte anos sem ver o Calanguinho. Um dia o encontrei na padaria Alvorada, seis e pouco da manhã. Ele tomava cachaça, os olhos vermelhos estourados. Falamos umas besteiras sobre o Corinthians, que parecia ter atolado pra sempre no décimo primeiro lugar da tabela, peguei o saco de pães que a moça do balcão me entregou e fiz que ia embora, mas percebi que ele queria falar mais. Pedi um café e relaxei. E ouvi a história da sua vida, uma história deprimente. Quando ele começou a se repetir, eu inventei uma desculpa e me virei na direção da porta, decidido a cair fora dali o mais rápido possível. Então ele bateu no meu ombro e disse o que estava querendo dizer o tempo inteiro: escritor, escritor, deve ser boa essa profissão, ficar sacaneando as pessoas que você conheceu, inventar mentira e dar uma de herói, quando todo mundo sabe que você era um puta de um babaca.

É divertido, Calanguinho.

No tempo certo

Tiluzinho frequentou a escolinha de futebol por cinco anos. O suficiente para conseguir passar em uma peneira de um time mediano no sul da Bahia. Seria volante. Volante canhoto, de marcação. Diziam, o antigo técnico e os olheiros, que ele tinha o tempo certo para marcar. No instante. Volante de poucas faltas. “Zagueiro, talvez” pensou um dia ainda na escolinha o seu professor, “seria uma posição melhor”. Tiluzinho, porém, de forma alguma conseguia manter-se na posição. Eram as subidas ao ataque. Juntava-se a isto, no período de aprendizagem, o fato que ele brigava constantemente com o rapaz que ficava no gol. O início do conflito havia sido um biscoito recheado contrabandeado nas dependências do clube destinado ao Tiluzinho e que fora interceptado o pacote pelo goleiro. Tiluzinho descobriu e o pau quebrou. A diretoria descobriu e o pau quebrou para os dois: duas semanas sem treinamento. Tudo isto somado fizera o treinador deixar Tiluzinho como volante mais avançado, um pouco mais longe do goleiro.

Tiluzinho estrearia pelo seu novo time. Primeiro jogo como profissional. Hora de mostrar o que havia aprendido em todos aqueles anos. Seu treinador era um escocês que veio parar no futebol brasileiro depois de alguns anos na Argentina. O motivo de sair da Escócia e escolher a Argentina era um mistério. Mais mistério ainda era como havia encontrado um time no sul da Bahia para trabalhar. Digno de nota era o irlandês ter como firme crença, mesmo que muitos houvessem dito e demonstrado o contrário, de que o idioma português era um espanhol modificado. Degenerado. Assim ele misturava as duas línguas com a maior naturalidade. Além disso, tinha também o estranho hábito de confundir a cabeça dos jogadores inventando, na maior aleatoriedade, funções específicas para cada jogador em cada jogo. Ainda no vestiário, antes de subirem, apontou para Tiluzinho em meio aos outros jogadores e disse:

— Tiluzino — demonstrando a dificuldade com o nh — você continua hacendo o que fiziera nos trenhos, pero, hoy, os saques de lateral, os corners, como vocês chamam isto mismo? Si, escanteio, escanteios pela izquierda seran cobrados por você, entende?
— Sim, sim, professor — respondeu.

Início de jogo

A bola rola. Dois, três minutos, Tiluzinho desce afobado, vê a intermediária adversária aberta, chuta forte, o goleiro espalma, a bola sai pela lateral esquerda. Tiluzinho se recurva, lamentando o gol, levanta a cabeça, passa alguns segundos, ninguém sem entender nada…

— Tilu, num é você que cobra o escanteio pela esquerda? — lembrou-lhe o companheiro.

Num pulo de recordação, tendo esquecido em menos de dez minutos da orientação do escocês, Tiluzinho sai correndo para cobrar o escanteio. Em cinco segundos de corrida, uma sensação estranha começara a lhe subir dos pés para a cabeça, ou uma lembrança que os pés tiveram e como que perguntassem: “você cobrou escanteio alguma vez na escolinha?”. Tiluzinho, dezessete anos, cinco anos de aprendizado, nenhum escanteio cobrado. Mas havia visto e convivido com cobranças de escanteio a vida toda. Não parecia difícil. Não devia ser.

Colocou a bola na meta. “É só mandar na área”, lembrou-se do que ouvia algumas vezes na escolinha. E chutou. Chutou com força. Com vontade. Sobrou força, faltou direção. Talvez fosse o nervosismo da estreia, os primeiros minutos de jogo. A bola saiu fazendo um movimento indescritível no ar. Passou sobre a cabeça de todos, foi parar na outra lateral. Não houve tempo para espanto. Logo em seguida já estava o companheiro do time cobrando a lateral, a jogada prosseguiu, e o goleiro agarrou. Tiluzinho voltou correndo para o meio de campo, com as ideias confusas. Era medo? E se tivesse outro escanteio? Começou a desejar que o goleiro ou tomasse gol ou segurasse a bola, mas que pelo amor de Deus não deixasse a bola resvalar pra escanteio. Mas não dependia só do goleiro, e sem se atentar para isso, lá pelos quinze minutos, em uma descida de contra-ataque rápida, o lateral esquerdo tomou uma carreira, foi com a bola e, chegando na altura da grande área, chutou atravessado, rasteiro, Tiluzinho que vinha desenfreado, deu de frente com a bola dando lhe um bico, ela subiu, não antes batendo na cabeça do zagueiro que estava na área, indo pela linha de fundo, lado esquerdo. Tiluzinho, dessa vez mais atento, atento demais, sabia que de novo teria de cobrar o escanteio e correu rápido. Recebeu do gandula a bola, botou na marca. Deu dois passos atrás. E mirou na área. Chutou consciente. Na pequena área. Uma linda cobrança. A cobrança teria sido só elogio se não fosse pelo fato de não ter um mísero companheiro na área. Foi tão rápido, mas tão rápido, que os jogadores olharam para ele e dois ou três disseram “calma, cacete!”. O treinador gritou:

— Tiluzino, ei, mira aqui — chamando o jogador — cobra no tempo certo! Certo? Ok?!

Trinta minutos de jogo. Terceira cobrança de escanteio. Mais um chute que o goleiro havia espalmado para a esquerda. Tiluzinho começava a se perguntar se estava proibido do goleiro espalmar para a direita. Três escanteios, três pela esquerda. Pensou: “no tempo certo”.

— Caralho, ô Tiluzinho, vai parir uma criança é? — gritou o atacante.

Que tempo certo? Dessa vez Tiluzinho perdeu o tempo, demorou. Esperando o tempo certo. Mas disso nunca havia escutado nada. Essa coisa de tempo certo, os cobradores de escanteio tinham recebido algum treinamento em especial para isso? Cálculo? Intuição? Tiluzinho demorou tanto na terceira cobrança, que deu tempo de alguém vir até ele, pedir a bola, e ali, no mesmo jogo, Tiluzinho acabara de experimentar, também pela primeira vez, o escanteio curto. O companheiro, nervoso, correu com a bola até a quina da área e chutou. A bola espalmada pelo goleiro, dessa vez, foi pela direita. Alívio de Tiluzinho. Aproveitou para correr mais para perto, e ficou observando o cobrador responsável pela direita. Daquele tiro de escanteio saiu o primeiro gol da partida de cabeceio do atacante. O gol abafou aquela indecisão de Tiluzinho.

Fim do primeiro tempo.

— Tiluzino, venga acá — chamou o escocês à parte antes dos jogadores descerem para o vestiário — o escanteio? Que pasa?
— Eu não batia muito escanteio antes, professor — mentindo, evidentemente, ao técnico — Vou ter mais atenção.
— Tempo certo ein? No tempo certo? Sabe? — colocando as duas mãos no ombro de Tiluzinho, com paciência, mas perguntando várias vezes. Tiluzinho pensava em uma forma de dizer que não sabia o que era o tempo certo, mas sem dizê-lo — Tempo certo! Você sabe? É o segredo!

Tiluzinho movimentou um pouco a boca, fez uma expressão de curioso, como se não soubesse, e não sabia mesmo, a fim de que o treinador o explicasse sem precisar confessar.

— Aqui na Bahia, você foi em playa, Tiluzino? — perguntou o escocês, tirando as mãos do ombro do jogador.
— Eu cresci em uma, morei até os dez anos lá. Todo dia ajudava pai a vender amendoim torrado na praia.
— Bueno, Tiluzino, muicho bueno. Miraste mucho o mar?
— Como? Não entendi, professor.
— O mar, las olas — começou o escocês a gesticular com as mãos, os braços, imitando o movimento das ondas
— Ah sim, sim, as ondas. Sim, eu gosto de ficar olhando o mar, sim.
— Entonces, carajo! Carajo! És isto, mira, como dicen vocês? Mirar? — fazendo com as duas mãos agora o gesto de um binóculo…
— Olhar, O-L-H-A-R — respondeu Tiluzinho como se ele agora fosse o professor.
— Olar, olhar, que palabra dificile ein? Mirar es esto…mira como las ondas quebran na playa…ok? Agora vá, Tiluzino — e não disse mais nada o escocês. Tiluzinho foi em direção aos seus companheiros. Pensando em ondas. Aquilo não parecia fazer sentido algum. E pôde pensar à vontade pois nenhum de seus companheiros quis tocar no assunto dos escanteios com ele.

Início de segundo tempo

Tiluzinho volta desejando que não tivesse mais escanteios no segundo tempo. Ao menos do lado esquerdo. Talvez a inversão do campo ajudasse quanto a isto. E parecia que sim. Aos oito minutos, de surpresa, o lateral esquerdo soltou um chute na direção do goleiro. Um chute rasteiro. Esse o goleiro rebateu com o pé. Mas o chute foi torto, e a bola foi pelo lado direito. Na cobrança, todos estranharam o sucedido. Ao correr para bater o escanteio, Tiluzinho foi atrás do seu companheiro.

— Mas que diabo é isso, ô Tilu? Você quer cobrar?
— Relaxa, eu só quero ver uma coisa — respondeu, deixando o companheiro sem entender nada, os outros sem entenderem nada, o treinador e a torcida. Ninguém entendeu. Tiluzinho se colocou atrás do cobrador. O juiz estranhou, o bandeira também, mas como não era nada de irregular, ficaram a observar. Assim como Tiluzinho. Que não queria olhar o cobrador, ou o pé chutando a bola, ele queria olhar para área. Para os jogadores na grande área. E viu. Viu aquele movimento. Devia ser isso. Só podia ser isso.

O time de Tiluzinho quase não teve mais escanteio. E o adversário, jogando fora de casa, voltou buscando o empate. Tiluzinho jogou na defesa e marcou bem no segundo tempo. Aos trinta e cinco minutos, todavia, tomaram um gol. Uma falha de um dos zagueiros, o atacante entrou livre. O time de Tiluzinho saiu em resposta. Foram atacando, atacando, e em uma divida pela linha de fundo, novo escanteio pela direita. Tiluzinho, quase do meio de campo, ficou a observar. Não foi para área. Queria confirmar se era aquilo. Só podia ser aquilo. O escanteio não deu em nada, mas Tiluzinho parecia ter descoberto. Agora, diferentemente de tudo o que se passara antes, queria um escanteio pela esquerda. Começou a descer mais, a chutar, o escocês pedia calma ao time. Nem notaram o treinador. Afobados. Aos quarenta e três minutos, um escanteio. Pela esquerda. Era o tempo certo para entender o tempo certo.

Tiluzinho se encaminhou com pressa para a cobrança. Teve uma ideia: seria possível testar o tempo certo? Parecia que sim. Fez um gesto com o corpo, projetou-se como se fosse chutar. E viu. Viu os companheiros, os adversários, todos se atirando como uma onda prestes a tombar na areia. Ele recuou. Notou que os jogadores também. Levantou um braço como sinal de desculpa, fingiu que a bola havia se movimentado, abaixou, mudou uns dois palmos na marca. Mas já não era preciso. Tiluzinho olhou para a área. O segredo parecia ser esse: não que exatamente ele controlava, mas ele e os companheiros eram como que uma onda se precipitando à orla. Aquilo que o escocês, também um sujeito que cresceu em uma beira de mar, parecia ter indicado: “quando eles se precipitarem, você se precipita junto”. Tiluzinho chutou. A bola foi exatamente na área, na cabeça do atacante, que cabeceou para fora. Mas Tiluzinho não estava mais preocupado. Havia aprendido a bater escanteios, a bater no tempo certo.

Fim de jogo. 1x1

Tiluzinho não fora escolhido no resto do campeonato para cobrar nenhum escanteio mais. Mas havia aprendido: de que em tudo se poderia talvez encontrar uma relação oculta, misteriosa, com o futebol. Se até mesmo o mar possuía relação com o jogo, quantas outras coisas não poderiam?

Gol azul

Eu penso em diagonal

O passe que corta a zaga

Corta pro close

Da torcida embriagada

- cântico de alguma torcida em algum banheiro

“O inventor da bola merecia ganhar o Prêmio Nobel dos Brinquedos”. Essa frase eu ouvi do meu pai quando eu ainda achava que ia ser jogador de futebol. Eu era criança e achei a frase a coisa mais linda do mundo. Talvez minha vocação tenha morrido ali: futebol era coisa séria. Uma profissão. Não uma brincadeira. Mas a gente dá o primeiro chute do dia e é como se tudo começasse de novo.

Tudo bem.

Pego a bola da mão dele, jogo pro ar, deixo quicar e chuto com o peito do pé entre as duas únicas palmeiras do deserto. Golaço. Golaço cê tá maluco. Meu pai dizia que quaisquer duas árvrinha são mais sagradas que duas traves de verdade. Dois guarda-sóis. Um portão com guia rebaixada na frente. Um par de chinelos também, meu pai dizia. Mas um par de chinelos um pouco menos, eu falava pra ele. A altura do portão, do guarda-sol e da árvore meio que emprestam uma solenidade selvagem pra bola que invade a inestufável rede imaginária e vai parar longe. Talvez no vizinho — o que por si só quer dizer que não foi gol, porque se fosse gol a bola batia no muro que separa as duas casas.

-

A pupila do olho azul-piscina do gato se contrai. Um raio de sol atravessa o furo na cortina, ilumina uma coluna de poeira num feixe dourado e penetra na pupila do gato. Passa um segundo sem que nada no universo aconteça. A não ser por uma nuvem que passa. A pupila do olho azul do gato se dilata. Nada mais inofensivo que uma nuvem que passa. Um bocejo antigo. Se contrai de novo. Nasceu o dia.

-

Ando coisa de 10 metros pela estradinha de terra cor de argila e paro em frente ao gol do vizinho. Estou aqui pra bater palma, gritar, toda aquela humilhação despreocupada que só quem quer muito uma coisa está disposto a passar. O gol do vizinho é feito de madeira azul. Foi aí que eu lembrei de outra frase. Distante como um vizinho. Essa frase assolava minha mente na época. Distante como um vizinho. Merecia o Nobel das frases essa frase. Mas essa frase do Nobel não era do meu pai, era de um rapper da Serra da Mantiqueira, o Neto. Nada é mais distante que um vizinho. Se a sua bola tá no terreno dele então, nem se fale.

-

Nano-ouros suspensos no sol.

- “Malditas partículas mágicas”, sente o gato intrigado. “Visíveis somente sob a luz solar”.

O feixe de poeira dourada entretém o gato, que se fascina com as coisas mais temporárias e se assusta com as mais vexatórias. E quem pode dizer o contrário de si mesmo?

Eu não.

Eu estou vendo a bola entre as frestas, nos espaços entre uma estaca de madeira azul e outra. Bola, azul, bola, azul. A bola tá perto. Mas o azul tá mais. A bola tá bem na quina entre o gol azul e a quina cinza do chão de concreto do quintal do vizinho.

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A luz de manhã é diferente da luz do fim de tarde? Quão diferente um pôr do sol é do nascer do sol? É impossível responder essa pergunta porque o que o gato sente de manhã é sempre diferente do que ele sente no fim de tarde. Mais que diferente: é sempre o oposto. Mas ele sente que aquela luz que contrai sua pupila é a luz da manhã. Ele sempre sente. Um barulho. Vem do lado de fora da casa vazia. O gato imediatamente levanta a cabeça, as orelhas giram, o corpo se ergue com a mesma elegância dos mágicos de rua. Os olhos de piscina procurando o foco através da janela.

-

Afasto as duas mãos pra bater a palma inaugural que anunciará minha chegada. Mas meus braços abertos congelam no ar de janeiro. Uma enorme sombra se projeta no quintal do vizinho. A sombra se move lentamente até que um focinho se revela. Meus braços ainda abertos, a palma em pause eterno. Meu queixo caído. Minha boca aberta como um gol, minhas bochechas entregues como um par de traves que vê o atacante driblar o goleiro. Tem um tigre olhando no meu olho.

O tigre se esgueira em slow motion, mais rápido que uma bala de canhão. Entre eu e ele, madeiras azuis, minha bola e uma parte cada vez menor do quintal ensolarado. O tigre e sua sombra se aproximam. Um filme com a minha a vida começa a passar diante dos meus olhos.

Naquele mesmo fim de tarde que meu pai falou do Nobel dos Brinquedos, ele me falou outra coisa. Ele disse que tinha uma teoria sobre o que, afinal, era a vida.

- E se o que eu e você chamamos de vida é, na verdade, apenas o filme da nossa vida passando diante dos nossos olhos em nossos últimos instantes de vida?
- Como é?
- “É isso. Na verdade nosso corpo está em outro lugar, prestes a morrer. Nesse lugar, nossa vida está passando diante dos nossos olhos. O que chamamos de vida é esse filme. O que chamamos de vida é essa retrospectiva audiovisual que protagonizamos como se fosse nossa vida. Mas tudo isso já aconteceu. A gente acha que não, que tudo está pra acontecer. Que a realidade se desvela pouco a pouco, que tudo — destino ou não — é um mistério. É um mistério pra nós, protagonistas do filme. Mas, pra plateia, é apenas uma retrospectiva. O problema — ou a graça — é que a plateia também somos nós. A vida é a versão estendida daquele vídeo de melhores momentos que assistimos antes de morrer. Os Momentos de Tédio — não qualquer tédio, mas o Tipo de Tédio Que Te Assola A Alma™ — não são cortados. Pelo contrário: são prolongados. Filho, e se a vida for isso, filho? Um passado embrulhado pra presente”.

O tigre repousa uma de suas patas dianteiras em cima da bola. A pata dele é maior que a bola.

- “Por que você gosta de futebol?”, eu pergunto.
- “Porque o futebol te obriga a jogar com a mesma parte do corpo que te mantém em pé”. A parte do corpo que te deixa em pé é a mesma parte do corpo que tem que proteger a bola, que tem que conduzir a bola. O basquete é estética pura, mas é porque aqueles americanos estão protegendo e conduzindo a bola com a mão. No futebol, a única parte do corpo que toca o solo, a única parte do corpo que faz com que sejamos, de fato, terrestres, é a parte do corpo responsável por proteger a bola, por conduzir a bola. Por ludibriar. Ou melhor, por induzir o zagueiro. Tudo isso enquanto universos e pupilas se dilatam”.
- “Ludibriar”.
- “Todo drible é uma indução. O atacante precisa induzir o zagueiro a reagir como o atacante deseja. E o zagueiro precisa achar que a ideia é dele. Em suma: o atacante se antecipa — claro, a bola está no pé dele — mas quem tem que ter a sensação de estar antecipando é o zagueiro. Essa é a história de todo drible. De todo rolinho, principalmente. Adoro rolinhos. E não tem um rolinho que eu goste mais que o do Denílson no Arce. O Denílson está na marca do escanteio, de costas pro zagueiro. Denílson está pressionado. Sem alternativas. Quem marca ele não é nem Arce, é outro zagueiro. Arce vem de longe e vem com uma ideia genial: não estou no campo de visão de Denílson, vou dar é um bico na bola. Ele não contava com a olhadinha pra trás do Denílson, que mexeu a cabeça só o suficiente pra ver Arce e sua ideia chegando. Um rolinho de costas, rolando a bola pra trás. Um rolinho etimologicamente preciso, um rolinho rolado. O melhor lateral direito que eu vi jogar, chutando uma bola que não existe.

A finalização cara a cara com o goleiro: quase sempre, o melhor a se fazer é chutar reto, em direção ao goleiro. Goleiros são como labradores correndo atrás de uma bola em um gramado. Eles passam a maior parte do jogo sem encostar na bola. E a palavra bola merece ser lida com a maior reverência possível. Dentro de um campo de futebol, nada é mais sagrado que a bola. Qualquer analogia divina é insuficiente. Em uma época em que não existem mais ícones únicos, não existem mais clássicos, mais hits, nesses tempos líquidos em que a capa do cd não existe, em que nada mais é sagrado de verdade, a bola permanece sólida como uma estátua no altar. Então quando a bola vem, o goleiro quer brincar. Quer participar do jogo. Quer encostar na bola.

Quer pular.

Ele não vai esperar o seu grande momento pra ficar plantado. Ou só pra cair de bunda no chão. Sem a estética. Sem o salto. Sua tia veio assistir o jogo. Ele tem que ficar por um tempo sem nenhum contato com o chão. Sem ser terrestre, por um segundo que seja. Por isso quase sempre a melhor coisa é chutar reto, em direção aonde o goleiro estava antes de ficar cego de amor pela bola.

A finalização de longe é assim: não pense no goleiro. Você sabe onde ele está. O goleiro está atrás do zagueiro. Sempre. Ou pelo menos em toda situação em que se pode ou deve almejar a finalização de longe. Assim como o comportamento do goleiro é previsível, o do zagueiro também é. Dentro de todo zagueiro tem um chip que programa o seu corpo a cumprir, no fundo no fundo, uma só função: proteger o gol. Tal qual toda tarefa cotidiana de um segurança de banco tem o cofre como pano de fundo, todo movimento do corpo do zagueiro, no fundo no fundo, tem a segurança do gol como motivação. O zagueiro é um microcosmos do gol. Um robô programado pra proteger o gol. O zagueiro é um soldado que se alistou na guerra voluntariamente. Sua pátria é o gol.

Desse modo, o melhor a se fazer é usar a convicção desse soldado como referência. A limitação como recurso. Concentre seu foco em tirar a bola da perna do zagueiro. Pela esquerda, pelo meio, pela direita, tanto faz. Esse conceito traz algumas vantagens. Suas chances da bola chegar até o gol aumentam muito. Pelo menos do primeiro zagueiro — que em muitos casos é o único — a bola passou. Segundo: é muito menos trabalhoso balizar sua finalização pela canela do zagueiro do que pelo goleiro. Poucos centímetros X muitos metros. Do zagueiro só é preciso tirar um pouco. Se não, você chuta muito pra fora. A finalização de longe deve ser entendida como uma tentativa psicodélica de fazer gol: as canelas do zagueiro são as traves. Seu objetivo é fazer a bola passar pelo lado de fora das traves. Só que se você chutar dentro delas também vale. Chutar dentro muitas vezes é até melhor: um raio-x que atravessa o zagueiro sem maiores explicações. Como o sol que atravessa o furo na cortina. O goleiro sempre menospreza essa possibilidade, até porque ela é pouco provável. A não ser que você trabalhe pra que ela aconteça mais vezes”.

E o gato volta pra casa com a mesma solenidade selvagem dos paraquedistas em solo.

Resultado final do Grupo D

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