Torneio de contos de futebol — Mario Benedetti: GRUPO G [encerrado]

Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo
32 min readMay 26, 2020

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Resultado: 3 de Febrero (O velho da casaca) venceu o Grupo G com 54,2%. Votação atualizada no fim da página. Reforçamos para autores e autoras manterem o anonimato até o fim do torneio, mesmo que o texto tenha sido eliminado

Chegou a última semana da fase de grupos. Aquele momento do torneio em que muito time já está voltando para casa, entre reconhecimentos e cornetas da torcida local. Defensores de Belgrano, Real Frontera, Ñublense, Villa Nova e 3 de Febrero jogam por um lugar na fase final.

A votação do Grupo G fica aberta até quinta, 28 de maio, às 23h59. Leia os cinco textos e vote no campeão do grupo em enquete ao fim desta página (você precisará logar numa conta Google — também somos vítimas das grandes corporações). Somente o primeiro colocado da chave avança para a segunda fase.

O Grupo H está marcado para sexta-feira, 29 de maio. Regulamento e tabela completa aqui. Bom jogo!

ATENÇÃO: Reforçamos aos autores e autoras que não identifiquem (muito menos republiquem) seus textos nem seus grupos até o final da Copa.

Nota: nenhum conto sofreu qualquer tipo de edição por parte da equipe do Puntero Izquierdo.

Mata-mata

Abrilino teve sete filhos, embora seu coração — duro como terra seca — pendesse mais por um.

O primeiro, Anatalino, não chegou a dois dias de nascido. Depois, foram quatro mulheres (Deusarina, Deusdenita, Deusvanita e Deuselita, todas precedidas por Maria, em paga às promessas da esposa) até que, enfim, ele pudesse ter a alegria de ser pai de um varão. Alegria em dobro, porque viera gêmeos.

Aberlábio nascera frágil e, por pouco, não vinga. Até Abrilino entrou na rogatória aos céus e o garoto sobreviveu. Diferente do irmão, Alrirwertom, forte desde o primeiro choro.

Áspero como sua vida, Abrilino tinha no roçado laborioso e no futebol suas únicas paixões. E para elas encaminhou seus dois petizes. Labinho, o mais frágil, recebeu a bola. Alrir, o viril, a enxada.

A desgraça era que a paixão pela pelota estava no sangue de ambos, quase idênticos pela falta de estética que a vida destinou aos dois. Os piás locais chegavam a confundir os irmãos pela semelhança física, mas era inconteste a preferência pela técnica do mais forte. De tal modo que marcavam com barro os pés de Alrir para saber a quem escolhiam na formação dos times.

O cenário de dificuldades, porém, não abria espaços. Na cabeça do patriarca, estava desenhado o futuro. Um seria a salvação da família pela relva verde que faltava à região. O outro, o amparo na lavoura quase infértil até que a bonança chegasse.

Enquanto Alrir capinava com o pai, Labinho jogava com a gurizada para, futuramente, tentar a sorte no Aleluia E. C., time amador da cidade de Melhorança. Muitas vezes, Abrilino, após deparar-se com a enxada solta no arado, tivera de buscar à força o caçula que insistia em jogar também.

Com caráter curtido na teimosia, ele não se dobrava a pensamentos que não fossem exclusivamente seus. Seu craque era Labinho. E seu ajudante, Alrir. Ou o destino seguia seus traços ou que a vida seguisse crua como fora até ali.

***

Os guris já eram praticamente homens. Perderam a mãe, e seu pai já perdia as forças.

Talhado no trabalho, Alrir virara sujeito resignado e dedicado, sem muitas querências.

Ao contrário do irmão, acostumado à vida fácil e tratado com imprudência por pai e irmãs. Jovem, já engravidara uma moça, Excelsa, e só não sucumbira à faca do pai dela por ceder ao casamento corrido. Favoreceu ao rapaz, também, ser tido por craque do Aleluia E. C. com chances de, em breve, jogar na capital.

A esperança de Abrilino já havia se espalhado por Melhorança. Labinho era a redenção de uma cidade que, de tão esquálida, mal se achava no mapa.

***

O ensejo para a virada de sorte beirava o grande dia. Depois de muita labuta, a diretoria do Aleluia E.C. agendou sete amistosos com outros times amadores do estado, com a garantia pela prefeitura de que, em ao menos um jogo, haveria a presença de olheiros de empresários dos times da capital.

Nas seis primeiras disputas, dois empates, uma derrota e três vitórias. O que importava, porém, era a exibição de Labinho que fora bem pra lá de mediana. Apenas um gol e nada mais.

A notícia boa, porém, chegou no banheiro quase exposto que funcionava à guisa de vestiário. O empresário, afirmara o presidente do Aleluia, não vira os jogos. Confirmou presença só no último, dali a sete dias.

Alegria geral, à exceção do craque Labinho, que engoliu seco, sem demonstrar a preocupação.

Como quem dribla os zagueiros, fugiu das conversas e foi até a lavra, angustiado para conversar com o irmão.

- “Alrir, tu tem que se fazer de eu no jogo, irmão!”
- “Tá doido, Labinho. Variou das ideia, foi?”
- “Tu não entende, homem! Eu não tenho como ir…”
- “E não tem por quê? Tu não faz nada, cabra, além da bola? Pirasse, foi?”
- “Eu tô lascado, irmão. Dera eu poder ser como tu, que vive uma vida normal…”

Uma vida submissa inflamou em segundos, num sangue borbulhante que subiu, por veias, à mente de Alrirwertom, como nunca. Partiu, aos gritos, para cima do irmão.

- “Repete isso pra ver se tua vida não para antes mesmo dessa encruzilhada maluca que tu inventou! Dei de tudo pra dar conta de ajudar o pai no arado, sustentar as bocas da família e as que tu arrumou, vi a mãe morrer enquanto tu fazia o que eu também gostava e tu vem com essa? Minha vontade é de te estripar…”

Aberlábio percebeu que passara da bola e recuou o time.

- “Calma! Não fiz com intento de ferir, rapaz. Tem coisa que tu não sabe. Ninguém sabe. É pior, irmão. Só tu pode me ajudar nessa. Em nome da mãe, eu te imploro, homem!”
- “Desembesta, cabra. Que minha paciência já foi!”
- “Eu não tenho só Excelsa. Pra coisa de dois anos, me embromei com mais uma família. E tenho mais um filho. E o jogo cai no dia do aniversário dele e prometi que ia estar com o muleque. Se eu não tiver, a mãe põe a boca no mundo e eu que já tenho um sogro, arrumo dois pra querer me matar.”
- “Como assim? De quem tu tá falando?”
- “Do garoto de Graciosa. É meu, Alrir. Eu sou o pai. Não fiz registro, não assumi pra não me complicar. Mas é meu.”
- “Graciosa? De Gilenildo, do matadouro?”
- “Essa, rapaz…”
- “Tu brinca com minha cara, Labinho! Graciosa é geniosa feito o capeta. Nunca levou desaforo pra casa sem dar resposta feia de volta. Pra padre, pra prefeito, pra coronel. Duvide-o-dó que se o filho é teu ela ia ficar calada.”
- “Pra tu ver o tamanho da minha enrascada, Alrir. Graciosa, explosiva feito rabo de foguete, guentou calada não dar pio que o filho é meu. Enfrentou o pai, a falação da velharada, excomunhão da igreja. O pão que o demônio pisoteou, como dizia mainha. Tudo porque eu, sem ninguém saber, partilho tudo o que o recebo com ela. E com promessa de quando me der bem, não deixar ela e o filho em falta.”
- “Aberlábio de deus, tu é pior do que eu pensava…”
- “Eu já não tive com o menino no um ano. Mas era pequeno demais. Nem lembrança tem. Agora já tá maiorzinho. Parece comigo. Até no apreço da bola. Ela me fez prometer que eu estaria com ele no dia do aniversário. E que se quebrar o prometido, conta a verdade pra toda Melhorança. E daí, lascou-se pra eu.”
- “E tu pensou em que, Labinho?”
- “Tu joga por eu, Alrir!”
- “Se eu jogo, estrepo o Aleluia, Aberlábio! Inventa que tá passando mal, qualquer coisa, homem. Mais mentira não vai dar certo, tu não vê?”
- “Essa gente daqui é doida com essa coisa de empresário, Alrir. Se eu passo mal, tenho que estar em casa, com Excelsa e as menina, que iam tá comigo no jogo. Então, daria no mesmo, que Graciosa ia colocar tudo pra fora de qualquer jeito. E tu sempre foi melhor que eu na bola, Alrir. Capaz que até me ajude, que tenho jogado nervoso.”
- “Eu não jogo há tanto tempo, Labinho. Não sei se dou conta de um jogo todo.”
- “Agora eu já nem ligo mais pra como vai ser em campo, irmão. O que eu tenho de estar é em dois lugar ao mesmo tempo. E só tu tem como me ajudar nessa. Porque se tu tá no campo eu consigo tá com Graciosa e não dá rolo.”
- “E eu falo o que pro pai que não vou com ele no jogo?”
- “Inventa que tá com raiva de mim. Deixa que as irmãs leva ele. Tu diz que vai ficar no roçado, não tem família ainda. Daí tu pega minha roupa e vai pro Aleluia. Chega lá, não fala muito. Joga e depois volta pra minha casa. Por favor, irmão, eu te rogo, em nome de nosso senhor jesus cristo. Vou te dever essa pro resto da vida.”

Alrirwertom fora forjado no atendimento àquela família. Por louco que fosse a ideia do irmão era, de fato, o único jeito de evitar um escândalos de abalar as redondezas. O irmão morreria à ponta da peixeira. O pai, de desgosto. Que destino teriam as irmãs?

Aquiesceu com a cabeça. Empurrou, fraternal, o ombro do irmão como quem assina tacitamente um contrato e voltou pra enxada, silente, como aprendera durante toda a vida.

***

Melhorança fervia por aquela partida. O empresário chegou ladeado ao prefeito em uma caminhonete brilhando de tão lustrada. Foi para o lugar com menos sombra e moscas possível, improvisado qual camarote no campinho municipal. As paredes foram repintadas, mas, sem toda a tinta possível, deixavam à mostra o que era demão nova e o que havia sofrido o desgaste do tempo.

O Aleluia E.C. entrou em campo e todos os olhos ao redor do campo, capinado e molhado há pouco, centravam no camisa 10. Alguns acharam Labinho mais forte. Preparo, chegaram a comentar. Mas pouco se importou. Era o dia dele.

E assim foi. Uma goleada impecável contra o time de Mato Altivo, com inacreditáveis sete gols de Labinho.

Dentre gritos incompreensíveis e cervejada liberada pelas vendas locais, o que ninguém sabia é o silêncio que ligava Alrirwertom — que jogara aquele jogo com a raiva de quem sempre quis vestir aquela camisa mas fora proibido pela devoção cega do pai ao irmão — a Aberlábio, que entocado com Graciosa e o filho não sabia o que se passava no campo em que fora habituado a ser tratado como rei.

Alrir, disfarçado silenciosamente de Labinho, correra por toda uma existência. Vivera o menino que teve as peladas interrompidas, carregado por Abrilino e que trocara, constrangido ante a correia do pai, a bola pelo sacho.

Em cada drible inesperado, a cada toque perfeito, em cada um dos gols, nas comemorações com lágrimas que ninguém entendeu, Alrirwertom viveu, como Aberlábio, em 90 minutos, o que tinha contido até então dentro de si.

Talvez por isso, com tanta coisa guardada buscando sair ao mesmo tempo, é que seu peito sentira aquela pontada aguda quando estava sendo carregado por uma multidão formada por bêbados alegres ensandecidos.

Tentou avisar alguém. Procurava mãos que lhe ajudassem a segurar aquela dor que já irradiava para o braço, mas encontrava apenas quem o tocava para lançá-lo mais à frente. O ar rareava e lhe faltava voz num furdunço tal que demorou bons três quartos de hora para perceberem que carregavam não um atleta em êxtase, mas sim um homem enfartado.

O médico do posto correu a tentar salvá-lo. Mas o infarto fora tão fulminante quanto o craque naquele jogo.

Horas depois, Aberlábio soubera, dada a gritaria na rua que Graciosa foi tentar entender, que a morte lhe havia chegado, mas pelo corpo de seu irmão Alrirwertom.

A cidade estava desgostosa, dizia Graciosa. O dia, que era pra ser feliz, anoitecia trise.

- “Tu vai fazer o que, Labinho, com essa mentirada toda?”

Aberlábio levantou a cabeça que estava mergulhada no joelho, com a cara banhada em lágrimas.

- “Vou usar a enxada pela primeira vez na vida, Gracinha. Pra enterrar meu irmão. Depois, confortar o pai, seguir pra casa, e arar a terra.”
- “E não vai mais jogar bola, Labinho. Enloucou, foi?”
- “A vida me substituiu, mulher. A bola pune. Alrir morreu Labinho. Eu vou viver Alrirwertom. Leva o menino pra cama, que ele já dorme. Tu vai continuar tendo o que precisa. Vou-me já.”
- “Tu vai é aproveitar que teu irmão era solteiro pra rosetar, Labinho. Essa tristeza passa e esse teu comichão safado volta que te conheço…”

Desorientado como o zagueiro que enfrentou seu irmão, Aberlábio saiu rumo ao encontro de uma vida que jamais esperara.

O jogo acabou.

O futebol, dizia seu pai, nem sempre era justo.

Eu, o filhodaputa

Minha mãe sempre falou: “Estuda, porra, ou vai acabar preso num emprego de merda.” Aí eu estudei. Estudei Educação Física, fiz pós em Direito Esportivo (por correspondência, mas fiz) e aqui estou eu, preso nesse vestiário imundo, com um bando de orangotangos esmurrando a porta, querendo me esquartejar só porque eu estava fazendo o meu trabalho. Estão xingando a minha mãe. Eu também. Adiantou estudar?

Quando falei que seria juiz de futebol, dona Roberta teve um mini-infarto, ou um ataque de soluços, ou um nó nas tripas, não deu para entender direito. Ela sempre foi uma péssima atriz, mesmo assistindo a cinco novelas por dia, todos os dias, evitando tomar água para não ter que levantar e ir ao banheiro. Aí ela viu que eu não mudaria de ideia e ficou uma semana sem falar comigo. “Não tive filhos”, cheguei a ouvir em uma conversa dela com as comadres. Claro. Ela implicava comigo desde pequeno, sei lá por quê. Uma vez me pegou roubando um batom dela e me fez engolir o troço. Caguei cor-de-rosa matte uma semana. Por fim, ela mudou de estratégia. Passou a assistir a todos os meus jogos na TV. Virou uma especialista. Especialista em falar mal da minha arbitragem.

— Não vou abrir a porta! Só saio daqui quando a PM chegar! ­ — eu gritei.

Sabe o que é pior? Talvez minha mãe tenha razão. Talvez eu seja um juiz de merda. À essa altura da carreira, eu imaginava estar apitando jogos importantes, escudo da FIFA no peito, e não aqui, na série A3 do Campeonato Paulista. Adoro essa coisa de “A3”. Um jeito bonito de falar terceira divisão. Poderia chamar “mato sem cachorro” ou “terra sem lei” que dava no mesmo.

Não sei onde foi que eu errei. Quer dizer, eu erro todo jogo, toda hora, no primeiro tempo, no segundo tempo, na prorrogação, erro sem parar. Já errei até no cara ou coroa. “Ah, o lado em que tá escrito ‘um real’ não é a coroa?” Todo juiz erra, sempre errou. O problema é que agora tem duzentas câmeras que transmitem, com slow motion e tira-teima, cada erro seu. Sacanagem. O que eu me pergunto é onde foi que eu errei para não ter ido pras cabeças, não ter apitado final de campeonato, ter lance analisado pelo Arnaldo, essas coisas. Eu era o primeiro da turma na faculdade, e olha que eu nem comprei muitos trabalhos, só copiei alguns da internet. Tinha gente que passou de semestre sem nem aparecer na sala de aula. Eu pelo menos ia de terça a quinta, e também quando tinha festa no centro acadêmico.

Achei que minha carreira ia engrenar quando apitei a despedida de um jogador famoso. Quer dizer, famoso ele ficou porque posou pelado para uma revista gay. Bom, marquei três pênaltis para ele fazer um gol, e ele errou todos. E eu tenho culpa? Como ele jogou na Europa, eu nunca vou entender.

— É o capitão? Capitão Ferraz? — encostei a cabeça na porta — Peraí que eu vou abrir.

Putaqueopariu, o cara me enganou. Não é o capitão Ferraz, é o presidente Ferraz, da Portuguesa de Araraquara, embora pareça mais um guarda-roupas de seis portas. Ele entra com um capanga. “Que pênalti foi aquele, caralho? O que o seu pai ia achar disso, um patrício fodendo outro desse jeito?”.

Ah, meu pai. Só porque meu pai era bigodudo e tinha uma padaria, ele era torcedor da Portuguesa? E de Araraquara, ainda por cima? Ele nunca assistiu a um jogo na vida, amigo, estava mais ocupado em comer as empregadas da padaria e roubar os clientes e fornecedores. Quando viu que não conseguiria pagar as dívidas, fugiu com a menina do caixa — que eu adorava, vivia me dando pirulito de tutti-frutti. Nunca mais vi o desgraçado. Se o presidente da gloriosa Portuguesa de Araraquara soubesse que meu pai era ladrão, ele nunca teria tentado me comprar.

“Eu te comprei! E não foi barato!” O homem das cavernas luso e seu comparsa vêm em minha direção. Olho para os bandeirinhas, que, até agora, estavam congelados de medo. Ao ouvirem aquilo, no entanto, mudam de expressão. Eles se levantam juntos, e juntos colocam as mãos na cintura, como se fossem um troféu no espelho. Claro que eu não paguei a parte dos meus auxiliares. E agora estou preso no vestiário com quatro caras querendo me matar — além dos trinta do lado de fora. Falo para o ogro à minha frente:

— E eu tenho culpa que o seu zagueiro fez aquele pênalti? Claríssimo! Não tinha como não marcar, a comissão de arbitragem ia arrancar meu couro.

O presida continua esguichando perdigotos: “Mas e o pênalti a nosso favor? Você falou que ia marcar pelo menos um.”

— Fala com o teu centroavante, ele não caía direito na área! Todo desengonçado, não tem como marcar um pênalti em cima daquele cara. Se a federação me vê fazendo isso, capaz de abrir um processo contra o teu time. Bobear, contra você.

A jamanta para de repente, como um elefante africano que pisou numa mina terrestre. Incrivelmente, ele engoliu aquela besteirada. Eu não tive culpa, a culpa foi do zagueiro e do centroavante do time dele. Não sei se herdei a filhadaputagem do meu pai ou a dissimulação da minha mãe. Aproveito o embalo e viro para os bandeiras:

— E vocês, se não combinaram a parte de vocês, eu não tenho nada a ver com isso. O senhor aqui me procurou, a gente fez negócio, acabou. E já que estão todos aqui, perguntem para ele por que que vocês não ganharam nada…

Pronto, agora aqueles cinco caras querem matar uns aos outros. Num instante, o pau já está quebrando entre eles. Uma cadeira voa. Uma mochila é usada como marreta. Os torcedores arrombam a porta e dão de cara com aquele fuzuê. Aproveito e fujo pela janela do fundo. Corro para o carro, o Fábio está me esperando.

Entro rapidinho, e a gente se beija.

— Não foi fácil roubar para o seu time hoje, hein? Os caras da Portuguesa estão fulos da vida. Marquei um pênalti tão absurdo pra vocês que eu devo ter inventado alguma regra nova…

A gente se beija de novo. A vida de juiz é uma merda, não preciso da minha mãe pra me lembrar disso. Mas tem suas compensações, como assistir de perto esse monumento moreno de calção apertado e mãos enormes de goleiro. Isso não tem preço, vale muito mais que a grana que aquele mamute me pagou. É amor. Existe amor na série A3.

Toc-toc-toc. Batem no vidro do carro. Meu Deus, os torcedores da Portuguesa. Não, ufa. É o zagueiro do outro time. O que ele está fazendo aqui? Não entendo por que o Fábio abaixa o vidro se desculpando com o rapaz: “Guina, não é o que você está pensando…” O zagueiro de quase dois metros de altura, com passagens por grandes times da capital, dá um soco na cara do meu goleiro. Depois outro. Por que você não está se defendendo, Fabio? Por que vocês estão chorando? Fabio sai do carro, os dois se abraçam. “Eu ia terminar com ele, juro. É você que eu amo, Guina.”

E depois eu que sou o filhodaputa.

Por que Jackson não jogou a Copa

Este conto foi livremente inspirado — no título e no misticismo futebolístico — pelo capítulo (partes I e II) “Por que Peralvo não jogou a copa”, do livro “O drible”, escrito por Sérgio Rodrigues.

Dureza é reconhecer um talento futebolístico no Rio de Janeiro ou São Paulo, onde nascem tantos e morrem tantos, sendo quase impossível cravar quais são de fato iluminados para o futebol ou quais são apenas chutadores de bola e firuleiros.

Moleza é reconhecer um talento desse em Sergipe, onde não nasce nenhum. Então você pode dormir tranquilo sabendo que conhece todos daquela região, mesmo sem ter feito nenhum esforço pra isso.

Claro que isso é um exagero, porque onde houver uma tampa de Coca-Cola sendo chutada como bola de futebol, inevitavelmente surgirá alguém que, de tanto se acostumar com as restrições da tampa, começa a achar fácil demais lidar com a bola e, sem querer, vira um domador dela.

Por ter tampa e quem chutá-la, Sergipe não fica de todo para trás, mesmo que demore décadas para descer essa benção por lá. E podemos combinar que depois do Canela-Fina ela dificilmente vai descer de novo daquele jeito.

Nascido de 13 de julho de 1949, um ano, três dias e zero minutos antes da tragédia de 50. Exatamente às 16:37h, mesmo horário do gol de direita do Ghiggia. Foi praticamente forjado na derrota, não fosse por um ano e três dias de diferença. Batizado como Jackson na cidade de Estância, onde até então não existia um Jackson sequer.

A ideia foi do pai Válber, que trabalhava na impressão do Jornal Jardim. Para conseguir se diferenciar do Jornal da Cidade, o Jardim era metido a besta e publicava uns textos de autor estrangeiro, que o filho do dono (também metido a besta) copiava dos jornais dos Estados Unidos, onde morava. Válber, que não tinha nada a ver com isso, gostou da ideia de copiar dos outros e achou que identificar algumas palavras num conto policial de um Jack-não-sei-das-quantas era o suficiente pra escolher o nome do filho.

O Canela-Fina foi acréscimo do Juninho Cambalhota, que desde os 6 anos jogava bola com o Jackson no campinho atrás da antiga Rua do Comércio. Na soma, virou Jackson Canela-Fina. Não fosse Juninho, ele ganharia o apelido do mesmo jeito, porque era de dar dó a finura dos cambito onde Jackson tinha que se sustentar. Se ninguém registrasse a alcunha, o próprio gramado ia fazer o trabalho de protocolar seu nome de jogo.

A parteira Jacira também reconheceu a anomalia e já alguns anos depois de nascido — quando o garoto começou a pegar nas tampas de Coca — avisou pra mãe que aquele ali não podia jogar bola não, porque com um carrinho errado ele se acabava todo.

Jackson, que fez questão de ouvir de canto a conversa da mãe com a parteira, mal se abalou e decidiu que nunca na vida ia tomar um carrinho. Não porque não ia jogar bola, mas porque ia se esquivar de todos. Não deu outra. Ao invés de fraqueza, fez dos cambitos seus maiores trunfos. Ganhou uma velocidade e uma lisura que nem na voadora conseguiam alcançar as canelas.

Em toda a carreira, se foi parado por carrinho, foram 4 ou 5 vezes. De resto, escapava de todos. Era giro pra lá, salto pra cá e a única falta que dava pra fazer no Jackson era se jogar com tudo no tronco dele, coisa que faria os Jack-ianques-não-sei-das-quantas chamar de tackle, jogada de futebol americano. Parecia uma mariposa em campo; se recusava a ser caçado. Era de uma objetividade que faria até os Cristianos Ronaldos de hoje em dia ficarem boquiabertos.

O Canela praticamente estreou nos gramados já de verde e amarelo, mas não da Seleção e sim do Canarinho de Piauitinga, o Estanciano Esporte Clube. Dizem até que o Canarinho foi fundado só pra ter um time pra Jackson jogar e poderem dizer que ele surgiu lá. Mas isso é boataria que a gente não pode certificar, porque o clube surgiu quando o Jacksonzinho tinha só 7 anos, em 1956, e, embora já fosse um craque, também não era pra mover montanhas e moinhos assim.

O fato é que o presidente e fundador Lindervan (dono do Jornal da Cidade), assim que abriu as portas, mandou fazer uma blusa número 7 pra o pequeno Jackson, mesmo que o clube não tivesse time juvenil. Era só para garantir que o moleque ia jogar lá no futuro.

O número 12 da antiga Rua do Comércio era a única casa em Estância que botava no rádio os jogos do São Paulo e não do Flamengo ou do Vasco. Válber era fã do ponta-esquerda do time paulista, o grande Canhoteiro. Ou seja, Jackson foi forjado na derrota de 50 e em Canhonteiro. Começou a encarar as tampas de garrafa por causa do ídolo. Também fez questão de só chutar com a esquerdinha, mesmo que essa habilidade específica não viesse de nascença.

Quando dobrou de idade já era canhoto mais do que convicto e nem precisou se esforçar pra ser o maior craque da cidade. Com 14 ainda não dava pra jogar com os galalaus do time de cima, por isso tanto o Estanciano quanto o Jardinense (rival local, fundado depois do título mundial de 58) tiveram que criar a categoria sub-15 só para a cidade inteira poder ver Canela-Fina jogar.

O jogo em si era um mero detalhe. O ingresso era pago como protocolo para assistir Jackson meter gol. E quem não prestasse atenção perdia, porque a velocidade era grande demais. Pela fragilidade das pernas, Jackson não podia se dar ao luxo de fazer firula nenhuma, ou seria decepado por uma voadora maldosa. Não podia fazer que nem Garrincha, que tinha tempo de olhar pra cara do defensor, ir prum lado, ir pro outro, parar, pensar e, só depois, partir pra cima. A única opção do Canela era cair pra dentro.

Os 8 a 2, 13 a 4 e por aí vai foram tantos que começaram a ficar sem graça na cidade. Já apareceu gente pra dizer que, com 14, Jackson tinha mais gol que Pelé com 22. Mais uma boataria que não podemos confirmar. O que apareceu pra mais de 500 e mais de 1000 foi criança sergipana nascendo como Jackson. Vê se pode. Uma criança dando nome a outras. Mas isso aí aconteceu mesmo, não é boataria não.

Logo Lindervan tratou de passar a promessa adiante, afinal queria lucrar com aquela camisa 7 que mandou fazer anos antes. Foi Jackson soprar 17 velinhas que foi mandado praticamente só com a roupa do corpo pra jogar no Bahia. Pelo menos era tricolor como o São Paulo de Canhoteiro.

Quando fez 19, Geninho, técnico do Bahia, recebeu ligação de Zagallo, treinador da Seleção. Perguntou que história é essa do menino que voa baixo, que faz mais gol que Pelé, mas que é fininho feito um frango. Que a Copa tava chegando e que tava precisando de um reserva pro furacão Jairzinho. Que mesmo que não entre em campo já pode ser bom pro menino se acostumar com jogo no estrangeiro.

Geninho garantiu que o menino tava em condição pra encarar qualquer jogo, parecia até mais velho do que era. “Ele é fininho mesmo, mas ninguém pega nem na corrida, nem na voadora, pode ficar sossegado”.

Já era pra lá de 1969, faltando um ano pra Copa no México, quando Jackson ouvia o jogo do São Paulo na concentração. Eram 20 do segundo tempo e Cosme, zagueiro do Corinthians, entra com tudo na esquerdinha de Canhoteiro. Jackson sentiu como se fosse nele.

O jogo seguinte do Bahia era contra o Bahia de Feira de Santana, pelo campeonato baiano. Ninguém entendeu a lerdeza de Jackson na partida. Não é que tava lento, mas também não tava rápido. E se comparar com o que era normalmente, tava rastejando.

O pior é que foi quase um caminho sem volta. Ainda era o melhor jogador do time, mas sem aquele arranque característico. Os 4 ou 5 carrinhos que acertaram nele foram todos nessa época.

Canhoteiro permanecia machucado.

Com a incapacidade de jogar seu melhor futebol, veio a lembrança de Jackson na parteira Jacira. Pois ela falou que um carrinho errado e o Canela-Fina se acabava todo. Mas não falou que o carrinho errado precisava ser dado nele.

Mesmo sem ser lá brilhante das ideias, o Canela começava a juntar os pontos e já tava era achando que ele era um papel carbono do Canhoteiro, que sua data de validade era a data de validade dele e que não adiantava nada fugir dos carrinhos se Canhoteiro não conseguia escapar da zaga corinthiana. A diferença é que ele era sergipano e Canhoteiro, maranhense. Mas de resto tava igual.

Essa ideia era uma doidice tão doida que Jackson não queria acreditar.

Pois era isso mesmo, acredite. Nem Canhoteiro nem Jackson Canela-Fina voltaram a ser os mesmos. Ou seja, o Cosme acabou com dois numa violência só. Geninho ainda tentou convencer Zagallo, mas não teve jeito. Saiu a lista e não tinha um Canela-Fina pra contar história. Tinha outro sergipano, o Clodoaldo, que era bom, mas não era nenhum Jackson.

Foi tanta decepção que preferiu voltar pro Canarinho de Piauitinga e se acabar por lá. É o que a gente sabe.

Ou então é tudo boataria do povo de Estância.

Fábulas

No intervalo, meu pai, meu irmão e eu atravessávamos o portão 108 e, pelas escadas, chegávamos ao segundo anel do Joaquim Américo. Uma das lanchonetes do estádio era de um conhecido do meu pai e, no caixa, três pão com bolinho, duas coca e um chopp tinham desconto. Em 2002, o Joaquim Américo era conhecido como Arena da Baixada (primeira arena do país, construída na junção de duas ladeiras) e Caldeirão do Diabo (os alambrados eram praticamente dentro do campo). Também recebia dos rivais o nome de Meio Estádio, porque a venda dos atacantes Paulo Rink e Oséas, em 1996, não arrecadou fundos suficientes para que a reforma realizada entre os anos de 1997 e 1999 pudesse construir um estádio inteiro no lugar do antigo, demolido integralmente para a construção do novo. A questão é que, para os anéis superior e inferior que costeiam uma das laterais do campo, faltou dinheiro. Vista de cima, a Baixada parecia um C até 2014 quando, após a conclusão do estádio, ficou parecendo um hipermercado — uma caixa de metal e concreto, cinza, do tamanho de uma quadra. Em 2002, a Baixada ainda era vermelha e preta.

Essa era minha parte preferida dos jogos: quando íamos dos corredores da Baixada em direção ao campo e, aos poucos, os portões iam se enchendo de grama. Em um daqueles intervalos, meu irmão vai ao banheiro e meu pai me aponta um senhor bigodudo que passava entre a torcida.

– Você tá vendo mais alguém de bigode além dele, guri?
– Não
– Então se eu tô te falando que É aquele senhor de bigode, É aquele senhor de bigode
– Mas ele não tem cara de jogador, pai
– Mas se eu tô te falando que ele É o maior artilheiro da história do Atlético, é porque deve ter tido cara de jogador um dia
– Hum
– Hum o quê?
– O maior artilheiro é o Kleber — respondi e driblei o safanão com uma arrancada até o portão 208.

Kléber João Boas Pereira, mais conhecido como Kléber Pereira ou apenas Kléber, foi o maior artilheiro que vi jogar. De 1999 a 2002, marcou 124 gols com a camisa do Atlético Paranaense e eu gostava tanto dele que, no álbum do Campeonato Brasileiro, deixava um Kléber repetido colado na capa. Com dez anos, eu não entendia quem não gostava do Kléber: nem quem dizia que ele perdia muito gol (terceiro maior artilheiro da história do time) e muito menos quem o chamava de macaco. Eu entendia pouco sobre racismo mas sabia que o Kléber era mais preto do que eu e que eu era mais preto do que o Alex Mineiro. Também achava que poderia ser qualquer jogador do mundo. Eu queria ser o Kléber, e não gostava quando o chamavam de macaco porque eu não me achava parecido com um. Mas ia fazer o quê? Piazinho ranhento, do tamanho de um toco de amarrar bode e meu pai é branco. Branco consegue ignorar.

Também não gostei quando soube que havia outro atacante melhor que ele. Sicupira? E lá isso é nome de jogador de futebol? Chiqui Arce, Bebeto, Vampeta, Capetinha, Batata, Danrlei, Viola, Élvis, Preto (o Preto era branco e jogava no Bahia), Allan Dellon, Kléberson e Messias (volante que não salvou o Coxa de ver o Atlético campeão do Brasileiro em 2001): esses sim eram nomes de jogador. A primeira vez que vi o Sicupira foi em 2002, enquanto Atlético e Cruzeiro ainda estavam no 0x0 de um jogo que acabou 2x1 pra eles — um gol do Capetinha, de pênalti, e outro gol do Fábio Júnior, com assistência do Capetinha. Foda perder final mas, o que chamaram o Capetinha de macaco naquele dia, não tem justificativa. Pelo menos não deveria ter.

E depois mais bad. Também em 2002, o Kléber foi vendido pro Tigres (MÉX); em 2005, depois de sermos vice-campeões do Brasileiro de 2004, fomos vice da Libertadores; em 2006, eliminados pelo Pachuca (MÉX) nas semifinais da Sul-Americana; em 2007, caímos pro Fluminense na semi da Copa do Brasil; em 2011, rebaixados para a segunda divisão do Campeonato Brasileiro; vice da Copa do Brasil de 2013; eliminados ainda na fase de grupos da Libertadores de 2014; e desenterramos o sapo só em 2018, ao vencermos o Junior Barranquilla (COL) na final da Sul-Americana.

A temporada de 2012 foi a última que acompanhei indo ao estádio. Voltamos para a primeira divisão mandando os jogos no Janguitão, conhecido também como Ecoestádio porque tem cadeiras de material biodegradável que fazem bem pro meio ambiente mas arrebentam a coluna. A Baixada só reabriu na Copa do 7x1. Primeiro jogo foi Irã e Nigéria, empate sem gols que eu assisti de casa porque os ingressos eram absurdamente caros, e que o André não assistiu porque tinha sido atropelado em 2012, na BR-277 que fica bem em frente ao Ecoestádio e que era preciso atravessar nos finais dos jogos sem que houvesse lombadas ou radares de velocidade ou passarela. André Scaramussa Lopes. 21 anos. Subiu antes do Atlético e, se o Atlético subiu, tem que agradecer o Maestro.

O Paulo Baier já chegou experiente: em 2009, o jogador com então 35 anos foi contratado pra ser nosso meia, mesmo tendo sido lateral e ala na maior parte da carreira. É curioso isso do futebol. Às vezes acho que os melhores são aqueles que sabem se reinventar. Tipo o Paulo Baier: com 35 anos, ele já não tinha mais o pique que lateral precisa ter pra ir e voltar o jogo todo, ou a explosão de ala que puxa contra-ataque. Independentemente das posições que tenha jogado, o bicho sempre foi bom na bola parada. Puta que o pariu. Dos 50 gols que fez no Atlético, 14 foram de falta, 14 de pênalti e um de rebote que nunca esqueço contra o América-MG, aos 49 do 2º tempo, 5x4.

Em 2011, quando fomos rebaixados na última rodada do Campeonato Brasileiro ao vencermos o Coxa, que ficou fora da Libertadores do ano seguinte por um ponto (1x0, Guerrón de cabeça), Paulo Baier deu uma entrevista e disse que se sentia envergonhado e que ficaria até o time subir de volta. Futebol lembra a vida: ninguém gosta de ser rebaixado mas poucos ficam quando o barco afunda.

Em 2012, eu era estagiário em uma rádio. No segundo semestre, fizemos uma campanha para incentivar o uso de preservativos e os três clubes da cidade toparam participar. Em manhãs diferentes, fomos aos treinos do Paraná Clube, do Coxa e do Atlético e, nas portarias dos centros de treinamento, eu mostrava o crachá de imprensa. Era massa trampar com uma parada que eu curtia. Aí quando fomos no CT do Atlético, terminei de gravar a fala do Paulo Baier, peguei a camisa que tava na mochila e pedi pra ele autografar.

– E aí, Maestro: vai cumprir a promessa?
– Se Deus quiser

Quando o Paulo Baier fazia gol, ele corria em direção à torcida e com os dedos regia a festa, como um maestro. Em 2013, de volta à primeira divisão, comecei a trampar num bar e deixei de ir ao estádio: os horários não batiam, o ingresso foi ficando mais caro e, a cada lavagem, o autógrafo ia saindo da camisa.

Trabalhar em bar era até de boa. Nos jogos do Corinthians, eu trampava mais pro Miguel conseguir assistir e, nos jogos do Atlético, ele fazia a minha. No jogo de volta da semifinal da Copa do Brasil de 2013, quase fui despedido depois que puxei o hino no meio do bar e subi na cadeira festejar a classificação contra o Grêmio. Foi foda perder a final pro Flamengo, mas tenho uma lembrança boa: peguei folga no bar, consegui três ingressos e tava eu, meu pai e meu irmão na Vila Capanema (o jejum do Atlético era nunca jogar final em casa) quando o Marcelo Cirino solta uma bomba da entrada da área e caixa, 1x0 pra nóis. Lembro que nos abraçamos muito, pulávamos, é absolutamente impossível ouvir qualquer coisa durante um gol de final de campeonato mas gritei, com a cabeça colada na deles, que amava os dois pra caralho. Depois o Amaral me acerta uma bomba do meio da rua e melou tudo.

Tinha um outro Marcelo que ia no bar. Quarenta e poucos anos, alto, barrigudo, só bebia Antarctica e era atleticano. Às vezes tirava quinze minutos de intervalo pra fumar um cigarro e ele tava fumando também.

– Cê é atleticano, guri?
– Vejo de vez em quando
– Qualquer dia vô traze um cara aqui que já jogo com o Garrincha
– Aé?
– É guri… Vai vendo…

Sei lá. O Marcelão era gente boa mas eram sete, oito ampolas por noite e bêbado nunca fala coisa com coisa. Quase nunca. Um dia chega o Marcelão, pede pra juntar três mesas porque, naquela noite, ia comemorar o aniversário da mulher. Até o sogro foi. Um bigodudo. O Sicupira.

Barcímio Sicupira Júnior nasceu em 1944, na cidade da Lapa, litoral do Paraná, e se aposentou aos 31 anos. Não por lesões, não pela idade, e sim pelo simples fato de receber pouco como jogador. Nunca foi convocado para a seleção brasileira, mas jogou ao lado de Nílton Santos, Didi, Zagallo e Garrincha (bi campeões do mundo em 1962) quando defendia o Botafogo-RJ. Foi contratado pelo Atlético em 1968, time onde encerrou a carreira sete anos depois, com 154 gols marcados. Dizem que jogador de futebol morre duas vezes: a primeira vez é quando se aposenta. Mas Sicupira, sem grana pro velório, formou-se em Educação Física e se aposentou anos depois, como professor Barcímio. Numa entrevista recente, ele diz — “isso tudo aconteceu e eu não senti. Uma pena que a vida passa tão rápido, porque eu gostaria de ter começado agora. Não porque hoje o jogador ganha uma fábula, mas pra viver aquele ambiente. Você entra em campo sendo um reles mortal, você sai dele com o povo te aplaudindo, manifestando um carinho por você. Não tem preço”.

Se atendi bem uma mesa sendo garçom, foi aquela: porções caprichadas, doses com choro, cerveja gelada e bom humor pra tirar sete fotos do encontro, uma de cada celular na mesa. Quando ele chamou o táxi, o portão já tava fechado e o acompanhei à calçada.

– Marcelão comentou que tinha um garçom atleticano aqui
– Vejo de vez em quando
– Esses de de vez em quando são os piores: cobram mais que banco

Acendi um cigarro.

– Posso perguntar uma coisa?
– Já perguntou a primeira, então pergunte logo duas
– Como era ser banco do Garrincha?
– Era ruim… Ninguém gosta de ficar de fora
– Boto fé
– Tinha dia que a gente tava treinando… Eu chegava cedo, guri… Tinha que mostrar serviço… Aí me botavam pra marcar o Mané e assim, no futebol é igual na vida, tem quem ganha, tem que perde, eu queria ganhar dele mas às vezes não era sobre isso, sabe? Parecia dança… Mas só às vezes, guri. Também tirava o Mané pra dançar

Ele olhou o relógio.

– E você, jogava?
– Quando era moleque só. Ia muito no estádio
– Aé?
– É. Eu tinha uns dez anos quando meu pai me apontou você na Baixada. A real é que não fui muito com sua cara
– E por que não?
– Eu gostava do Kléber
– Kléber… O Kléber jogava
– Acho que foi o melhor que vi. Meu pai fala que o melhor que ele viu foi você

O táxi chegou. Três doses de whisky com choro batem, e abri a porta pra ele.

– Sabe como que faz pra saber se um sujeito é boa gente, guri?
– Como?
– Você conhece os filhos dele

No outro dia, liguei pro meu pai. Contei que o Sicupira tinha mandado um abraço.

O velho da casaca

Os vizinhos mais peçonhentos dizem que a obsessão começou depois que sua mulher o trocou pelo então presidente do Esporte Clube São Luiz. Conheceu o boa-praça numa semana, largou o velho na seguinte e no outro mês já tinha se mudado para Ijuí. Logo o time que fizera o VEC amargar o rebaixamento à divisão de acesso pela primeira vez na história. Ah, a fina ironia. Contudo, ainda que isso tenha lá seu fundo de verdade — há sempre algo de subconsciente na monomania -, essa não é a versão mais popular entre os fofoqueiros profissionais de Veranópolis, cidade sede deste causo (e também do Pentacolor Gaúcho). A versão oficial conta que o velho ficou mal mesmo quando seu antiquário centenário, que havia passado de mão em mão por várias gerações de acumuladores, foi praticamente engolido por uma iniciativa de jovens endinheirados da capital. Os tais “empreendedores”, orgulhosamente patrocinados por um think tank gringo, não satisfeitos com seus espaços de coworking e chopes artesanais superfaturados, resolveram adentrar o interior do estado em busca de novos horizontes e ar fresco. Ou melhor, dinheiro fresco.

Eram quatro jovens no total. Todos muitos parecidos, até porque não é muito difícil imaginar seus arquétipos. Daqueles que gastam suas fortunas em macchiatos, andam de patinete elétrico, têm um “mindset positivo”, comem brunch e torcem pelo “meu Liverpool”. Provavelmente atendiam por Fê, Lu, Má, Pê ou quaisquer abreviações do gênero. Ao perceberem que a localização do antiquário era estratégica, não tiveram dúvidas: ali ficaria a Vontade Vintage. Adotaram um “approach arrojado” e, contando com o “follow-up” do “staff” da Prefeitura, conseguiram achar uma brecha legal e forçar o velho a passar o ponto.

É possível dizer ainda, por incrível que pareça, que este não foi o pior dia na história do velho. Não, também não foi a derrota por um a zero contra o São Luiz na décima rodada do gauchão de 2019, exatamente cinco anos depois que sua esposa o deixou e calhando ainda de rebaixar seu clube do peito. Tampouco seu pior dia fora o de sua morte, cujas circunstâncias reverberam até hoje pelas ruas de Veranópolis. É de fato impossível que haja algum jogo no Estádio Antônio David Farina sem que os adeptos debatam calorosamente — uns em tom chistoso, outros mais saudosistas — sobre a figura que se convencionou chamar “Velho da Casaca”. O que realmente doeu foi ver o maldito logotipo da Vontade Vintage estampando as mangas do uniforme do Timaço. Aquilo, para ele, foi o fim — mas também o começo.

Posta à mesa a boataria, verdade é que nada disso importa. Voltemos nossa atenção ao velho. Fazia tudo pelo seu novo objetivo. Arrancara os dentes para não gastar com cuidados dentários. Abandonou seu cachorro na esquina mais próxima; a ração era muito cara. Não poderia alimentá-lo com restos, dada a escassez de comida até para si. Não, na verdade não faltava nada. Era o suficiente. “Estava precisando emagrecer” mesmo. Trocou o Corcel 73’ num burrico acabado e mais seis mil reais de diferença. O burrinho era o bastante para viajar pelos brechós e lojas de esportes das redondezas e aguentava umas cento e cinquenta camisas de time no lombo. Infinitamente mais econômico. Pasto era de graça, punha nas contas de Deus. A este, aliás, creditava grande parte do sucesso de sua empreitada. Era Ele quem provia suas necessidades hídricas. Se chovia, ótimo, tomava banho e matava a sede. Se não chovia, paciência. Pela graça divina, a macieira anciã de seu quintal parecia estar sempre carregada. O fruto era doce e custava a estragar. A Deus, por último, agradecia pela piedade das freirinhas dominicais, que semanalmente o visitavam para doar alguns mantimentos. Acreditavam que o velho havia enlouquecido e temiam pelo descanso de sua alma. Aparentemente, a única coisa que o Senhor não fazia de jeito nenhum era tirar o Timaço do Peito daquela draga que se encontrava.

Vendeu — a muito custo e sob grave relutância, é justo dizer -, todos os patuás cristão-ortodoxos raríssimos da antiga União Soviética. Herdados de sua mãe armênia, foram a melhor aquisição da vida de um colecionador espertalhão que passava casualmente pela cidade. Trocou a cama por um kit completo de 1922 do Sport Clube Rio Grande, casa e visitante, incluindo o uniforme de goleiro, flâmula e tudo. “Puta aquisição! Dormir sentado ainda melhora a circulação, pelo que disse a Lourdes”, repetia para si. Com o passar dos anos, decidiu deixar de pagar as contas de luz. Dormia durante grande parte do dia devido à parca saúde, e de acordo com seus cálculos rústicos era mais barato comprar querosene e utilizar a lamparina. Aliás, já nem fazia mais tanta questão assim de realmente admirar sua coleção, passar o tato pelos tecidos envelhecidos e admirar os escudos dos clubes, muitos destes já preteridos por versões mais modernas e vetorizadas, inclusive. O importante era tê-las.

Certa feita, o velho foi à esquina principal da Avenida, bem ao lado do hospital municipal, local onde ficava o antigo antiquário. Onde antes se via uma infinitude de camisas de time belamente preservadas, etiquetadas e meticulosamente organizadas, para além de outras bugingangas e quinquilharias, agora reinava a presunção. Não havia nada antigo ali. Tudo era réplica, nova e brilhante. “Que empáfia!’, pensava o velho, ao adentrar os portões da arrogância. Sujo, tísico e banguela, tomara a visita como sua redenção final. Seu orgulho era cristalino. O semblante era o de um partizan russo prestes a executar um nazi. Naquele momento, sentia-se Taffarel contra Baggio em 94. Era o seu momento. A derrota não era uma possibilidade. Estufou o peito, olhou nos olhos do barbudinho e lançou: “- Eu tenho todas as casacas do mundo. Sua loja de merda não chega nem perto da minha coleção. Moda retrô é meu ovo esquerdo.”. “- Ah, é?”, respondeu o jovem atendente, achando aquilo tudo um barato. “Aposto que você não tem nenhuma camisa dos times da Red Bull.”.

E em um instante, tudo ruiu. O velho conhecia cada item de sua coleção. Sabia de cor e salteado todos os respectivos anos de fabricação, detalhes históricos sobre o contexto dos uniformes e até a ampla maioria dos fabricantes. Não possuía nenhuma camisa da Red Bull. Morreu ali mesmo. De desgosto, pelo que dizem.

Resultado final do Grupo G

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