Torneio de contos de futebol — Mario Benedetti: GRUPO H [encerrado]

Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo

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Resultado: Deportivo Recoleta (El Potro del Faro) venceu o Grupo Hcom 57,5%. Votação atualizada no fim da página. Reforçamos para autores e autoras manterem o anonimato até o fim do torneio, mesmo que o texto tenha sido eliminado

Chegou o último grupo. Aquele momento em que o torneio se dividirá entre a glória dos classificados e a frustração dos eliminados. O Grupo H vai a campo com El Tanque Sisley, Deportivo Recoleta, Unión Magdalena, Santiago Morning e Aucas disputando o último lugar entre os oito finalistas.

A votação do Grupo H fica aberta até domingo, 31de maio, às 23h59. Leia os cinco textos e vote no campeão do grupo em enquete ao fim desta página (você precisará logar numa conta Google — também somos vítimas das grandes corporações). Somente o primeiro colocado da chave avança para a segunda fase.

O lançamento da fase final está marcado para segunda-feira, 1 de junho, com a definição dos dois grupos — o campeão de cada chave vai à final. Regulamento e tabela completa aqui. Bom jogo!

ATENÇÃO: Reforçamos aos autores e autoras que não identifiquem (muito menos republiquem) seus textos nem seus grupos até o final da Copa.

Nota: nenhum conto sofreu qualquer tipo de edição por parte da equipe do Puntero Izquierdo.

O muro das libertações

Sentado no pequeno muro de tijolo e cimento, olhava para a frente como se visse uma demolição pela primeira vez: o fascínio, a ilusão imagética quebrada há pouco, a apreciação do que é grande. Não; tinha desejo também no que via, dado o parco e triste brilho dos olhos, contrastado ao suor que caía por seu rosto, pescoço, e empapava pouco a pouco sua camisa cor de marfim. Olhava-a, compenetrado. No fim, ela soava como uma demolição à qual ele gostaria de ter controle.

Corria para lá e para cá, rindo, pulando, como se a vida não fosse muito mais que terrenos baldios e horas de folga. Ele acompanhava, com pequenos movimentos do pescoço, desgostoso. Pularia para a frente se tivesse mais coragem, correria para lá se suas pernas não ficassem bambas, agarraria o que achava — em seus delírios de cabeça morena e cabelos finos debaixo do sol — seu por direito. Mas sabia-se impotente, em toda sua complacência de observador, regalia à qual já considerava um feito.

Por vezes viu várias dela, e culpou o calor. Talvez fosse o amor, ensaiava falar em outras oportunidades, mexendo suavemente seus lábios craquelados, enquanto, em movimento súbito, espantava o pensamento que aumentaria ainda o mais o dilema que afogava seu peito. Tinha completa noção, mesmo que não soubesse explicar muito bem, de que era um masoquista. Seu flagelo era seu prazer e ele não preferia estar em qualquer outro lugar. Às vezes tomava coragem, não para pular do muro, mas para testar seu equilíbrio andando pela estrutura, tendo em sua imaginação que a imagem, para os de baixo, seria a de uma espécie de desfile em passarela.

Mas logo percebia o tamanho do ridículo e voltava a se sentar. Nessas horas, passava em sua cabeça tudo aquilo que, em uma imersão autodestrutiva, poderia também soar patético, e apertava as unhas contra o cimento. As noites em claro, as camisas rasgadas, as discussões intermináveis. As vezes em que teve explicar o imensurável, em que teve de aguentar a zombaria que não parecia ter fim. Era, de fato, um fardo que carregava. Um fardo que o levava ali, até aquele muro, até a situação em que a inércia se chocava com toda a ação interior.

Ensaiava, em sua minúscula casa, o que faria se, acaso um dia, tomasse a devida coragem. O estômago revirava, só de imaginar, e também pela fome. Mudava suas posições, sempre pensava que tinha chegado ao seu modelo ideal, até que a realidade, conscientemente, arrebatava-o: na hora tudo seria diferente. Enquanto lembrava e controlava a ansiedade que o fazia chacoalhar, freneticamente, as pernas pelo ar, um frio cortou sua espinha. A distração fez com que um de seus chinelos, branco com tiras azul claro, fosse parar lá embaixo. A raiva de si mesmo só sobreveio depois de um breve momento de respiração cortada, e logo foi substituída por cálculos rápidos. Desceu como via nos filmes, braços apoiados, alavanca com as pernas. Na queda, pendeu o corpo o suficiente para recuperar o chinelo e logo procurou a melhor maneira de subir de volta ao muro. Não conseguiu de primeira. E nem de segunda. Um elevado do terreno, à frente, encurtava o muro, e olhando para o lado correu até lá, como alguém que escapa de um tiroteio em meio aos horrores da guerra.

Segurando o chinelo rebelde, sentiu o segundo golpe: a tira do chinelo obediente, que ficara em seu pé, arrebentou. A tira já estava presa por um prego, que enganchou em um tufo do gramado e baixou sobre o pobre infeliz sua segunda desgraça. Como vira no último jogo do Botafogo seu ídolo Mané fazendo, repetiu o gesto: com a força das coxas, brecou firmemente a passada, quase visualizando, com a fértil imaginação, o marcador indo ao chão. Recuperou o outro chinelo e correu até o morrinho, pelo qual trepou, desabando pelo gramado atrás do muro. Ofegante, controlou a respiração até que o céu voltou a ser azul. De repente, sentiu que a necessidade de coragem que encarava obrigatória se dilatara. Talvez nem fosse preciso ser um herói para descer lá e fazer o que quisesse. Talvez fosse só uma questão de… fazer.

Arrependeu-se do pensamento que teve, pois também sabia que a reação aos seus próprios impulsos era arrebatadora, e o medo aterrou-o mais do que nunca. Nem sequer tirou os chinelos das mãos enquanto refletia, e agora os usava como luvas de goleiro, mesmo o com a tira quebrada. De pé no muro, batia um chinelo no outro e pulava para o seu lado direito, o único para o qual conseguia pular. O cimento arrancou sua pele, mas ele já não ligava. Depois, bateu parte das costelas na estrutura, e a dor fez o pequeno ficar deitado alguns instantes, quando aproveitou para contemplar as primeiras nuvens que surgiam no verão de janeiro.

Tirou os chinelos das mãos e começou a fazer formas que dialogavam com o céu. Cobria o sol com sua mão, e seu rosto era iluminado pelos feixes de uma luz tenra, que já não ardia, mas fazia-o brilhar ainda mais, como um anjo injustiçado em vida e eternizado em glória. Lembrava de seu pai. Foi ele que tentou transformá-lo em goleiro, desde que o pobre começou a ter a mínima capacidade física de brincar no quintal de maneira menos tosca. Ele odiava ser goleiro, mas fazia — com reclamações — pelo pai. As mãos ardiam, quando o homem mostrou como os chinelos poderiam servir de ótimas luvas. Mas não conseguia cair para o lado esquerdo: era lento, a perna parecia que dava… um negócio, não sabia explicar, e o próprio braço não podia levar o restante do corpo. O pai brigava, insistia, e o filho berrava, dizia que não sabia, chorava, não ia jogar mais, queria só jogar, não ficar se jogando no chão, ainda mais pra um lado que não conseguia, e quando viu o velho sair de ambulância da casa, o rosto de desespero de sua mãe, o choro contido de sua vó, correu para o quintal, e como que prevendo o futuro que o aguardava, começou a se jogar para o lado esquerdo, sem dó de si mesmo, sem cansar, sem o mínimo jeito, apenas caía para o lado esquerdo enquanto as lágrimas cobriam-lhe o rosto.

Desde então ficou com medo de chegar perto de uma bola, de ver um jogo, de amar o que até outro dia enchia-lhe o peito. Quando podia, era assim: de longe, em um muro seguro, sem ninguém descobrir que ele odiava ser goleiro, e que muito menos sabia chutar de jeito algum. Fazia um ano, e sua mãe o chacoalhava nos domingos em que ele não gostaria de acordar. Neste dia não teve jeito, mas não quis ficar em casa. Também não queria saber tanto dos outros da rua. Sentia como se estivesse cometendo traição. E também não olhava para lugar algum: cabeça baixa, ensaiava passos e passes quando achava que ninguém olhava, mas, por Deus, não tinha o menor interesse que qualquer um o visse com uma expressão minimamente esperançosa. Não podia ser assim, e nem devia. Porque era justo consigo mesmo traduzir o que sentia nas noites em que a cama lhe parecia um poço, e nas horas próximas ao final da tarde, quando o grito das outras casas causava tormenta em todo o seu corpo.

Entristeceu novamente e, sem perceber, estava à beira de um cochilo, sem sequer se lembrar do que acontecia à sua frente e o atemorizava até agora há pouco. Um estrondo o despertou num só salto, e ele demorou para entender o que acontecia. Olhou para o lado esquerdo e, sobre a grama, ela rolava para próximo de sua coxa, mansamente, estranhamente colorida e cheia de vida. Em estupor, ficou paralisado. Tudo parou: por alguns instantes, as nuvens não zanzaram, as formigas se recolheram e seus olhos não mais viam utilidade em piscar. Alguns gritos percorreram, à distância, seu ouvido, mas ele não entendia muito bem e nem queria entender. Conforme foi voltando a si, as vozes ganharam nitidez: “Ei! Manda de volta aí!” Apavorado, virou a cabeça e viu vários homens de braços erguidos, peitos cada vez mais inflados e impaciência se traduzindo em urros embolados. Sua respiração voltou aos galopes. Quando queria escapar do mundo, o mundo deu um jeito de voltar a ele.

Como um relâmpago, atravessou por sua cabeça as imagens dos treinos contidos no quintal, o sorriso de quem já não podia abraçar, as dores de um final de semana sem cor. Sabia que era o momento; um braço estendido ao fosso. Dali em diante, fosse qual fosse sua ação, não poderia voltar atrás. Os berros ganharam mais ênfase e ele fez a única coisa que poderia fazer: agarrou-a forte contra o peito, em desespero semelhante à mãe que agarra o filho doente contra si. Observou mais uma vez os monstros, que agora andavam até ele, e disparou, lágrimas ao vento, pela grama, sem olhar para trás. Corria como se sua vida dependesse disso; corria porque sua vida dependia disso. Já nem sabia para onde, apenas ia, mesmo sem olhar o que pairava à sua frente. Por vezes tropicou, e se deu conta de que deixara os chinelos para trás. Não importava.

Em mais um tropeço, dessa vez mais forte, foi ao chão. Parou de ouvir as vozes que vinham atrás de si, em passadas estrondosas. Sentiu-se, pela primeira vez em muito tempo, seguro. Permaneceu caído um pouco para contemplar este momento e se levantou com a cautela do craque que, sabendo-se perseguido, apoia o braço no joelho e se ergue com dignidade. A bola havia parado alguns metros à frente, e novamente o medo veio lhe arrebatar, mas dessa vez só por alguns instantes. Correu novamente, com força e determinação, e chutou. Viu o arco no ar, maravilhado, e o toque dela ao chão não foi como o de um desmoronamento. Indo buscá-la, com um sorriso no rosto, ele percebeu que sabia cair — seja qual for o lado.

El Potro del Faro

Os dias em Cabo Polônio passam de um jeito diferente. Não mais devagar: apenas diferente. Mesmo hoje, quando os turistas chegam com seus barulhos, seus vícios e suas virtudes, ainda se nota a paz que sempre rondou aquela ponta de terra.

Só há uma certeza em Polônio. Os 24 segundos que a luz do farol leva para fazer uma volta. A noite, estrelada em céu aberto, é uma tela em negativo, riscada por um pincel claro. O farol ainda desempenha um papel importante no vaivém dos navios que rondam aquele canto esquecido. Faz tempo, há gente que cuida dele, para que não se apague e para que mantenha as embarcações a uma distância segura. O seu papel é bonito: mostra que é preciso estar perto dele para compreender que é preciso estar longe.

A certeza do cabo passa pela certeza de que haverá quem o cuide. Quem são os faroleiros? Por que alguém romperia a lógica média de ter uma vida normal? Talvez se imagine que seja solidão. Mas tem algo mais. O mar chama algumas pessoas sem motivo. O rugido das ondas, o estalar da água nas pedras. Algo chama. E foi esse chamado que inundou a mente de Gonzalo, o velho faroleiro.

Ele sempre foi quieto. Atlético, poderia ter sido um ator, não fosse a timidez. Desde cedo, fez o que todo guri de Montevidéu faz: jogou bola. Na adolescência, se destacou como um meio campo nato, daqueles que regiam uma orquestra. No futebol platino, era muito mais um domador tocando uma tropilha de potros do que um maestro. Nascera em 1942 e lembrava vagamente da festa do Maracanazo.

Talvez essa mística tenha influenciado Gonzalo a pender para o futebol. As suas atuações na várzea não tardaram a chamar atenção de pessoas ligadas aos clubes da capital uruguaia. Foi numa manhã de sábado, num campo barreado, que um olheiro foi falar com Gonzalo. Ele jogou 90 minutos com pilchas de gala. Eduardo, o olheiro, já era tordilho e tinha olho bom para o futebol. Convenceu o rapaz a visitar as canchas de alguns clubes.

Juntos, visitaram vários. O Centenário já era um monumento ao futebol e impressionava. Mas foi num clube bem mais modesto que Gonzalo ouviu o chamado das águas. Pararam para almoçar na Cidade Velha depois de algumas visitas, quando Eduardo pediu que Gonzalo não se empolgasse muito com o clube que visitariam. Fora campeão nacional em 1927, mas já não era tão pujante. Terminadas as milanesas, fizeram a volta na Baía de Montevidéu e chegaram ao Cerro, bairro operário da capital.

Em frente ao portão do Estádio Olímpico de Montevidéu, Gonzalo sentiu algo estranho. Nenhuma epifania, nada abrupto. Mas, ao olhar para a cancha do Rampla Juniors, ele deixou de ser o Gonzalo de sempre. O estádio ficava na margem do Rio da Prata, e os anéis da arquibancada não faziam a volta completa. Jogava-se -e se torcia- com uma vista espetacular para a Baía. O meia estava decidido: jogaria ali. Não importava o salário, não importava nada.

O meia fez um teste e foi contratado. Era parte do escrete Friysis. Gonzalo se adaptou, fardou, virou titular. Recebeu ofertas para trocar de clube, mas algo fazia ele ficar: era aquele curso d’água, que assistia aos seus passes desconcertantes. De tanto ver o futebol pateado de Montevidéu, o Prata talvez já tivesse perdido as esperanças de testemunhar um jogador daquele nível. Ainda que forte e combativo, era limpo e elegante nas jogadas. Todos queriam ver Gonzalo marchar em campo com seu trote de cavalo andaluz. Não tardou a ser apelidado de el potro.

Tudo ia bem até que, no fútbol de potrero oriental, num clássico contra o Cerro, viu sua perna esquerda dobrar de uma maneira pouco usual. Um beque rival aplicou-lhe uma tesoura por trás, torcendo as pernas do meia. Hoje, saberíamos que se romperam os ligamentos. À época, ele só sabia que não jogaria mais profissionalmente.

Gonzalo não conseguiria jogar um jogo picado do campeonato nacional. O rapaz tímido, agora na casa dos vinte e poucos anos, teve sua única vocação esvaziada por uma entrada desleal. Seus pais haviam falecido poucos invernos antes, de modo que não lhe restava ninguém de amparo.

Tinha vigor para muitos anos de qualquer atividade. Menos para o futebol profissional. Em casa e sem muitas perspectivas, resolveu ir ao estádio que não encarava há meses. Das arquibancadas, mirava o rio. Pensou que deveria fazer algo que ainda o mantivesse próximo da água. Não podia nadar, não sabia pescar. Tampouco sabia navegar. Apenas ouvia aquele chamado.

Dali uns dias ou meses, ele nunca soube precisar, ouviu no rádio que estavam procurando um faroleiro novo para Cabo Polônio. Não entendia nada de faróis, tampouco sabia onde ficava o lugar. Mas foi à sede da Armada Nacional entender melhor. Era apto ao trabalho, e um total de três pessoas haviam se inscrito: ele, um idoso e um padre. Não tardou para ser avisado de que ganhara o emprego.

Depois de arrumar suas coisas, embarcou num ônibus para Rocha, capital da província onde ficava o farol e de lá, a cavalo, chegou ao povoado de pescadores. Se hoje o local parece inóspito, calcule nos anos 1960.

O antigo faroleiro precisava de um sucessor. Já não aguentava as lides diárias, que não eram muitas. Limpeza, manutenção do farol, tarefas de registro. Gonzalo daria conta tranquilamente. E mais: ficaria sozinho e próximo ao mar. Lembraria até o fim da vida a sensação de chegar próximo às pedras. Ver os leões marinhos -seus vizinhos-, sentir o cheiro do mar e ver aquele descampado. Ele sentiu a mesma coisa que sentira quando colocara os olhos pela primeira vez na cancha do Rampla Juniors. Era ali o seu lugar.

Chamou atenção um campo de futebol modesto, no gramado plano al rededor do farol. O antigo faroleiro, já com a pressa de quem quer regressar para sua casa, disse que os pescadores costumavam jogar ali às vezes. Gonzalo sentiu felicidade e pavor juntos. O futebol estava longe da sua realidade, mas logo abaixo dos seus olhos. Depois, quando subia para limpar os vidros do farol, via que era a mesma relação que os navios tinham com a luz que a construção emanava: chegavam perto para saber que deveriam ficar longe.

O farol era bonito. Caiado na base, subia alto e iluminava todo o vilarejo, indo até as pedras mais distantes no mar. A casa do faroleiro também era boa. Típica meia água uruguaia, simpática pela frugalidade. Gonzalo se adaptou rápido à rotina.

Um dia, no terraço, tomando mate aos pés do farol, viu os pescadores chegarem com uma bola. Vieram alguns marinheiros também. Enquanto um senhor barrigudo prendia fogo no parrillero, eles iam se dividindo em dois times. A bola rolaria sob os seus olhos, com o mar de testemunha.

Gonzalo assistiu a tudo lá de cima. Viu o jogo, o assado, o vinho. Era o mesmo fútbol de potrero que encontrara na capital. A cena passou a se repetir conforme o verão se aproximava. Os fins de tarde eram animados pelas partidas. Depois, juntavam tudo, davam tchau para ele e partiam.

Um dia, depois de uma semana de chuvas e de frio em pleno verão, Gonzalo acordou irritado. O barulho de gaivotas, os leões marinhos agitados, achou que estava cansado daquilo. Mateou em silêncio e viu o sol aparecer tímido pela primeira vez em dias.

Ao entardecer, mesmo com o campo encharcado, os jogadores apareceram. E pareciam estar ainda mais felizes, como que a comemorar a trégua da chuva. Jogavam descalços, de bombachas arremangadas. Alguns inclusive entravam em campo de boina. Uma confusão organizada.

Gonzalo entendeu que não tinha raiva do Farol, a quem já tinha se irmanado. Era só saudade da bola. Foi naquele dia que o seleto grupo de pescadores de Cabo Polônio conheceu El Potro del Faro. Tímido, apareceu em volta do campo, sendo cumprimentado por todos. Bartolomé, pescador de uns 30 e poucos anos que pareciam 60 de pele e 20 de energia, convidou o faroleiro para jogar. O homem que nunca havia ficado nervoso jogando partidas contra o Nacional tremeu diante de 12 pescadores destreinados.

Timidamente, arremangou as bombachas, tirou as alpargatas e entrou no time que jogava sem camisa. Há coisas na vida que não se desaprendem. Quem nasceu com a bola no corpo não perde. Gonzalo deu dois ou três passes para sentir o joelho e ganhar confiança, percebendo que estava tudo aparentemente bem.

Quando se deu por conta, estavam todos boquiabertos com o requinte das jogadas do faroleiro. Embora tivesse bom físico, nunca imaginaram que aquele homem de poucas palavras fosse um jogador daquele quilate.

Foi então, no assado depois do jogo, entre carne e copos de tannat, que Gonzalo contou sua história. Os pescadores queriam ouvir causos e saber mais sobre a vida em Montevidéu. O mais velho deles, Hernán, entre uma tragada e outra do seu palheiro, achou estranho um jogador tão bom estar naquele fim de mundo.

Gonzalo disse que a água o havia chamado. Quando soube do posto no Farol de Cabo Polônio, sabia que ali era seu lugar. Quando chegou, teve certeza. O pescador, coçando a barba amarelada pelo fumo, entendia. O campo e o mar, quando chamam, são irrecusáveis.

Assim Gonzalo passou os anos. Fez amizade com os pescadores, daquele seu jeito tímido. Jogou futebol, comeu assado, aprendeu a pescar. Cuidou do farol por quase quarenta anos. Levou uma vida monástica, sempre perto do mar. Manteve junto de si a bola, da mesma forma que aquela imensidão oceânica.

Quando a velhice o alcançou, trocou o farol pela casa de repouso em Rocha e as lides pelas memórias. O chamado das águas, que ouvira 60 anos atrás, era quase um susurro. Já há anos sem visitar Polônio, pediu aos cuidadores que arranjassem um meio de levá-lo ao Farol para uma despedida. Ele sentia que a luz do seu próprio farol se apagaria. Era como se ele estivesse vendo, da meia lua adversária, o juiz posicionar o apito entre os lábios para o silvo final.

O acesso ao vilarejo ficara mais fácil. Os 4x4 faziam a travessia em poucos minutos. Falaram com o novo faroleiro e pediram para Gonzalo passar a noite lá por uma última vez. El potro foi bem recebido por todos. Houve um grande assado, e, claro, uma partida de futebol entre pescadores, marinheiros e até alguns turistas que hoje são frequentes no povoado.

Finda a festa, já na escuridão, Gonzalo foi acomodado no seu antigo quarto, como se nunca tivesse deixado o aposento. Ficou lá, sentindo-se velho e fraco, como se aquele corpo não fosse seu. Lembrou o vigor dos tempos de Rampla Juniors, lembrou a imensidão da vida de faroleiro. Entendeu que os clarões que ele abria no campo eram iguais aos clarões que o farol abria no mar.

De madrugada, foi dar uma última olhada no campo. Aquele mesmo campo onde jogou pela maior parte da sua vida. Seu Centenário particular.

Parado, pouco depois da meia cancha parcamente desenhada, olhou para o gol, olhou para o farol e sabia que havia chegado a hora. O árbitro apitaria. E ali, esperou o farol lhe dar as costas, como que a poupá-lo desse momento triste. Naqueles segundos de escuridão -única certeza do cabo-, el potro encontrou a única certeza da vida. Ia para sua eterna noite entre cancha e mar. O velho faroleiro finalmente descalçava as chuteiras.

Homens sem crachás

1.

Há um tempo venho matando meu pai na cabeça.

2.

Não, eu não tenho interesse em herança. Não, eu nunca sofri um abuso. Há um tempo eu venho planejando despedidas. Há um tempo eu venho. Há um tempo eu velho. Há muito tempo eu muita coisa. Há um tempo eu diferenciei meu avô de meu pai e meu pai de uma sombra.

3.

Eu não tenho uma memória excelente. Costuma ser mais fotográfica e ignorar a infância porque nela mora uma criança que eu não era; então vamos de novo.

4.

Há um tempo venho matando meu avô na cabeça. Não é por ódio nem nada, mas a verdade é que venho matando meu avô na cabeça. Não sei quantos mataria.

5.

Guardo comigo poucas experiências por causa da memória seletiva. Aprendo mais com gestos do que com palavras. Há pouco tempo o avô que é meu entrou no meu escritório — de três da manhã às onze, meu quarto; de onze às três, escritório. O avô que é meu tem mais cinco netas e disse ter saudade do neto. Eu ocupado com duas telas cheias finalizava um trabalho para depois poder dar atenção ao avô que é meu. Antes de sair do escritório-quarto perguntou se eu lembrava de uma foto.

6.

Sabe o que eu tenho guardado lá em casa? Uma foto sua pequenininho, com os cabelos brancos de tão loirinho com uma bola na mão maior do que o tamanho da sua cabeça. E aí você trazia a bola pra mim pra gente jogar.

7.

Antes de perguntar da foto, perguntou se podia ler.

8.

Não, respondi sem tirar os olhos da tela. Tá bom, então eu te espero na sala. Ok. Meu filho, sabe o que eu tenho guardado lá em casa?

9.

Antes de terminar a tradução que fazia fiquei pensando na saída dele fechando a porta com relutância. Era um olhar triste, meio sem força.

10.

Meu avô passou no banheiro para trocar o curativo que tinha no rosto. Naquela semana, havia caído três vezes na rua.

11.

Um blackout. Um apagão. Um tropeço. Uma queda. Pessoas preocupadas. Onde você mora? O senhor tem plano de saúde? Você tá sozinho? Tá tudo bem? Aonde eu estava indo?

12.

Pelo que eu sei, estava indo à farmácia. Meu avô tem em sua cabeça uma realidade gloriosa. Ia à farmácia o homem que fora o maior proprietário de terras do Rio de Janeiro. O homem que foi diretor do Fluminense e assistiu às vitórias de alguns campeonatos ao lado de seu bom amigo Chico. O homem que ouvia Tom e jazz ao lado de seu bom amigo Chico e cantarolava as rimas sentado enquanto servia um whisky. O homem que produzia leite no interior do estado. Em suas próprias palavras: um homem de notório saber.

13.

Esse era o homem que esteve comigo na maior parte da infância enquanto meu pai transladava duas cidades a trabalho. Saía cedo para São Paulo; eu dormia. Chegava tarde à Campinas; eu dormia. Mas dava a tarde e eu sabia que tinha na porta da frente do décimo andar meu avô andarilho. Na terça-feira teria meu avô contador de histórias fazendo meu leite com Nescau que não era Nescau. Na quarta-feira, meu avô semiatleta que me levaria numa sorveteria. Na quinta, meu avô motorista me colocava numa bicicleta. Na sexta, meu avô saudosista.

14.

Por causa desse paivô elaborei um dos melhores presentes que me ocorreu naquela idade: dei de aniversário a ele uma bateria como aquelas de carrinho de controle remoto. Junto havia uma carta: essa bateria é para quando seu marca-passo estiver precisando de mais energia.

15.

Chorou. Contou de como era importante receber carinho da família e se sentir amado. Disse que desse jeito era capaz de minha avó querer se casar com ele. Disse também que tinha uma foto linda que eu segurava uma bola maior que minha cabeça e o chamava para brincar.

16.

Minha carreira futebolística ficou fadada à primeira aula que fiz. Uniformizado e matriculado pelo meu avô, com toda a gana de quem queria recompensar o investimento e encher de orgulho aquele que fora diretor de um grande clube carioca, roubei a bola e corri como nunca fizera antes, como não correria hoje em dia da polícia. Fiz meu primeiro gol e saí do campo para abraçá-lo. Meu avô de pé batia palmas e dizia que eu deveria voltar para o jogo. Entrando novamente em campo, o professor me avisou que meu gol era do outro lado.

17.

Meu avô, aquele grandioso leiteiro, viu de cima a Tetra Pak nascer no Brasil. Meu avô, aquele grandioso leiteiro, começou a ficar menor por conta de um alfinete. Meu avô, aquele visionário, achava que não precisava modernizar as embalagens.

18.

Meu avô hoje conta como teve uma vida farta. Meu avô vive num passado mais presente do que a realidade. Meu avô briga com sua identidade. Meu avô confronta o homem que é com o homem que foi, o que faz com o que fez, onde mora com onde morou.

19.

Meu avô não se refere ao fracasso como falência nem à falência como fracasso. Meu avô foi forte, mas não o suficiente para escalar as memórias. Meu avô não morreu nem evoluiu tanto. Vive ainda no passado, dorme nas memórias e se aconchega nas lembranças (que inventa).

20.

Meu avô tem problema de memória, mas ainda tem certeza de que minha avó aceitaria se casar com ele. Meu avô é divorciado. Rescindiu a comunhão de bens para que pudesse salvar uma parte do que tinha. Gastou tudo.

21.

Meu pai fez parecido ao voltarmos da Venezuela. Se trancava no quarto no café da manhã e saía de noite para jantar. A potência do homem cabia na carteira. O sucesso seria fruto da conquista. Meu pai ficou dois anos desempregado.

22.

Meu avô sucumbiu ao confrontar memória e momento. Meu pai construiu a partir da memória uma meta. Meu pai reagiu, mas talvez fosse só porque tinha mais tempo. Talvez fosse só porque tinha quatro filhos. Talvez porque ao conseguir um emprego se sentia humilhado no caminho de ida e de volta, ganhando um quinto do que hoje a filha com menos de metade de sua idade ganha e ainda ajudando o sogro enquanto era ajudado. Meu pai maquiava a realidade a custas altíssimas para que as crianças não percebessem e para que a esposa não colapsasse.

23.

Herdei um certo conceito de sucesso. Um certo temor de falir. Uma necessidade de me construir por inteiro, por dentro e por cima. Cresci perguntando quem são vocês sem crachás.

24.

Meu pai construiu uma meta a partir da memória que queria ter.

25.

Aprendi a pisar nos cacos dos vestígios para que só virassem memória aqueles que me furassem. Meu avô preferiu varrer para que ninguém se ferisse.

26.

Meu avô declara amor pelo genro, mas trata pelo primeiro nome a esposa de sua filha e o marido de seu filho. O que não se nomeia não se sente.

27.

Meu avô tem uma foto ótima minha segurando uma bola. Meu avô parece mais criança do que a criança da foto. Meu avô só é criança há mais tempo.

28.

Meu avô vem se machucando. Meu avô vem caindo da cama. Meu avô vem caindo na vida.

29.

Há um tempo venho matando meu avô na cabeça.

30.

É para que não dê tempo de sobrescrever as memórias que tenho dele.

Quando a gente era rei

O bairro todo se reuniu para a ver Pelé. Fazia muito tempo que o nosso time não chegava numa semifinal de campeonato. E o meu irmão jogava na zaga, o que deixou o jogo ainda mais especial. Eu fui ao campo de carona no Corcel do pai de um amigo. Ele estava sempre tocando violão. Na final do tri, quando a gente tinha uns 12 anos, e todo mundo saiu para comemorar na rua, fizemos uma versão de “Aquele Abraço” com a letra modificada para coisas relacionadas ao futebol. Aquela dedicatória do Gil na introdução, um “samba para Dorival Caymmi, João Gilberto e Caetano”, modificamos os nomes para “Jairzinho, Tostão, Pelé e Rivellino”, e assim por diante.

Praticamente toda minha rua foi nesse jogo. O meu vizinho Mauro, vulgo Papa-Léguas, que às vezes apostava corrida com um dóberman; o Guinho, que o irmão morreu se jogando nos trilhos do trem; o Léo, que algum tempo depois a gente soube que o pai dele saiu de casa para morar com outro homem (eu mesmo nunca perguntei); o Denis e Tales que eram novos na vila, mas todo mundo estava sempre na casa deles, porque eles tinham uma TV a cores — era o tipo de família que já comprava leite de caixinha. Todo mundo estava lá, inclusive o Topo Gígio e a irmã do Topo Gígio, que durante as tardes cuidava do Cláudio, um alemãozinho bem mais novo que a gente e que gostava de jogar no gol, depois virou jogador profissional no Inter de Porto Alegre e vai jogar a Copa na Itália esse ano ainda.

Pelé era o André que estudava no mesmo colégio do meu irmão, oito anos mais velho. No bairro a gente conhecia ele como Dedé, o novo apelido é coisa de quando ele se mudou pra Vila Sapo, uma comunidade de casas irregulares recém-construídas em cima de um brejo às margens do rio onde a cidade literalmente acabava. Não tinha campo de futebol na Vila Sapo e o Pelé começou a jogar pelo time do Oriente, no bairro Rio Branco, mas que todo mundo chama de Elo Perdido. No Oriente, o Pelé fez mais de 100 gols e o time era o atual tetra campeão citadino antes daquela semifinal.

Ele chegou a fazer teste em time profissional, mas diz a lenda que o olheiro do clube achou ele muito alto e molenga para um atacante e teria dito, infamemente, que “esse Pelé aí tá pra mais Toni Tornado” — e depois do episódio a torcida dos outros times ficava o jogo todo chamando o Pelé de Toni Tornado.

Para muita gente domingo de torneio de várzea era melhor que a Copa. Dava três, quatro mil pessoas em volta do campo e os jogos começavam às 10 da manhã. O nosso campo era um dos melhores. Tinha grama, marca da cal bem retinha, um vestiário atrás do gol (para o nosso time, o visitante se fardava atrás das árvores), e uma lanchonete que servia mocotó em domingo de jogo (às vezes dava para se fardar no banheiro da lanchonete, mas tinha de pedir autorização). O campo era bem linear, mas a bola não parava em um dos corners. Para muita gente era o próprio Maracanã — acho que não tinha nome oficial, alguns chamavam de o Campo do Seu Perpétuo, que era o dono da lanchonete, eu mesmo só chamava de “campinho”. O valão próximo da lateral, que separava o campo da rua, era uma inconveniência. Uma regra não-escrita era que quem chutasse a bola na vala tinha de buscar.

Com o tempo o Maracanã virou um terreno baldio. Hoje é um desses condomínios fechados com guarita e uma quadra de futebol society para os moradores. A rua é asfaltada e a lanchonete virou restaurante japonês.

Outra história infame do Pelé naquela semifinal do Oriente contra a gente foi que ele quebrou a perna do meu irmão, que nunca mais jogou bola. Pelé chegou de carrinho numa bola morta da lateral, e o pé do meu irmão ficou preso num buraco de grama. Estourou tíbia e perônio e a cicatriz da cirurgia é do tamanho do mapa do Chile. O jogo foi 4 a 1 pro Oriente.

Quase 15 anos depois, ontem foi a primeira vez que o nosso time jogou uma semifinal desde aquele fatídico jogo. Praticamente toda minha rua, que estava lá assistindo, hoje joga no time. O Guinho na zaga, Papa-Léguas é o ponta-esquerda, o Léo no gol (o pai dele aparece em todos os jogos com o mesmo amigo), e no meio jogam Topo Gígio, Denis e Tales, que com um ano de vila se tornaram Tico e Teco. Um meio de campo com um rato e dois esquilos, mas eu nunca tinha pensado nisso até esse momento.

Teve um jogo que foi para os pênaltis e o Tico e Teco começaram a bater boca sobre quem ia bater.

“Me respeita que eu tenho barba, rapaz”, gritou o Teco, que era mais velho.

“Se barba fosse sinal de respeito o bode não tinha chifre!”, respondeu o Tico, que pegou a bola, bateu o pênalti e errou. Por pouco não saíram no soco.

Quase todo mundo que jogava bola tinha apelido. E com certa frequência um apelido porque parecia com um jogador. Desde que eu entrei no time, logo depois da palhaçada da Copa de 78, acho que já joguei contra um time inteiro de sósias. Biro-Biro, Chulapa, Rivellino. Não tinha muito apelido de jogador europeu na época, só lembro do Predôme, um crespinho que parecia o goleiro da Bélgica. Quase todo goleiro na várzea era o apelido de um goleiro famoso: Filol, Rojas, Manga. E tinha apelido que era nome. O Adílio, do nosso time, é Paulo Cézar — e ele é lateral-direito, mas realmente parecido com o Adílio original.

Uns cinco anos atrás joguei na despedida do Pelé. Uns quinze quilos mais gordo, a torcida fica xingando ele de Béri Uáti por causa do cantor americano — os tempos de Toni Tornado ficaram para trás. O Pelé não lembrava do meu irmão. Ele saiu no segundo tempo, ganhamos de 4 a 0. Foi a despedida porque ele se acidentou de moto indo para casa. Ninguém sabia que aquele jogo seria a despedida do Pelé. Nessa altura ele já devia ter uns mil gols também, mas vai saber. Não tem estatística oficial na várzea.

Nosso treinador hoje é o pai do amigo que me deu carona no jogo histórico contra o Oriente do Pelé. Ele vendeu o Corcel e dirige um Kadett, que se bem me lembro comprou na semana do título da Copa América. Perdi um pouco de contato com o filho dele, mas a gente comemorou a vitória juntos num bar desses de música a vivo, onde enchemos o saco da banda até ela tocar uma versão modificada de um som dos Engenheiros que criamos ali na hora, “Era Um Garoto Que Como Eu Amava o Bebeto e o Romário-ô”. Eu não lembro mais a nossa versão completa de “Aquele Abraço” comemorando o tri.

Nosso time vem batendo na trave nos últimos anos. Ano retrasado caímos nos pênaltis (e agora toda torcida fora de casa imita um bode quando o Teco, que continua de barba, encosta na bola); ano passado a semi, que não jogamos após escalar um jogador irregular. Mas esse ano deu liga.

O jogador que a gente escalou de forma irregular é um baixinho da rua de cima casado com a mulher do Topo Gígio, o Danilinho. Eu não vou com a cara dele, mas ele joga muita bola. Aquele clássico camisa 10 marrento que não passa a bola pra ninguém e não corre. Certa vez ele ganhou, com certa fama no bairro, a Tríplice Coroa (categoria mirim). Foi campeão do torneio de futebol de campo (Mirim), o Interséries de futebol de salão (que a gente jogava em uma quadra de cimento) e o torneio da rua de futebol de botão — ele ganhou e nem morava na nossa rua.

Mais velho ele chegou a jogar nos juvenis do Grêmio de Porto Alegre, só que foi dispensado antes de chegar aos profissionais pois segundo a lenda o olheiro do clube dizia que com aquele tamanho ele só daria pra jóquei de pônei. A gente chama ele de pônei pelas costas, não é um apelido oficial.

A semifinal de ontem ganhamos de 1 a 0 com um gol dele.

O campeonato de várzea já não é a mesma coisa que antigamente. Antes o cara jogava pela oportunidade de ser visto por um olheiro de clube profissional, mas agora o cara que já foi renegado pelo clube profissional quer vir para receber dinheiro na várzea. Um monte de andarilho que troca de clube toda hora. Os campos já não tem grama. Torcedores aparecem uns 100, 150 quando muito. Trocaram mocotó por hambúrguer.

Em um mês começa a Copa na Itália e a final do citadino foi antecipado. Quem sabe a gente comemora esse tetra com uma taça. Vai ser a minha despedida oficial dos gramados, o menisco já tá estourado. O meu irmão, que foi trabalhar no Paraná, na sede do Bamerindus, reservou passagem para ver a final. A gente pega o Oriente, que também não chega a uma final desde Pelé, o último rei da várzea. O craque deles hoje é um alemão cabeludinho muito oportunista. Todo mundo chama ele de Caniggia.

Sinalizadores molhados

Ao fim e ao cabo, não poderia ser diferente. Quando os refletores começaram a se apagar e, encharcado de ponta a ponta, contemplei o réquiem dos jogadores em campo, não me senti amargurado. Perdemos, por óbvio, mas a sensação canônica e inexorável que apenas a derrota futebolística, e somente ela, é capaz de causar nos homens eternamente marcados pela chaga das perdas, não me acometeu. Eu, um fanático inveterado, de retinas laceradas pelos jogos às dez da manhã, característicos das divisões inferiores, e incapaz de me surpreender com o mais devastado pasto futebolístico, assombrosamente saboreava aquele resultado. Afinal, questionei-me, uma vez que ao meu lado os velhos camaradas de cancha praguejavam contra os tímpanos calejados do nosso camisa 10 — um daqueles esquerdinhas intrinsecamente fominhas, designados por traiçoeiros deuses a serem craques punidos pelo seu apego passional à bola — e maldiziam os antepassados mais longínquos do árbitro, que cultivava uma barba incipiente, de início de carreira, e um penteado castigado por um gel barato e, não obstante, muito brilhante, em claro contraste com a sua recente atuação.

Quando Jorge, meu amigo de anos e também um convicto apaixonado pelas cores que nos tingiam o cosmos, tocou bruscamente no meu ombro, parecendo ensaiar uma fuga da já quase esvaziada arquibancada, despertei das divagações que fazia acerca desse sentimento em ebulição, que fervia meu corpo, a despeito da chuva gelada que ainda não havia cessado. Estava, se não feliz, ao menos satisfeito com a goleada humilhante que meu time havia sofrido. O problema era que esperava, pela minha experiência arqueológica nas ruínas do futebol quando das invariáveis derrotas, ao contrário, um furor insaciável, descontado à custa dos meus pés, que sempre saiam perdendo na contenda entre o perene concreto do estádio e as saraivadas dos meus pontapés ensandecidos.

Então, por um momento, temi. Teria perdido o amor por aquele clube ao qual dediquei as noites mais formosas da minha juventude, há anos extinguida pela alvorada da década passada, e as manhãs de sábado, em que minha companheira desfrutava o ócio dos finais de semana debaixo das cobertas, enquanto eu requentava o café — crime inafiançável a quem, como eu, prezava pela infusão forte, fresca e fervendo — para poder chegar a tempo de vê-lo jogar? Seria possível que uma devoção de contornos sacros, com estádios-templos, jogadores-santos, hinos-missas e torcedores-fiéis, se esfumaçasse em ateísmo por conta de uma mera derrota, que nada carregava de singular dentro do panteão de certames perdidos pelo meu time?

Imediatamente expurguei essa ideia do meu âmago, inconcebível para mim e para todos os que compunham o lacônico público pagante de pouco mais de mil almas penadas, e me pus a seguir Jorge, que já se distanciava. Por conta de uma deficiência hereditária nas pernas — uma alegoria perfeita à maldição de termos nascido hinchas do fracasso — , caminhava com uma lentidão que me permitiu alcançá-lo rapidamente, e, ao alinhar meu passo ao dele, mergulhei novamente naquele turbilhão de reflexões sobre os sentimentos aflorados pelo recém-malparido revés. Percorrendo a avenida em que o túnel do Tristonhão (a irônica alcunha do estádio, forjada em homenagem ao primeiro presidente do clube, Antônio Barros de Assis, o Tonho, que oficialmente o nomeava, e às tristes mazelas que ocorriam em seu gramado) desemboca, procurei, aproveitando o paralelo que havia acabado de estabelecer, as razões da minha satisfação derrotista no sangue que corria em minhas veias.

Esmiucei, pois, os cantos recônditos e empoeirados da memória em busca das raízes paternas que assombravam as minhas origens. O Chileno, como era conhecido meu pai desde os tempos em que pusera os pés nesse solo desconhecedor da magnitude temerária dos Andes, achou de bom-tom adotar como seu o escrete do bairro. Distante do time de coração, obrigado a abandoná-lo em sua terra de generais, acalentou o desencantado órgão vital ao envolver seu peito naquele maldito, mas belíssimo manto tricolor, que me acompanha ensopado enquanto recordo. Primogênito varão, encarreguei-me de envergar as dores e as paixões herdadas do Chileno. Mais do que a escritura do sobrado ou a paixão pelo vinho seco, legou-me o time e as suas terríveis maldições.

Para além dos dias de futebol dividindo o sofá enquanto esperávamos as empanadas se assarem no forno de barro, afeiçoei-me a resistir. Olhava como mí viejo mantinha intacta a paixão pelo seu derrotado tricolor, apesar dos fantasmas que rondavam incessantemente aquele amontoado de efêmeros jogadores. Um deles, o fantasma do rebaixamento, era o visitante mais assíduo do clube e também da casa, tornando-se sócio torcedor depois de memoráveis aparições em nossa história e que, certamente, deve ter bebido com meu pai na mesa simples de mogno que mantínhamos na cozinha. Mas as péssimas atuações da equipe e a suas oscilações pelas tabelas não eram o que de pior havia por aqui. A iminência da desaparição daquele escudo, daquelas cores, daquele amor, enfim, do time que adotou e fora adotado por nós, atormentava os seus fanáticos hinchas, incapazes de idealizar uma vida sem a sua razão mor de ser. E o medo se justificava.

A qualquer sociólogo de boteco, com bacharel nos pequenos televisores que dividem a prateleira com os licores do bar, é simples perceber que, gradualmente, o crescimento do futebol espelhou-se no desenvolvimento atrofiado dos meios de produção da nossa sociedade. Vivemos e respiramos o ar carbonizado das indústrias e automóveis, frequentamos as feiras de agrotóxicos com o nosso poder de compra cada vez mais reduzido e rastejamos bravamente por miseráveis direitos trabalhistas; ao passo que torcemos por times de plástico, com brasões, ou melhor, marcas reformuladas à moda internacional do momento, compramos camisas de jogadores-produto, que perecem facilmente aos encantos da irresistível janela de verão, e, por fim, assistimos inertes ao crescimento inevitável dos monopólios financeiro das grandes instituições. Está escrito nos anais da História mercadológica, liberal e futebolística que nos é enfiada goela abaixo: os pequenos estão destinados a serem oprimidos, esmagados pela engrenagem do capital, até deixarem de existir.

Mas, como ensinou-me bem meu pai, resistimos. Bairro e clube viram, do princípio do século aos tempos hodiernos, a cidade crescer monstruosamente ao seu lado. Mesmo ao despejar o dono da quitanda, o acabrunhado Seu Peres, e hipotecar o terreno do estádio aos credores bancários; mesmo ao comprar quarteirões inteiros para construir um colosso desfigurado em espelhos — as mecas do consumismo, os shoppings, ou prédios empresariais em que nunca entraremos — e pechinchar o nosso craque para edificar o campeão da Champions League, a velha e eficiente mecânica do capitalismo decante não dobrou o varal em que se estendiam as nossas camisas de jogo. Resistimos eu, meu pai, Jorge, seu filho e os filhos que não tive. Afinal, a História que é escrita pelos vencedores, com o sangue dos derrotados, não convence quem aprendeu a sobreviver à duras penas. Ameaçadas de morte pelo cano fumegante do imperialismo, as experiências democráticas latino-americanas, as improváveis décadas de uma revolução ilhada, as guerrilhas em montanhas impenetráveis e as lutas sociais contra a precarização do viver são as estrelas que carregamos acima do escudo do nosso time.

Então, finalmente percebi. Sou, de fato, torcedor de um time em frangalhos e respiro um continente de veias abertas, expostas, reviradas. Mas não — como entendo agora, depois de vasculhar a trajetória do meu pai, que se confunde com as andanças do mundo — , não encontro satisfação na derrota. Apenas aprendi a resistir aos seus penosos efeitos. A derrota me escancara, diametralmente, a beleza de continuar perseguindo a vitória com aquele golzinho chorado aos quarenta e cinco do segundo tempo, empunhando o brilho nos olhos que meu pai levou consigo hasta la muerte, para que os vermes telúricos também pudessem provar dessa única sensação. Em exílio, desterrados, endividados, na periferia do sistema-mundo, seguimos lutando de cabeça erguida, como um bom meio-campista que se preze. De repente, ouço uma voz distante. É a inconfundível rouquidão de Jorge dissolvendo os meus pensamentos andarilhos.

— Que merda de time — resmungou, enquanto se esgueirava em direção à estação de trem. Mal tive tempo de recobrar a consciência e acenar com as mãos, como que tentando me despedir. E de longe, já subindo as escadas do terminal, gritou:

— Até sábado, compa!

Olhei no relógio e notei que ainda tardaria para o meu ônibus voltar a circular. Agachei, toquei na protuberância que salientava-se perto do meu calcanhar esquerdo e descobri o que já havia esquecido: o velho sinalizador, que ritualisticamente carrego para os raros momentos em que vencemos, embebido na água ácida das tempestades da metrópole. Junto aos cigarros, quase inteiramente molhados e recuperados no fundo do bolso da calça, encontrei o isqueiro de benzina e tentei acendê-lo. Em vão, por supuesto. O simples intento, contudo, reafirmou o que eu estava sentido antes de ser despertado pelo pragmatismo de Jorge. Para o caralho com as vitórias, pensei, me controlando para não gritar. Fumei um cigarro. Entrei no ônibus lotado. Sábado tem jogo.

Resultado final do Grupo H

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