Torneio de contos de futebol — Mario Benedetti: GRUPO F [encerrado]

Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo
34 min readMay 22, 2020

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Resultado: Cortuluá (El jugador de la foto) venceu Sudamérica (Quando os joelhos doem) na prorrogação com 56,6%. No tempo regulamentar, eles empataram com 36,7% dos votos e então disputaram um jogo-extra. Votações do Grupo F atualizadas no fim da página. Reforçamos para autores e autoras manterem o anonimato até o fim do torneio, mesmo que o texto tenha sido eliminado

Reta final da fase de grupos do Torneio de Contos Mario Benedetti. Chegamos ao Grupo F para definir pelo voto popular mais um classificado à fase que decidirá os dois times que brigam pelo título: Rampla Juniors, Ypiranga, Libertador, Sudamérica e Cortuluá em campo para você ler e votar no seu texto preferido.

A votação do Grupo F fica aberta até domingo, 24 de maio, às 23h59. Leia os cinco textos e vote no campeão do grupo em enquete ao fim desta página (você precisará logar numa conta Google — também somos vítimas das grandes corporações). Somente o primeiro colocado da chave avança para a segunda fase.

O Grupo G está marcado para terça-feira, 26 de maio. Regulamento e tabela completa aqui. Bom jogo!

ATENÇÃO: Reforçamos aos autores e autoras que não identifiquem (muito menos republiquem) seus textos nem seus grupos até o final da Copa.

Nota: nenhum conto sofreu qualquer tipo de edição por parte da equipe do Puntero Izquierdo.

O Insondável Ócio

Foi por um inusitado acontecimento que meu pai, borracheiro, se tornou um comediante de modesta carreira televisiva — ele chama o que lhe aconteceu de destino, o que considero um péssimo cartão de visitas, ninguém com alma de humorista fala sério sobre destino. Sabia fazer vozes, tinha uns olhos engraçados, estalados, dominava o ritmo da prosa, dava uma gaiteada que era o toque do craque, mas era coisa nossa, papai era um anônimo convicto, tímido até para bater foto. Estava ele em uma lanchonete com três de seus mais influenciáveis amigos. Estes riam tanto e com tamanha estridência das graças do velho Hércules que, claro, incomodaram a freguesia ao redor. Exceto um bigodudo atento e solitário numa mesa lá do fundo, que lançou mão de um raciocínio visionário: se este homem mediano faz os amigos perderem a compostura desta forma, quem sabe seja este o meu salvador. Era, o bigodudo, produtor da TV, olheiro informal de talentos e sob pressão após bancar atores que eram autênticos monumentos contra o entretenimento. Entregou um cartão, que cartão não custa nada entregar, e a partir de então estava aposentado o borracheiro Hércules. Teria, pelos próximos tempos, quatro minutinhos por semana em um humorístico de premissa equivocada, uma praça, um senhor querendo ler o jornal, mas falhando na missão por causa da companhia rotativa de tipos absurdos. Meu pai se tornou Benê Cavaco, e a gaiteada era o bordão.

O bigodudo, relato paterno, sempre deu sinais clássicos de que já não esperava nada das pessoas. Para ele não havia mais evento interpessoal surpreendente, todo mundo apresentava gestos, vozes, reflexos, fraquezas e opiniões repetidas, que ele já viu antes, então qual o entusiasmo para começar tudo de novo? As pessoas eram como um jogo de vôlei, nos quais os lances têm tão pouca variedade. Bobagem, mas vá lá: para gerir um programa de humor, nada melhor do que um senhor de saco cheio. Seu bigode de nicotina detectava futilidades e seu fastio era um atalho para farejar o popular grotesco e vencedor. Foi no café da emissora, num lapso de distração, que travou conversa banal com meu pai. Perguntou o bigode ao Hércules se tinha memória de qual história, afinal, fazia, naquela noite, os três amigos tanto rirem. Hércules, claro, lembrava, mas sabia que ali, com cheiro de café no ar e com um pesado paletó nos ombros, o encanto seria outro. Jacaré na Avenida Paulista não tem o mesmo tchans. Na certeza de que não pareceria engraçado o suficiente, emendou: “Estava contando a história da bala de coco da minha esposa quando o Palmeiras perdeu da Inter de Limeira”. O talento do humor está, historicamente, na sátira competente de situações corriqueiras — para, a partir delas, pinçar algum absurdo nosso de cada dia.

O absurdo fundamental ali estava claro, e era a Inter de Limeira ser campeã paulista. Não foi inaugurado, ainda, contudo, instância satírica para épicos de pequenas equipes — embora um humorista do mesmo programa usasse uma intrigante camiseta do Ituano mas não falava de futebol. Hércules, são-paulino com cacoetes de depravação, era casado com Concheta, palmeirense de pai e vô e cachorro. Com a mãe, que vem a ser minha avó, Concheta aprendeu a fazer bala de coco, e só quem nunca viu a técnica de feitura despreza o quitute na mesa depois de pronto. Sempre comi bala de coco por solidariedade. Bater a massa, espessa e borrachuda, depois esticá-la, apertá-la, depois repetir a dose, bate, estica, aperta, incontáveis vezes, a zona que faz na cozinha, a dor no muque que dura dias, olha, não é gostoso o suficiente para tamanho trabalho. Mamãe fazia aquilo, naquela noite, não por gula, mas por superstição ou terapia. No roteiro de Hércules contado aos amigos, Concheta ligava o rádio, aumentava o volume, abaixava em seguida, achava que o volume certo podia dar sorte, mas não sabia qual era, depois encarava as imagens da TV mesmo, e xingava, amaldiçoava o pai e o avô, repetia os gestos, trocava de estação, “vai ver é a estação que dá azar”, aumenta, abaixa, TV, e, com a vaca já no brejo, a guloseima deve ter sujado o nariz do Osmar Santos lá na cabine do Morumbi. Concheta, indignada, espremia a massa borrachuda no aparelho de rádio, como se quisesse asfixiar os cabeças-de-bagre do Palmeiras. Rangia os dentes e declarava guerra a toda a Pompeia. Envelopou o radinho com massa de bala. Dantesca e humana reação. Hércules riu, ajuizadamente por dentro, como se fosse casado com Fafy Siqueira e observasse um número genial. O radinho nunca mais se livrou dos resquícios de açúcar e fermento.

Fez-se, tempos depois, uma amizade de Morumbi entre papai e bigode — que, diga-se, ficou fascinado com a cólera doce de “dona Concheta”. Hércules e seu olheiro dividiam amor pelo mesmo clube, foram felizes naquele 1986 e tinham opiniões divididas sobre os Menudos do Cilinho. Ao falar do ponta Sidnei, por exemplo, Hércules transformava-se. Sumia qualquer fiapo de humor, era aquela raiva bonita de ver, diamante bruto. Na hora de defender Silas, que para o bigode não passava de um enjoado inútil, Hércules, no entanto, recobrava a generosidade, a filosofia e lembrava o amigo que o futebol, assim como a vida, não é evento só dos gestos úteis, que o milagre da finalidade do jogo está às vezes em negar o seu fim, valorizar o rococó do rodopio do meia que esfria o jogo. Todo movimento do futebol desafia a ideia utilitarista do jogo, ou então seriam 11 bárbaros correndo na direção da meta. Estar a cinco metros da trave não é, necessariamente, tão chance de gol quanto estar 15 metros atrás, mas bem organizado. “O gol é a minha piada, mas a minha piada está em uma frase. Até eu chegar nela, te distraio com uma fala mansa, sem pressa, um jeitão, um salamaleque. É assim o Silas procurando o Nelsinho. Tá te enrolando. Uma hora ele espeta aquela boa”. Só que, como bom torcedor contraditório, Hércules reclamava dos “dribles inúteis” do Sidnei sem considerar que cada drible, mesmo longe do gol, fragiliza o marcador, empresta brio ao torcedor, pareia o jogo a uma dança, alivia o coração de alguém para quem o futebol não é assim tão matemático. O toque de lado é o ato civilizatório do futebol.

Hércules, meu pai, sempre sondou curioso o desamor artístico que o arrebatava entre um apito inicial e um apito final. Era um tipo afetuoso, sorrisinho bobo para falar de guerras e fraturas, menos naquela hora e meia. Já percebera que futebol não rende riso na Praça, e queria mesmo compreender a desconexão entre o coração de um torcedor e aquelas letras bonitas que consagravam o matrimônio entre o jogo brasileiro e a mais refinada arte. Aqueles códigos poéticos não encontravam eco em sua experiência pessoal. Eu concordo com ele. Quando crianças, sofremos nossa primeira profunda experiência de desamparo quando precisamos defender nosso time na escola após uma derrota e estamos longe de nossos pais — e dos dados históricos que eles puxam da manga e a gente não sabe puxar. É preciso coragem para reagir, mas faltam argumentos quando a derrota foi ontem e o rival pulula debochado pelo pátio. A arma da ofensa pura costuma ser a única à mão. Depois, quando mais adolescentes, o futebol canaliza um desabafo sexual e suicida, uma urgência nossa por tornar tudo grave e definitivo. Não existe revanche para um adolescente torcedor, porque o mundo vai acabar naquele dia mesmo. São experiências mais carrancudas do que líricas, aflitivas na base, e é zonzo e áspero que se chega à vida adulta como torcedor. O elogio à beleza só conversa e habilita corações mais veteranos. Mesmo no estrelão do futebol de botão ou nos arranca-tampo de futebol de rua, não é exatamente uma sinfonia que a gente emula. Gérson, Tostão, Pelé, Rivelino e Jairzinho não eram cinco violinos na infância do meu pai. Eram cinco espadas.

E o grito de gol adulto, gutural e nicotinado, não é o grito de gol infantil, estridente e maravilhado. Gritam por mundos distintos. Entre eles, um punhado de anos esgrimindo o futebol. Um dia nos cobram a defesa daquelas cores como se a dignidade de nossa gente dependesse de uma boa resposta e uma capitulação fosse custar a expulsão sumária de casa, e no outro parecemos pacientes de um manicômio-barra-zoológico aos olhos dos libertos, como se fôssemos pessoas com tendências obsessivas que se importam demais com um objeto, ora essa, “simbólico” (ver um jogo importante rodeado de pessoas que não ligam para futebol é a estupidez matriz). Tem sempre carga na caçamba, e chega depois o dia no qual “deveríamos apreciar a beleza do jogo”. Tudo bem, justo, a beleza deve ser apreciada mesmo, mas como? Hércules não foi ensinado nem a apreciar a beleza de Concheta. Muito menos saberia como dissolver as próprias experiências de arquibancada para, ao chegar na idade dos trintões, abrir um sorriso hippie para expressar afeto pela coluna do Armando Nogueira do último sábado. Nem borracheiro, nem humorista: são-paulino. Se ao menos fosse um homem feito durante os anos do Santos de Pelé no Pacaembu, teria uma chance maior de associar o futebol ao prazer. Fizemos tudo no susto. O Maracanã, daquele tamanho, não foi, garanto, resultado de reuniões burocráticas entre arquitetos e engenheiros. Fomos tricampeões do mundo e nem tínhamos propriamente um país, um governo, um campeonato nacional. No exagero irresponsável dos radialistas, na poesia mansa dos cronistas, nos cacoetes dos atletas que levavam, sei lá como, uma vida normal — na medida de normalidade possível para quem bate uma bola para 100 mil pessoas -, uma parte dos nossos homens e mulheres de arquibancada, Hércules incluso, nunca encontrou essa tal de alegria do futebol. Tampouco o humor.

Hércules lembrou disso com mais ênfase na tarde de sol arruinada por Tupãzinho, um felizardo e impertinente reserva que entrava no decorrer de toda e qualquer partida do Corinthians, e acabara de negar ao São Paulo, pelo segundo ano seguido, o título brasileiro. Deu Coringão de Neto, perdeu o Tricolor de papai. Chinelo gasto, laterais dos pés tocando o concreto da rampa, foi reconhecido da TV, autografou um caderninho na saída, ambos com cara de bosta, “sou teu fã”, “obrigado”, não teve o direito de ser um anônimo — eu imploro, parem com os closes nos torcedores de futebol, arquibancada é plano aberto. Não bebeu nada em lanchonete nenhuma, queria a casa logo, aquela dorzinha de cabeça de quem almoçou cedo e tomou muito sol-de-Morumbi, mas riu, de novo por dentro e não por fora, quando, em casa, foi recebido por Concheta e balas de coco fresquinhas, feitas nem por superstição nem por terapia, mas por ócio de quem não tinha o time na decisão. Nunca foi em nome do riso e do humor. O São Paulo, para meu pai, era um drible — do Sidnei? — no aterrorizante e insondável ócio vivido por aqueles que não tem time jogando em um final de semana.

Lo Delta

Foi Ubaldo quem disse uma vez que o blaugrana do Barça era copiado do azul e grená do Club de Fútbol Camarles, e não o contrário. E o disse ali mesmo, na arquibancada ao lado do campo. A linha férrea aqui atrás, para lá a rodovia N-340. Nada mais longe do Camp Nou. Não temos vivido dias de glórias, já que o patrocínio da padaria de Marin e o apoio da prefeitura não podem fazer frente aos investimentos das equipes de Tortosa, Gandesa e Amposta. De vez em quando se rifa um pernil — e então se faz de um tudo para que o sorteado seja alguém da torcida local -, mas dá igual. Os mais caros jogadores da região não vestem nossas cores. Alguns dizem que sobraria mais dinheiro se a prefeitura não gastasse tanto com as corridas de touros, mas logo outros se apressam em defender que há outros esportes na cidade ainda mais negligenciados que não se saem tão mal nas competições. O ciclismo, por exemplo. Fato é que Piotr, Navarro, Martínez e Bernat não teriam feito sua estreia tão cedo se não fosse pela penúria dos cofres do clube.

Isto te digo sem problema algum, pois fui eu quem sugeriu fazê-lo — e olhe que desde então já ouvi muita coisa, sobretudo por ser pai de Martínez. Até que eu levaria comissão. Mas você é de fora e talvez não entenda, ao menos num primeiro momento, alguns detalhes da vida aqui no Delta. Veja bem, isso aqui é um lugar de passagem, a meio caminho de Valencia. Os jovens vão-se fazendo homens, não há empregos suficientes além do cultivo do arroz, que é duríssimo e sujeito aos humores do tempo e dos governos, eles se cansam de rondar pelas ruas vazias do poble e então vão embora, para voltar nos fins de semana quando arrumam trabalho não muito longe — se arrumam. A Espanha vazia chega aqui, já. A Espanha da falta de oportunidades, de precarização dos campos e do imposto sobre o sol. O atraso. Daí que é muito comum que a gente daqui veja tudo que é de fora como melhor. Tudo menos o arroz bomba e as angulas, claro. Isto se aplica aos jogadores, também. Pois nunca entendi em quê os daqui ficam a dever aos maños e riojanos. Já deve ter reparado como jogam nesta nossa categoria. É o que digo, muito músculo, pouca visão. E no entanto já era verão, metade do plantel fora despedido em fim de contrato e não tínhamos um time, tampouco dinheiro para renovar o elenco.

Caminhávamos, o senhor Garriga e eu, ali atrás do gol, ele a me dizer que a coisa pintava feia. A diretoria estava ciente de que precisávamos de um migcentre, dois interiores e um ponta, além de um zagueiro que saísse jogando e um matador. Sim, pode rir. Mas era nesse pé que estávamos, e todas as primeiras opções para cada posição fracassaram. Um outro empréstimo com o banco estava fora de questão. A equipe escapara da queda por pouco. O primeiro time dos juvenis não teve a mesma sorte. Foi então que me veio a ideia, que logo falei como quem atira uma pedrinha no mar — pois nós desta terra somos qualquer coisa, mas sobretudo autênticos. E os garotos do juvenil de segundo ano?

Garriga parou de andar e me olhou surpreendido. Mas eles são da quinta de… quê, 2001? 2002, corrigi. E vêm subindo as equipes de categoria a cada ano. Sim, era verdade, e desde os infantis. Poderíamos subir três ou quatro e concentrar os esforços para contratar um defensor e um atacante experientes. Garriga não acabava de se convencer. Esfregava os dedos grossos, ele mesmo um arrosaire de toda vida, consciente que uma colheita ruim era um golpe quiçá assimilável, mas duas em seguida eram a ruína. Porém, assim se fez.

Bové voltou de Amposta e fui eu quem lhe sugeriu deixar a lateral e fazer a zaga pela esquerda. Se visse a cara que me fez! E logo, que achado. Não sei se você sabe mas ele jogou na base do Nàstic; se não chegou a divisões superiores foi por inépcia dos clubes maiores ou por vontade de seguir aqui no Delta, perto da família. Isso passa, já sabemos. O jogo começava com ele e seus passes, passava pelos chavales com aquela naturalidade que você comentava outro dia, chegava ao Fernández, e fim de história. Sempre me surpreendeu isso, do Fernández, tão simples, tão comum em tudo, e logo a bola lhe parava aos pés e era como se algo passasse sem que notássemos, como se a história driblasse o próprio tempo e fizesse a si mesma enquanto piscamos os olhos. E ainda por cima se casou com a Esther Masferrer, filha do Martí Lo Rubio. Um craque.

Entre a nascente e o mar há de haver um rio, e desses não sei se ainda há o que te contar. Só sei que lembro de uma tarde, uns dois ou três anos atrás, eu caminhava de volta para casa após uma derrota quando os avistei na quadra, desde a ponte. Eles jogavam descalços, dois contra dois, os tênis de futsal fazendo de balizas. Algo passava ali, naquela quadra de concreto; estava presente a competição, a vontade de ganhar — e de não pagar o refrigerante no fim do dia -, mas também a intuição de que aquilo era algo diferente. De vez em quando me consultavam sobre se fora falta ou não, eu jogava a bola ao alto e eles seguiam, as pernas imundas até as canelas. Os quatro riam a cada jogada mais elaborada, uma caneta, até das faltas. Assim foi até que a noite caísse, e era quase todos os dias durante as férias ou quando os deveres de casa permitiam, e então eles voltavam fedendo como a morte para suas respectivas casas, para tomar banho, cortar a pele sobrando de um dedão desencapado e jantar.

E em campo, nesta temporada, foi como se aquela tarde não acabasse. Diziam que viria alguém de Girona para vê-los, pois já os tinham notado desde o último torneio de cadetes do qual participaram na Costa Brava — 3 a 1 no Villareal, tu! — mas estavam curiosos por saber como se sairiam contra marcadores mais duros. Na primeira partida, um 4 a 0 nos de L’Ampolla, e a torcida gritando los d’Ampolla mengen bolla! Sim, não é cordial dizer que o povo de uma cidade come merda, mas a rivalidade, você sabe. O jogo em Perelló foi igual, enfiaram três balaços no goleiro deles e quando os da casa gritavam o nome do time, os nossos rebatiam cagalló, numa rinha de tempo e contratempo, Perelló-Cagalló, que quase acaba em função. Íamos em segundo na tabela e nosso lado ia crescendo. Um dia quiseram me pagar uma cerveja e não aceitei. Não era certo e te digo o motivo: eu não fiz nada, eles faziam tudo. Acertei a defesa, só, e Fernández sem dúvida foi outro acerto. Mas em resumo o que fiz foi dizer a eles do meio para jogarem como jogavam na quadra. Sim, compactos, se aproximando para as tabelas e com paciência para o momento de abrir o jogo, valendo-se dos espaços que fatalmente viriam para a velocidade de Martínez. Aproximar, expandir, recuar, passar para a frente, como a maré. Não ensinei nada, sabe? E eles faziam tudo rindo, mesmo em dia de treino físico. Mas então houve algo importante, e que abalou a todos por aqui, que foi a morte da avó de Bernat.

Há coisas que não se ensinam, como te dizia. Seja por desnecessário ou por impossível. Você tem a sua mãe ainda viva? Muito bem, pois que cuide bem dela. Eu não, o que é normal, posto que já tenho alguma idade. Mas a avó era para ele como uma mãe, e você pode imaginar como fica um rapaz de dezessete anos. O que dizer ou fazer numa hora dessas? Ele ficou uma semana livre dos treinos, não foi às aulas, e todos estávamos preocupados quando ele apareceu para concentrar. Estava calado. Eu me aproximei no vestiário, mais para saber se ele estava em condições, confortar de alguma forma. Ele se levantou do banco e me disse, antes que eu nada: Ela me levou aos meus primeiros jogos. Algo que sempre dizia quando me via chorar de raiva por ter perdido era “enquanto respirar, lute. Assim você pode sair sempre de cabeça erguida”. E naquele dia Bernat, que já era dos mais aguerridos, foi estupendo. A torcida, sabedora de tudo, o aplaudiu e logo emudeceu em respeito, à espera de um sinal de sua parte, que não veio. O jogo começou e ele não tardou a pegar a pelota e deitá-la na grama. O cabeça de área não esperou, como sói passar com quase todos os cabeças de área, e foi de primeira. O caño passou limpo entre as pernas. A arquibancada soltou o ar num longo ó. Os outros jogavam com dois volantes e o segundo não tardou a sair na cobertura do primeiro. Bernat corria para completar a entortada inaugural, o segundo volante achou que dava para chegar antes, não dava, e de uma ameaça de quadril para a direita se seguiu uma puxada de pé para a esquerda, dando um tapa na frente; o marcador deslizou e caiu. Desta vez o ó ecoou mais forte. Diante de si o beque, Bernat passou a Piotr, que escorou para a chegada de Navarro; ele chuta forte, a defesa sabia, e olhando rápido para o gol, virou todo o jogo. Martínez voava na ponta e o passe lhe chegou rompendo entre o lateral e o quarto zagueiro, que contavam com o chute de Navarro. Martínez centrou atravessado, rasteiro, e daqui a muitos anos os cerca de vinte torcedores atrás da rede, entretidos em elogiar a mãe do goleiro rival, hão de lembrar a impressão que lhes causou aquele jogador que dividiu numa arrancada entre ombros e cotovelos e puxões, e se jogando de carrinho rente ao segundo pau alcançou a bola para lhe desferir uma patada que estufou o barbante.

Desde então tínhamos a impressão de que o time jogava com uma espécie de febre, e talvez eles não tenham sido os únicos a mudar. Justo quando o time se tornava vitorioso, os resultados pareciam não importar tanto. Num jogo em que empatávamos a zero e o adversário fazia cera já no começo do segundo tempo, um jogador deles caiu no meio. A arquibancada se impacientou, achando que não era nada. Eu mesmo achei que era nada. Navarro e meu filho se aproximaram. O treinador jogava a água benta na coxa. Os dois lhe deram as mãos e o ajudaram a se levantar. Puseram os ombros sob seus braços e o carregaram para fora. Sem pressa, havia tempo para tudo. É comum que quando um jogador sai machucado a torcida o aplauda pela bravura. Os camarlencs, contudo, aplaudiam os seus. Eu me emocionei. Percebi que o que nos enchia de orgulho era como jogavam, e o futebol se comprovou muito maior que o jogo em si.

Não, eu não sei se eles ficarão uma temporada mais. Nem chegou dezembro e o telefone do senhor Garriga não para. Só sei que outro dia meu filho mais novo, Lluc, dormiu e acordou usando uma camisa velha do irmão de quando ainda era cadete, que lhe servia como uma camisola azul e grená — e não eram as cores do Barça. Os cabelos em revolta, os olhos cheios de remela, ele de repente se lembrou de algo e perguntou, arregalado: o mano joga hoje?

Como já te disse, a vida pode ser muito dura. E até hoje não descobri se momentos assim se plantam ou apenas nascem.

Nó na garganta

- Alôe?

- Oi Vó, tudo bem?

- Oi Tonico!

- Não vó, aqui é o Chico.

- Ah, oi Chiquinho, tudo bem? Eu achei que era o Tonico, haha, a voz de vocês é tão parecida.

- Eu sei, eu sei, você sempre confunde né.

- Pois é meu filho.

- E aí, tá tudo bem por aí vó? A senhora num tá saindo de casa não né?

- Ah tá tudo bem sim, tô aqui, fazendo uns sequilhos amanteigados.

- Tá boa de saúde vó? Você viu que tá perigosa essa gripe aí que tá dando na tevê em…

- Ih meu filho, você sabe que eu tenho o corpo-fechado né. Isso de gripe não tem comigo não, eu faço minhas rezas todas as noites, aliás, rezo muito pra você a noite também, pra sua mãe, pro seu irmão, tá todo mundo na minha reza da noitinha antes de dormir. Pode ficar tranquilizado tá?

- Tá certo vó. Viu, era sobre isso mesmo que eu queria falar… Você lembra, há uns dez anos atrás, um almoço aí na sua casa, você fez aquela sua galinhada deliciosa, e eu comentei que tava mesmo precisado de um frango? Lembra? Falei que o meu time ia jogar contra um goleiro que tava trancando o gol?

- Lembro sim meu filho. Era dia de Santa Clara. Acendi uma vela pra santinha, e fiz uma reza bem riscada. Foi num escanteio da esquerda, o goleiro se embananou todo com a bola, sobrou pra você na linha do gol, foi só empurrar né? Depois o goleiro deu entrevista dizendo que ficou cego na hora, que se atrapalhou com a luz dos refletores num foi?

- Isso, isso, foi isso mesmo vó. E depois, uns quatro anos atrás, quando eu te liguei no intervalo de um jogo lembra? Falei que a gente não podia tomar gol de jeito nenhum no segundo tempo, era só segurar o empate, que era campeão, lembra disso?

- Sim, claro que lembro! Eu desliguei o telefone e fui correndo pegar o São Longuinho. Rezei um ponto antiiiiigo de seu tranca-ruas, e tranquei o São Longuinho dentro da gaveta, virado de costas. Não deu outra… Quando deu uns trinta minutos do segundo tempo, os gandulas todos desapareceram com as bolas. Que confusão que foi, haha.

- Pois é vó… então, eu lembrei de uma coisa que me deixou encasquetado. Você lembra uns dias atrás, quando eu comentei que o meu time tava pra ser rebaixado? Eu tava muito abatido, e disse que preferia que não existisse mais nem futebol, do que meu time cair pra segunda divisão… Tá lembrada vó?

- Deixa eu pensar meu filho, não sei, eu tô com a cabeça de vento esses dias sabe? Não tô lembrando não.

- Faz pouco tempo vó, foi no começo do ano…

- Olha Chiquinho, você me pegou no meio de uma fornada de sequilho amanteigado… Eu vou ter que olhar na folhinha depois as datas, aí você me liga amanhã que eu vejo se lembro olhando na folhinha tá?

- Tá bom vó, até amanhã…

***

- Alôe?

- Oi Vó, tudo bem?

- Oi Tonico!

- Não vó, aqui é o Chico.

- Ah, oi Chiquinho, tudo bem? Eu achei que era o Tonico haha, a voz de vocês é tão parecida.

- Eu sei, eu sei, você sempre confunde né.

- Pois é meu filho.

- Então vó, você conseguiu olhar na folhinha? Lembrou do dia?

- Viu, eu tava querendo mesmo falar com você Chiquinho, não é você que mexe com esses troço de informática? De computação?

- Não vó… não, eu sou jogador de futebol, o Tonico é jornalista.

- Isso, então. Fala pro pessoal, que esse negócio dessa gripe que tá aí, que tá trancando a garganta do pessoal, então, avisa que a melhor coisa é fazer um gargarejo de limão cravo com gengibre e alecrim do mato. É batata. Duas vezes por dia. De noitinha antes do banho sabe?

- Certo vó… Mas e o dia, você lembrou do dia?

- Ah sim, deixa eu dar uma olhada na folhinha aqui, peraí… Segura na linha aí viu… Então, Chiquinho, tá aí?

- Tô vó, pode falar.

- Então, eu vi aqui, lembrei viu? Era dia de São Brás! Sabe o que eu fiz? Você disse que não podia perder de jeito nenhum né, se não ia ser rebaixado… Pois eu amarrei um barbantezinho no pescocinho do São Brás coitado. Foi meio exagerado, eu sei, dei um nó na garganta dele bem apertadinho sabe? Aí fiz uma reza forte, uma oração pra torcida do outro time não conseguir gritar gol… Funcionou Chiquinho?

- Então… funcionar, funcionou… mas é que…

- Ai caramba, agora que eu tô lembrando disso! Esqueci o coitadinho do São Brás amarrado dentro do vasinho de porcelana chinesa que seu vô me deu de presente naquela viagem pra Cambuquira… Ah aquela viagem foi maravilhosa sabe? Lá tem uma água ferruginosa, é milagreira que só. E o hotel então, uma pousadinha, o café da manhã era maravilhoso e…

- Mas vó, onde tá o santo vó?

- Ai coitadinho do São Brás! É verdade! Ta lá dentro do vasinho amarrado até agora!

- Caraca! Só pode ser isso!

- Só pode ser o quê menino? Desembucha logo meu filho!

- Essa gripe que o pessoal tá pegando, que deixa todo mundo sem ar… Foi tudo muito rápido, e eu tava pensando que a coisa engrossou foi logo depois desse jogo sabe? Esse jogo que você rezou pro São Brás… O pessoal que foi no estádio ver esse jogo, saiu todo mundo com essa tal gripe. Aí o negócio começou a se espalhar geral. É um troço altamente contagioso. Os estádios estão fechados, jogos cancelados, o campeonato inteiro parou! Ninguém mais grita gol. O pior é que essa peste de nó na garganta tá se espalhando rápido… É que nem eu te pedi naquele dia, eu disse que preferia que o futebol acabasse…

- É. São Brás não falha.

- Como assim vó? Não pode ser… Meu Deus do céu! Os cientistas do mundo inteiro estão se unindo para sequenciar o genoma do vírus. Ontem mesmo o Tonico fez uma matéria sobre uma proteína sintética que estão desenvolvendo para produzir testes rápidos de diagnóstico. A ciência está focada em produzir uma vacina, os virologistas e sanitaristas mais renomados dizem…

- Chiquinho, alto lá. Tenha mais respeito com sua vó. De mandinga eu entendo.

- E como faz então vó?

- É só desatar esse nó ué. Eu vou lá agora mesmo buscar o santinho e desatar o barbante, me liga amanhã tá?

- Tá bom vó, vai depressa.

***

- Alôe?

- Oi Vó, tudo bem?

- Oi Tonico!

- Não vó, aqui é o Chico.

- Ah, oi Chiquinho, tudo bem? Eu achei que era o Tonico haha, a voz de vocês é tão parecida.

- Eu sei, eu sei, você sempre confunde né.

- Pois é meu filho.

- E então vó, desatou o nó? Achou o São Brás?

- Achei sim meu filho, mas não desatei o nó não…

- Porque vó? Desata esse troço logo!

- Eu não consegui. Eu tentei de tudo que foi jeito, já rezei quebra-demanda… o negócio tá firmado no grosso. Não tem jeito não.

- Como assim não tem jeito?

- Tá encruado.

- E num dá pra rezar pra outro santo?

- Só se for uma amarração e… Você sabe que essa noite eu sonhei com o Sócrates? Agora que eu tô lembrando… o doutor Sócrates era médico né? Eu sonhei com ele todo de branco que nem médico mesmo, e no jaleco dele tinha bordado uma imagem de Cosme e Damião. Foi isso. E ele tava comendo um sequilho amanteigado ainda por cima. Haha.

- Mas o que esse sonho significa vó? Da pra fazer alguma coisa?

- Perai, deixa eu dar uma olhada na folhinha… segura aí… Pronto, voltei, tá escutando Chiquinho?

- Pode falar vó.

- Bom, amanhã é dia de São Pedro. Vou fazer o seguinte, vou colocar o santinho do Cosme e Damião do lado do São Brás, vô deixar um sequilho do lado deles, e vô rezar pra São Pedro, que tem a chave do céu… O doutor Sócrates é médico, ele sabe o que fazer… São Sócrates! Haha.

- Eu te ligo amanhã vó.

***

- Alôe?

- Oi Vó, tudo bem?

- Oi Tonico!

- Não vó, aqui é o Chico.

- Ah, oi Chiquinho, tudo bem? Eu achei que era o Tonico haha, a voz de vocês é tão parecida.

- Eu sei, eu sei, você sempre confunde né.

- Pois é meu filho.

- Deu certo vó! Deu certo!

- O que foi meu filho?

- Você não tá vendo na televisão? Os médicos tão falando que o pico da doença já passou! Os hospitais estão esvaziando, o número de casos tá baixando drasticamente… Do mesmo jeito que a doença surgiu de repente, ela tá desaparecendo! Estão comparando com a gripe espanhola e…

- Ah sim. Eu vi hoje de manhã… O barbante desamarrou sozinho, e ainda por cima o sequilho amanteigado desapareceu. Rezar pra Cosme e Damião dá nisso, é a criançada, os erês…

- Graças a Deus vó! Graças a Deus! O futebol vai voltar!

- Agora, tem uma coisa viu… Aquele negócio do seu time ser rebaixado… Eu bem que rezei pra São Pedro também, tentei dar uma aliviada pro seu lado, mas num sei não.

- Tem que ver isso aí vó… os dirigentes ainda tão discutindo como vai ser pro campeonato voltar, o calendário, essas coisas…

- Eu vou dar uma olhada na folhinha aqui, me liga depois.

- Beijo vó.

- Outro.

***

- Aloê!

- Oi vó, tudo bem?

- Oi Chiquinho!

- Não vó, aqui é o Tonico.

- Ah, oi Tonico, tudo bem? Eu achei que era o Chiquinho haha, a voz de vocês é tão parecida.

- Eu sei, eu sei, você sempre confunde né.

- Pois é meu filho.

- Você tá vendo o Chiquinho na televisão vó? Não é incrível?

- Ih meu filho, faz tanto tempo que eu não ligo esse troço, peraí que eu vô chamar seu vô…. ô Milton, vem aqui Milton… Liga a televisão aqui que o Tonico tá falando na televisão!

- É o Chiquinho que tá na televisão vó.

- Isso, então. Olha, o seu vô foi fazer feira. Ele gosta de ir na hora da xepa… semana passada ele trouxe uma laranja seleta que tava um doce que só vendo sabe? Mas me conta, porque que o Chiquinho tá na televisão?

- Bom… Resumindo… Depois que o futebol voltou, o pessoal ficou discutindo como que ia encaixar todos os jogos nas poucas datas que faltavam. É muito jogo pra pouco domingo, sabe? Aí um desses cartolas malucos veio com essa ideia mirabolante de botar todo mundo pra jogar tudo que faltava em um único dia! Vê se pode? Parece coisa de outro mundo, mas por incrível que pareça, o pessoal estava há tanto tempo sem futebol, que adoraram a ideia!

- Peraí… acho que eu consegui ligar esse troço aqui. Agora é tudo nesse controle remoto, eu não consigo acertar os botãozinho miúdo…

- Olha que lindo que tá vó! O dia em que o futebol voltou! As torcidas de todos os times entrando e saindo dos estádios, andando pelas ruas, dançando, bebendo, cantando foguetes e bandeiras, chovendo papel colorido dos céus, vozes se esgoelando gritando todos os gols de todos os times ao mesmo tempo, com o fôlego de meses mudos sem cantar, tirando de uma vez por todas aquele nó na garganta! É uma chuva de gols! São Pedro abriu a torneira dos gols, e o Chiquinho tá lá!

- Que bonito meu filho, vou até picar um jornal aqui pra tacar pela janela!

Quando os joelhos doem

O zagueiro espanou de qualquer jeito. A bola subiu uns cinco metros, desceu veloz e reta, mas Sebastian a acolheu sem dificuldade no pé direito.

Deu um tapa e cortou o primeiro marcador. Nem parecia tão gordo. De carnes duras. Ainda assim gordo. Fintou o segundo e chutou forte pouco depois de passar do meio de campo.

Feito uma Jabulani, a bola percorreu um trajeto sinuoso, fez que ia para um lado e, sem resvalar em ninguém, desviou de repente para o outro. Garoto esquelético de uns quinze anos, o goleiro pulou para trás e esticou o quanto pôde o braço direito. A bola bateu na mão aberta e saiu pela linha de fundo.

Foi um lance bonito. Aplaudimos de onde estávamos na arquibancada do campo de barro do Centro Social Urbano.

“Esse menino pega muito. Parece com você, Binho. Quando tinha a idade dele”, disse Hilton.

“Foi uma puta defesa mesmo”, respondi.

“Você poderia ter sido um goleiro foda. Um novo Dida. Eu lembro que você agarrava muito.”

“Pois é. Não era pra ser”.

Começava a anoitecer. O baba só iria durar mais uns quinze minutos.

O goleiro se levantou. Sorria orgulhoso. Adversários e companheiros o cumprimentavam.

Somente Sebastian não expressou qualquer reação. Sempre foi assim, desde quando éramos pivetes. Nem quando a bola entrava, ele comemorava.

Continuou parado, com as duas mãos sobre o quadril largo, em frente ao trecho do campo que tem um relevo semelhante ao leito de rio seco do semiárido. Foi ali mesmo que fodi meu joelho esquerdo, alguns anos antes, e perdi as chances de fazer peneiras no Bahia e no Vitória. Nunca mais fui o mesmo e tive que arrumar outra coisa para fazer da vida.

“Por que ele não deu certo no Grêmio?”

“Quem?”

“Sebastian. Ele foi para lá ainda pivete, né?”

“Não ficou muito tempo. Não sei bem o que aconteceu. Essa gente lá do sul… é tudo estranho. Não gostam do povo daqui. E Sebastian, você sabe como é… metido como a porra.”

“Porra, me disseram que ele jogou com Ronaldinho…”

“Sim. Na base.”

Sebastian se profissionalizou no interior da Bahia. Virou, rapidamente, um andarilho da bola. Rodou muitos estados, passeou pelo Paraguai, Bolívia e parou no México. E foi lá que os joelhos dele estragaram. E foi lá que ganhou mais dinheiro na vida. Jogou durante dois anos por lá.

Quando voltou, dizia que a coisa que mais gostava de fazer no México era de andar no deserto à noite. Nunca explicou como machucou os joelhos, só dizia que não foi em campo.

Vai ver que tropeçou no escuro e caiu em cima de um cacto, vai saber. Sebastian sempre foi um bicho esquisito.

Não esperamos o jogo acabar. Apenas queríamos comprovar que Sebastian estava lá. Acenei para ele antes de sair.

Quando ele voltou do México, comprou uma moto invocada e a casa em que ainda mora em Pernambués. Jogou um tempo no Galícia e depois abandonou a carreira. Tornou-se cobrador de ônibus.

Duvido que tenha feito gol mais bonito do aquele pelo Galícia: o mais bonito do campeonato baiano daquele ano. Ainda na velha Fonte Nova.

Sebastian driblou três meio-campistas do Bahia, colocou a bola por entre as pernas do zagueiro central e estapeou a bola por cima do goleiro que ficou parado, estático, humilhado. Era o primeiro gol da partida e Sebastian apenas voltou andando para o meio de campo. Como se não fosse nada. Como se não tivesse feito nada.

O Bahia ganhou por cinco a um.

“Como ele pode ser tão burro? Onde já se viu levar um pacote de cinco quilos numa bolsinha no ônibus?”

Hilton abriu a pochete e pegou uma garrafinha de cachaça. Sempre tomava uma dose antes de fazer o serviço. Dava coragem, ele me confessou.

“Ele faz a linha Pernambués-Barra. Iria repassar para um conhecido dele, um parmalat, para vender pelos bairros de lá. Pagariam a parte do chefe e dividiriam os lucros. O parceiro entraria no buzú, pegaria a sacolinha, saltaria no próximo ponto e pronto.”

“Faltou combinar com os assaltantes. Que imbecil. Perder cinco quilos assim, no mole”.

O chefe demonstrou paciência. Deu a ele um tempo para pagar o que devia. Éramos todos amigos de infância. A gente só derruba quando não tem mais jeito.

Sebastian preferiu sumir. Ele não tinha mais a moto. Mesmo se fosse demitido e vendesse a casa, não chegaria nem na metade do que nos devia.

Reapareceu há poucos dias dizendo que estava perto de ter todo o dinheiro.

Claro, meu velho, você tem mais alguns dias. De boa. O chefe disse e olhou para mim.

Quando se trata de um conhecido, de um amigo, eu não gosto de chegar de surpresa. Eu tenho consideração pelos outros. Prefiro que a pessoa me veja ao menos uma vez e tenha a chance de fugir ou que se prepare para o que vai acontecer. O chefe sabe que eu ajo assim. Ninguém nunca escapou.

E como somos os justos, chegará a vez do playboy também.

Sebastian demorou para chegar em casa. Passava da meia-noite.

Esperávamos por ele em frente à casa. Quando nos viu, não demonstrou qualquer reação. Não adiantaria muito correr. Éramos os dois fodidos do joelho. Só que Hilton sempre foi rápido.

Abriu o portão em silêncio e entramos logo atrás dele sem esperar convite. Ao entrar em casa, se jogou por cima do sofá e nos encarou, desafiante. Continuamos de pé.

“Pensei que ele tivesse me dado mais tempo.”

“Você já teve tempo pra caralho, velho”, disse Hilton.

“Estou muito perto mesmo, diga a ele que…”

“Por que você não deu certo no Grêmio?”, perguntei.

Sebastian quase sorriu, surpreso.

“Não sei, os gaúchos são estranhos. Não me acostumei também. A verdade é que nunca gostei de ser jogador profissional, treinar, se concentrar, não poder comer o que a gente gosta, só insisti porque não sabia fazer outra coisa. Eu só gostava de jogar mesmo.”

“Como era o Ronaldinho?”, perguntou Hilton.

“Nunca joguei com ele”.

“Você ia fazer um golaço hoje”, eu disse.

“Você viu, né? Aquele pivete pega bem. Me lembrou você. Você seria um goleiro foda, Binho, se tivesse tentado”.

“Não foi escolha minha. Meu joelho fodeu de vez. Nunca sarei de verdade. Ainda dói se corro”.

“Os meus sempre doem. Mesmo quando passo o dia todo na cama, estirado. É foda. Entrei na faca, fiz fisioterapia, não adiantou”.

Sebastian se endireitou, sentou-se ereto no sofá. Era um gordo maciço. Olhou sério para nós dois. Hilton fechou a porta.

“Acho que você queria ser mais do que eu. Mas não aconteceu…”

Mostrei a pistola, bati de leve no meu joelho esquerdo, sorri para ele e apontei.

“Pois é, meu velho. Não era pra ser”.

El jugador de la foto

El dedo se detuvo de golpe sobre el rostro desconocido. Golpeteó dos veces encima del vidrio y siguió su recorrido. Segundos después, después de señalar cada una de las caras, repitió el procedimiento.

El cuadro colgaba de la pared de oro en la sede de Ferrocarrilero Fútbol Club. Así habían decidido llamarle los dirigentes más viejos a la pared de la que colgaban las fotos de los equipos campeones. Nada de equipos que jugaban lindo ni oncenas ganadoras de clásicos. La pared de oro solo tenía lugar para aquellos equipos que habían logrado campeonatos locales y nacionales.

Cada una de las fotografías estaba acompañada por los nombres de los jugadores que, más allá de su incidencia en el título, aparecían en ellas. La lógica era sencilla: arriba; de izquierda a derecha, tales futbolistas, abajo; de izquierda a derecha, tales otros. Ferrocarrilero salió campeón del Campeonato Nacional por primera vez en 1948. Esa foto, un poco por la artesanía del momento y otro poco por el desgaste natural del tiempo, tenía menos calidad que las otras imágenes. Ahora, gracias a las cámaras de alta definición, las fotos se verían espléndidas pero lo cierto es que Ferro no disfruta de bonanza deportiva.

La foto del equipo Campeón Nacional de 1948 estaba al inicio de la pared de oro. El dedo que osó la aventura de recorrer la imagen era de Marcos Medina, un joven periodista de la zona; hijo del pueblo como suelen decir los más grandes cuando se refieren a los más chicos.

— Pedro, vení un segundo. Vos seguro sabés, ¿quién es este que está acá?
— Marquitos fijate abajo. Están los nombres de todos los jugadores.
— Sí, vi. Pero esta foto está viejísima y el papel está todo borroneado. No se ve nada.
— A ver, dejame. Ese que está ahí es… sí. Ya me acordé. Ese es el gringo Konoval. Lo trajo el hermano, ellos no eran de acá. Sabía inglés y le pusieron así. Un día vino a una práctica, no sé qué corchos dijo en inglés y le quedó gringo para siempre.
— Pero pará, porque acá hay otro Konoval. ¿El hermano jugaba?
— ¿El hermano? El peor pata dura de la historia del pueblo.
— Bueno, según este papel Konoval es este otro. Fijate bien.
— Y esa nariz es del gringo, sí. La verdad que este otro no sé quién es. Más tarde viene el viejo Ramírez, de repente él sabe. Si querés le pregunto y te cuento.

Claudio María Ramírez era el hincha más rabioso del mundo. Sabía equipos de memoria y era capaz de relatar, como si hubiesen pasado ayer, goles de mucho tiempo atrás. Un verdadero genio de la estadística. Esa tarde, como muchas de su vida, el viejo Ramírez llegó a la sede para conversar y matar el tiempo. Allí, lo esperaba Marcos Medina.

— Marquitos. ¡Qué raro vos por acá! No tienen nada para contar los turros de Racing.
— Tener, tienen.
— Sí, es verdad que son bastantes bocones. Y eso que cada vez que vienen al pueblo se comen de a tres o cuatro tus amigos.
— Ramírez, no me comprometas. Yo soy un profesional, no vivo de esto, pero intento. Vos sabés…
El viejo sonrió apenas con la comisura de sus labios antes de responder.
— A ver, contame que te trae por la gloriosa sede del Ferrocarrilero.
— Viste la foto del plantel del 48.

— ¿Si la vi? ¿Vos con quién te pensás que estás hablando, Marquitos?
— Pará, viejo. Acompañame.

Los dos caminaron hasta el fondo de la sede. A Ramírez le gustaba y mucho ver a los más jóvenes interesados en glorias pasadas. Cuando llegaron al cuadro del equipo campeón Marcos empezó a explicarle el por qué de la cuestión.

— Este que está acá, con cara de malo y agachado, con el número cuatro, ¿quién es?
— Ese es el gringo Konoval. Tanto lío para esto, Marquitos.
— No, viejo. El gringo Konoval es este otro.

Ramírez, más por respeto que inseguridad, se acercó a la foto una vez más.

— A ver pará.

El veterano, ahora sí en un acto de inseguridad, sacó sus lentes.

— Tenés razón, Marquitos. ¿Y vos cómo sabés? ¿Sos algo del gringo?
— No, qué voy a ser. Si lo conocí recién. Me dijeron acá, en la sede.
— Abajo tiene que decir, igual ¿Te fijaste ahí?
— Sí, el papel está bastante borroneado y no se ve nada.
— Yo no quiero ser malo contigo Marquitos, pero si yo no sé, es difícil que alguien sepa. No es que yo sea un genio, pero los campeones se murieron todos. El último que quedaba era el Pato y falleció el año pasado. Después los hinchas, más que enterrados. Te diría que Doña Laura, que en paz descanse, fanática del Ferro, pero también, otra que en el cielo está la vieja.
— A mí me parece que alguien tiene que saber. No puede ser. Y otra cosa, estamos hablando de jugadores campeones, glorias del club, no de cualquier desconocido.
— No, Marquitos, eso es lógico. Vos dame una tarde y pasame tu celular. Dejame ir a casa, ahí tengo millones de diarios, cuadernos y anotaciones.

En su casa Ramirez vio su archivo y expediente una vez más. Sacó algunas cajas con recortes de diarios. Leyó y releyó, una y otra vez. Comparó fotos, ató nombres con rostros. Rememoró anécdotas. Extrañó y mucho su juventud, la vitalidad de aquellos años. Añoró jugadas, gritos de gol y camisetas. Después de un rato tomó su teléfono. Marcó el celular y apenas con una frase contó su estrategia.

— Mañana recorremos el pueblo con la foto.

Marcos, no alcanzó a responder.

Al otro día, cuando Marcos llegó a la sede se encontró con una glamurosa versión del viejo Ramirez. Estaba bien vestido y con una impronta ganadora. Llevaba, cual trofeo, la foto bajo el brazo y un cuaderno con los nombres de los vecinos más fanáticos del club.

— ¿Arrancamos?
— Yo diría.

Las palmas llamaban a la primera casa del recorrido. Después de unos segundos salió la primera familia. Ramírez hacía ademanes con sus manos, señalaba el semblante del jugador agachado, pero a pesar de las indicaciones precisas, la primera familia decía que no con la cabeza.

El pueblo estaba con la misma parsimonia de toda la vida. La calle principal tenía, como hace más de cien años, una grieta en el medio que a esa altura era tan conocida como el pueblo mismo. Cambiaban los perros, se mantenían los ladridos. Eran otras las personas, se conservaban las casas. Cambiaban las flores, envejecían los árboles.

En el segundo hogar no consiguieron el nombre, pero sí un nuevo compañero de ruta. Doña Carlota, conmovida por el pasado, se sumó a la travesía y ahora eran tres quienes recorrían el pueblo con la foto. En la tercera casa alguien más tiró el nombre del gringo Konoval. Marcos, que a esa altura sabía la historia de memoria, señaló el rostro del verdadero gringo. En la décima casa se sumó una familia entera a la búsqueda del nombre. Ocho personas marchaban, casa por casa y con igual e idéntica paciencia, con el cuadro de los campeones.

Disculpen pero no los puedo ayudar. No me gusta el fútbol. Ese no me acuerdo, sí de este otro. Gracias, pero justo ese no sabemos quién es. ¿Los puedo acompañar? Sumesé. Hay lugar para usted y quien quiera venir.

Al cabo de la hora y media, ya con el sol bajando, eran veinte las personas que golpeaban manos, tocaban puertas y sonaban timbres en busca de respuestas. Algunas familias, asustadas por las personas que irrumpían en las puertas de sus casas, optaban por no salir. Otras, vencidas por la curiosidad, decidían hacerlo. Pasaba el tiempo y con él, la avalancha era cada vez más grande. Cada vez más vecinos formaban al unísono, una única presencia.

Después de varias horas de caminata y en el medio de la muchedumbre Ramírez pensó que jamás dirá la verdad sobre aquel número cuatro agachado y con cara de malo que aparecía en la foto de los campeones del 48. Porque Claudio María el Viejo Ramírez, antes que jugador, prefirió ser hincha.

Resultado final do Grupo F — empate e prorrogação…
Resultado final da prorrogação do Grupo F

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