Torneio de Contos de Futebol — Mario Benedetti: Quadrangular 1 [encerrado]

Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo
23 min readJun 2, 2020

--

Resultado: Com 37,5% dos votos, Los Caimanes (Noções de elasticidade) vence o Quadrangular 1 e é o primeiro finalista do Torneio de Contos! O 3 de Febrero (O velho da casaca), no segundo lugar com 27,3%, também entra no grupo dos quatro premiados ao fim da competição. Resultado completo no final deste post. Reforçamos para que autores e autoras não identifiquem grupo nem texto até o final do campeonato, seja em casa de classificação ou eliminação. A final está prevista para 8 de junho.

Começa a fase final do Torneio de Contos de futebol— Mario Benedetti. Oito times divididos em dois grupos. O primeiro de cada grupo faz a grande final. O segundo de cada quadrangular também será premiado. Portanto, eles que lutem!

Claro, a essa altura você que acompanha o torneio já conhece os textos. Estão aqui no Quadrangular 1 quatro times que venceram seus grupos na primeira fase: Vaca Diez, Los Caimanes, Cortuluá e 3 de Febrero. Cada um deles teve o apoio dos leitores, mas agora só um passa à decisão.

A votação do Quadrangular 1 fica aberta até quarta, 3 de junho, às 23h59. Leia os quatro textos e vote no campeão em enquete ao fim desta página (você precisará logar numa conta Google — também somos vítimas das grandes corporações). Somente o primeiro colocado da chave avança para a final. Listo?

Os quadrangulares vão a campo nesta semana, terça (02/06) e quinta (04/06). Aqui você vê o lançamento da fase final, e aqui o regulamento e tabela completa aqui. Bom jogo!

ATENÇÃO: Reforçamos aos autores e autoras que não identifiquem (muito menos republiquem) seus textos nem seus grupos até o final da Copa.

Nota: nenhum conto sofreu qualquer tipo de edição por parte da equipe do Puntero Izquierdo.

Camisa 5, Valdir da Jura

Quanto mais dura a falta que cometia, mais grave a penitência que pagava em busca de redenção: um pontapé simples, desses que interrompem um contra ataque, lhe custava dez Ave-Marias; um tostão maroto, para impedir que o maldito cristão continuasse a infernizar a defesa, rendia quinze louvações à virgem e um Pai Nosso (Pai Nossos eram os juros incidentes sobre atos que escondiam intenções pecaminosas); um carrinho maldoso, daqueles que arrancam tufos de grama do chão — além de levantar o adversário — , culminava em alta expiação: cinquenta Ave-Marias, dez Pai Nossos e um Credo, pela periculosidade do ato; por fim, uma cotovelada, uma tesoura ou um tapa na cara — casos mais raros, é verdade — resultavam no dever de encomendar missas em nome do atingido. Foi por isso, por seus pecados e suas penitências, que o camisa cinco Valdir, volante-volante do América de Alfenas, foi batizado de Valdir da Jura.

Valdir era um jogador de futebol com predileções eclesiásticas. Seu dom era parar um ataque, sua dádiva era o coice. Recebera a missão divina (Seu Divino era o técnico do América) de ajudar os miseráveis zagueiros. Assim, defendia a grande área como ortodoxos defendem sua fé — e nessa cruzada contra os atacantes adversários, os maiores pecados de Valdir eram o alto número de cartões vermelhos e a ausência de compaixão para com o próximo, lição que estava por aprender.

Ainda que não tenha sido um atleta de talento iluminado, Valdir da Jura disputou partidas canônicas ao longo de sua impura carreira. A maior delas entrou para a história da cidade como “O jogo do ‘Deus te abençoe’”.

Era final do campeonato regional de futebol amador. O humilde América, trajando mantos vermelhos, enfrentava a soberba e ostentosa Tombense. Ao América, bastava o empate para garantir o título. Mas o adversário adentrou as quatro linhas com ganas de alcançar a glória: escalou um meia ofensivo, dois pontas e um centroavante, dispostos veneravelmente em cruz.

Contudo, se no futebol o jogo ofensivo é sagrado, o Divino optou pelo profano. Para conter os falsos profetas de Tombos, o técnico recuou mais um volante e liberou seu camisa-cinco, Valdir da Jura, para instaurar o caos. Carrinho ele distribuiu às pencas; pernadas saíram às dúzias. Apenas a cotovelada e o cuspe Valdir não ofereceu por atacado: um de cada. Dos quatro cavaleiros do apocalipse, três deixaram o campo contundidos e o outro não teve força suficiente, tampouco coragem, para enfrentar sozinho a perseverança inabalável de Valdir.

Contudo, apesar do pandemônio causado pela praga enviada a campo pelo Divino, um milagre se operou naquela tarde quente dos infernos. Incumbido da dolorosa missão de castigar os adversários, Da Jura finalmente se compadeceu do próximo. Mesmo que fosse ele o operário de tal obra, padeceu-se dos irmãos que rolavam, em agonia, pelo gramado.

Foi assim que, após um lance que fez a arquibancada chiar, Valdir buscou se redimir. A partir de então, depois de cada pancada, depois de cada sopapo, ele se ajoelhava ao lado do pagão e dizia: “Deus te abençoe, meu filho.”. Era uma cena tão comovedora que se o jogo não fosse no sul de Minas, só poderia ser em Canaã, na Galiléia.

Vencido o “jogo do ‘Deus de abençoe’”, Valdir se tornou o messias daquela pequena — para o bem da verdade, era minúscula; porém fiel — legião que torcia para o América. Os devotos rendiam-lhe oferendas: constantemente Da Jura recebia em sua casa frangos assados, cartuchos de doces, pés-de moleque, cachaças de alambique e outros agradecimentos saborosos.

O problema é que, quanto mais elevado aos céus pelos torcedores do América, mais a culpa flagelava Valdir. A missão que recebera era demasiadamente ingrata. Na faixa de capitão, sentia o peso daquele fardo. Afinal, sabia-se instrumento de defesa dos oprimidos, daqueles que nasceram sem o dom da ginga e da malemolência; dos pobres coitados sem vocação para a caneta e o drible da vaca. Da Jura fora escolhido para conter o ataque dos afortunados, para tornar humildes os bem-aventurados eleitos pelos deuses do futebol. Homem de fé, não questionava as vontades do Divino: batia por convicção. Apesar disso, contudo, não havia uma tarde que não deixasse o campo tomado pela culpa.

Na tentativa de aplacar tal sentimento, na temporada seguinte requisitou que um padre da sua congregação acompanhasse o time nos jogos fora. Da Jura desejava com isso poder confessar, imediatamente, os pecados que os torcedores testemunhavam em campo. Padre Valério, conhecedor da basal e profunda importância do esporte para a sociedade — e, claro, torcedor fanático do América — , aceitou o prestigioso chamado.

Nas primeiras partidas, Valdir se confessava após os jogos e cumpria a penitência ainda no ônibus, durante a viagem de volta. Mas não se satisfez. Logo passou a se confessar nos intervalos: ao invés de escutar as instruções do técnico Divino, Da Jura se ajoelhava ali mesmo no vestiário e pagava, em forma de orações, por cada um dos pontapés disparados.

Inevitável era o incômodo que a presença do Padre Valério causava nos colegas de time. Em respeito à batina, o palavreado ficou comedido, os assuntos tornaram-se estéreis. Nas derrotas, sermão; nas vitórias, senão. O samba deu lugar ao salmo, e as viagens dos jogadores passaram a lembrar peregrinos em procissão.

Ainda pior que a presença celibatária do clérigo, era a baptismal figura na qual Valdir se transformara. Jesuitara-se. Seu primeiro ato de catequização foi ensinar orações aos colegas de time para, em seguida, obrigá-los a rezar antes de entrarem em campo. Depois, ordenou que o sacristão produzisse camisetas com versículos bíblicos (“Buscai ao Senhor enquanto se pode achar.”, Isaías 55:6, foi o primeiro que escolheu.) para que os companheiros as usassem por baixo do uniforme. Por fim, como um cordeiro, sacrificou-se em nome da fé: Valdir da Jura anunciou que não jogaria mais em dias santos.

A decisão se deu dias antes a uma partida que aconteceria em um vinte e seis de setembro, data reservada a homenagear, no calendário católico, São Cosme e Damião. Dessa maneira, no dia do jogo Valdir chegou ao vestiário sem chuteira nem uniforme; ao invés disso, trazia nas mãos sacos e mais sacos de doces. Distribuiu-os a todos os colegas, ao técnico Divino e a sua sagrada comissão. Sem necessidade de explicação, deixou o vestiário e seguiu para as arquibancadas, de onde viu, rodeado por crianças com as bocas lambuzadas pela tradição, o América ser derrotado por três a um.

A promessa se manteve: Da Jura não jogou no dia de São João, do Padre Victor e de Nossa Senhora Aparecida; até mesmo nos dias santos menos prestigiados, como São Jerônimo e Santa Luzia, o volante não calçou suas chuteiras. Em todos eles, o América foi derrotado.

É claro que sua decisão causou um rebuliço na cidade. Houve revolta e quebra-quebra. Colegas de time praguejaram, torcedores blasfemaram. Houve até quem acusasse o próprio Jesus de Yoko Ono.

Em vão. Tempos depois, Valdir da Jura pendurou as chuteiras atrás da porta da sacristia. Hoje ele ajuda na limpeza e na organização das vestes e dos objetos litúrgicos. Nunca cometeu uma falta. Jamais foi expulso.

Noções de elasticidade

Eu tinha quinze anos e um zero em redação quando cheguei em casa e, pelas matemáticas controversas da adolescência, o zero era muito mais relevante do que o quinze.

Naquele tempo, eu andava com o César para todos os lados, fazíamos tudo juntos, gostávamos dos mesmos filmes, líamos os mesmos livros e, muitas vezes, não sabíamos de onde surgiam algumas ideias que acabávamos discutindo por minutos ou por horas. Mas nunca pensaríamos que uma brincadeira de semanas antes pudesse se transformar naquela nota zero marcada em caneta vermelha e na chacota dos colegas. Não me lembro quem teve a ideia primeiro. O fato é que tínhamos imaginado algumas frases, cheias de advérbios e adjetivos, que poderiam ser inseridas em qualquer discurso ou texto quando quiséssemos dar a entender que falávamos de algo de que realmente entendíamos. Era um método grosseiro de esticar o texto até um ponto em que ele mesmo nos puxava de volta. Mas a ideia nunca mais tinha sido assunto e eu não imaginava que o César a pudesse usar na mesma redação que eu.

Tentamos argumentar, mas a professora não quis conversa. Na saída, eu perguntei o que iríamos fazer e ele respondeu que eu deveria me entregar. Mas se ele pensava que iria ficar com um dez e eu com zero, estava muito enganado.

– É o justo — ele disse — a ideia foi minha.

Eu tive vontade de dar um murro no meio da cara daquele desgraçado, mas me contentei em mandar ele tomar no cu. Voltei sozinho, esbravejando e tentando entender por que ele achava que a ideia era sua. Eu estava cada vez mais certo de que tinha sido eu a propor aquela brincadeira, semanas atrás. Pensei em ir até a casa dele e dizer tudo, pois naquele momento eu havia lembrado em detalhes do dia em que comentei sobre o método com ele. Mas como eu poderia provar? Era uma besteira, afinal. O pior de tudo, nesse caso, era o zero.

Só que o pior costuma durar pouco. E eu acabei me esquecendo da redação, do método e do zero quando cheguei em casa e recebi a notícia de que o vô Bigode tinha morrido.

Meu pai contou de uma maneira tão direta e eficaz quanto o infarto que meu avô teve ao sair do banho naquela manhã. Foi no início daquela Copa de 2010 e o vô estava muito ansioso: completariam 40 anos da conquista de 70.

O vô Bigode tinha seus 65 anos e quem o conheceu sabe que ele nutria alguns orgulhos esquisitos, dentre os quais, jamais ter falhado à promessa de manter o bigode até o final da vida. Não hesitava em contar a quem calhasse e ninguém sabe o quanto é verdade do que o vô Bigode falava (é preciso dizer que o seu dom de mentir era outro motivo de orgulho, e até havia os que brincavam que o bigode servia para esconder o nariz). De qualquer forma, ele dizia que o bigode tinha sido sua promessa caso a seleção ganhasse a copa de 70.

Ele me contou há alguns anos, numa tarde em que eu tentava sem sucesso driblar meu pai com uma bola de borracha no pátio de casa. Assim que eu cansei, ele me chamou para sentar ao seu lado.

– Você sabe quantos anos faz que eu tenho esse bigode? — passava o indicador e o polegar sobre os pelos, do centro para as beiradas. ­– Trinta e cinco!

Disse que a promessa se deu por causa do Rivellino, seu amigo de infância. Eu não fazia a menor ideia de quem era Rivellino e de quando essa infância havia sido, mas ele dizia que, todo final de semana, jogavam peladas pelas ruas e, em um desses jogos, meu avô inventou o elástico sem querer, quando errou a passada numa tentativa de drible e a bola acabou indo para o lado contrário. Todo mundo caiu na gargalhada e ele nunca mais conseguiu repetir a jogada. Tinha inclusive esquecido, até ver o Rivellino fazendo o elástico na televisão.

– Me senti plagiado quando vi — ele fingia rancor, balançando os braços. — Hoje ele diz que aprendeu do Sérgio Echigo. Mas o Sérgio Echigo foi justamente a vítima daquele primeiro elástico que eu criei.

Ele se divertia tanto que eu não conseguia levar aquilo a sério.

– O bigode é promessa ­– ele disse — mas é também uma forma de cobrar meus direitos autorais.

Não sei se ele o raspou alguma vez. Meu pai garante que não e, com exceção de algumas fotografias da juventude, eu nunca tinha visto o meu avô sem o bigode. O que não tinham me contado era o que ninguém, além da minha vó, dos médicos e de quem preparou o corpo, sabia. Pois ignoramos algumas coisas pela confiança no trabalho alheio. E nesse meio tempo, da casa para o hospital, para o necrotério, para o caixão, algo se perdia e ninguém pensou em promessas, se aquele corpo pertenceu ao inventor do elástico ou foi amigo de Rivellino. Pois, se havia uma coisa que eu não estava no lugar, além do corpo sem vida, era o bigode, totalmente raspado no rosto do meu avô.

Minha primeira reação foi de alívio. Eu tive certeza de que se tratava de um engano, de que aquele era o corpo de outra pessoa. Lembrei de um Natal da infância, quando ele apareceu vestido de Papai Noel, me encheu de presentes e, quando me pegou no colo, eu consegui ver o bigode negro e verdadeiro sob a barba postiça. Comecei a rir no velório e meu pai me reprimiu. Eu queria dizer que nós tínhamos sido enganados, que era uma brincadeira do meu avô. Mas todo mundo chorava e, instante a instante, eu reconheci as sobrancelhas, o cabelo e até pude encaixar o bigode ausente entre o nariz e os lábios colados. Senti o pescoço arder e as pálpebras tremerem. Se era mesmo o meu avô, e todos pareciam concordar, aquilo era um desrespeito completo. Fazia trinta e nove anos que o meu avô não tirava o bigode, quem tinha deixado aquilo acontecer? Meu pai quis me abraçar, mas eu corri para fora da capela. Não queria mais olhar para o caixão. Não conseguia aceitar que alguém tivesse raspado o bigode do meu avô, como se as promessas morressem junto com o corpo.

Estava escorado no muro do lado de fora quando vi César chegar. Ele me deu um abraço e disse que sentia muito. Contei sobre o bigode e ele começou a rir, o que me deixava mais nervoso.

– É só um bigode — ele disse, emendando outro assunto. — Depois me devolve o livro.

Eu não fazia a menor ideia do que ele falava, mas ele insistia naquela história, não podia ficar com uma nota zero, os pais o matariam. Os assuntos se misturavam tanto que eu não conseguia sequer formular um pensamento. E, sem perceber que eu não o compreendia, ele disse:

– Você não vai mesmo admitir, né?

Só lembro de ter dado um soco no nariz de César e de ser puxado por alguém que me levou novamente para dentro da capela.

Ficamos quase um mês sem conversar e ninguém admitiu a culpa, nem da briga, nem da redação. No fim, resolvemos esquecer e voltamos à amizade de antes, no ponto neutro de tensão de um elástico que retorna ao estado inicial.

Naqueles dias, visitei minha avó e ela me mostrou um álbum de folhas duras e rosadas, com fotografias da adolescência e juventude do meu avô. Nem sinal de bigode. Entre as fotografias, uma delas mostrava vários garotos enfileirados, como um time de futebol. Quase não o reconheci, mas ele estava lá, ao lado de um companheiro com traços orientais. Perguntei se eu poderia levar a foto comigo e a minha vó aceitou, muito satisfeita. Deixei o retrato alguns dias sobre minha escrivaninha e acabei guardando num álbum velho.

Anos depois, eu saí de casa e os álbuns ficaram por lá. Um mês atrás, voltei para comemorar meus vinte e cinco anos. Queria reunir alguns amigos e a minha mãe pediu para eu selecionar alguns retratos de infância para expor pela sala. Foi quando encontrei a fotografia do meu avô e a levei até o meu pai.

– Mas isso é uma relíquia! — ele disse. — Essa foto estava aqui o tempo todo? Acho que é a única do teu avô com o Rivellino — ele apontou para um garoto qualquer. Era verdade, então, que o vô Bigode conhecia o Rivellino?

Meu pai disse que ele mesmo havia encontrado com o Rivellino algumas vezes quando era menino. Depois, nunca mais. É quase impossível distinguir a verdade entre uma porção de mentiras. Durante muitos anos, achei que a história do Rivellino era inventada e que meu avô só havia encontrado uma forma de justificar o bigode.

Olhei outra vez para a fotografia. No canto esquerdo, estava Rivellino, agora eu sabia. Mas o que me chamou a atenção foi o menino japonês ao lado do meu avô. E eu percebi a verdade que ele sempre tinha escondido entre uma e outra mentira. Eu tinha nas mãos a única prova daquilo que nunca acreditamos. E ali quase pude ver meu avô em um domingo, as pernas pouco hábeis para driblar o marcador e, como o prenúncio de qualquer destino, conseguindo enganá-lo pelo próprio equívoco, vendo a bola ir e voltar, às gargalhadas de todos, como um grande zero em tinta vermelha.

Voltei quase eufórico para o quarto e comecei a revirar minhas antigas tralhas. Estojos, borrachas pela metade, apontadores ainda sujos. Em uma gaveta, encontrei um caderno. Dentro do caderno, uma folha solta: a redação que exibia a nota zero em letra de forma e tinta azul (é curioso como a memória nos engana: vermelho era apenas o círculo ao redor da nota). Era uma redação muito mal escrita e eu lembrei de César na hora. Guardei o papel para mostrar para ele na festa de aniversário no dia seguinte. Quando quis guardar o caderno, no entanto, notei um livro quase intacto, que eu não lembrava de ter lido. O título em dourado era muito chamativo: Frases flexíveis: como falar do que não se sabe. Tinha anotações por todos os cantos. E a letra, sem dúvidas, era de César.

El jugador de la foto

El dedo se detuvo de golpe sobre el rostro desconocido. Golpeteó dos veces encima del vidrio y siguió su recorrido. Segundos después, después de señalar cada una de las caras, repitió el procedimiento.

El cuadro colgaba de la pared de oro en la sede de Ferrocarrilero Fútbol Club. Así habían decidido llamarle los dirigentes más viejos a la pared de la que colgaban las fotos de los equipos campeones. Nada de equipos que jugaban lindo ni oncenas ganadoras de clásicos. La pared de oro solo tenía lugar para aquellos equipos que habían logrado campeonatos locales y nacionales.

Cada una de las fotografías estaba acompañada por los nombres de los jugadores que, más allá de su incidencia en el título, aparecían en ellas. La lógica era sencilla: arriba; de izquierda a derecha, tales futbolistas, abajo; de izquierda a derecha, tales otros. Ferrocarrilero salió campeón del Campeonato Nacional por primera vez en 1948. Esa foto, un poco por la artesanía del momento y otro poco por el desgaste natural del tiempo, tenía menos calidad que las otras imágenes. Ahora, gracias a las cámaras de alta definición, las fotos se verían espléndidas pero lo cierto es que Ferro no disfruta de bonanza deportiva.

La foto del equipo Campeón Nacional de 1948 estaba al inicio de la pared de oro. El dedo que osó la aventura de recorrer la imagen era de Marcos Medina, un joven periodista de la zona; hijo del pueblo como suelen decir los más grandes cuando se refieren a los más chicos.

— Pedro, vení un segundo. Vos seguro sabés, ¿quién es este que está acá?
— Marquitos fijate abajo. Están los nombres de todos los jugadores.
— Sí, vi. Pero esta foto está viejísima y el papel está todo borroneado. No se ve nada.
— A ver, dejame. Ese que está ahí es… sí. Ya me acordé. Ese es el gringo Konoval. Lo trajo el hermano, ellos no eran de acá. Sabía inglés y le pusieron así. Un día vino a una práctica, no sé qué corchos dijo en inglés y le quedó gringo para siempre.
— Pero pará, porque acá hay otro Konoval. ¿El hermano jugaba?
— ¿El hermano? El peor pata dura de la historia del pueblo.
— Bueno, según este papel Konoval es este otro. Fijate bien.
— Y esa nariz es del gringo, sí. La verdad que este otro no sé quién es. Más tarde viene el viejo Ramírez, de repente él sabe. Si querés le pregunto y te cuento.

Claudio María Ramírez era el hincha más rabioso del mundo. Sabía equipos de memoria y era capaz de relatar, como si hubiesen pasado ayer, goles de mucho tiempo atrás. Un verdadero genio de la estadística. Esa tarde, como muchas de su vida, el viejo Ramírez llegó a la sede para conversar y matar el tiempo. Allí, lo esperaba Marcos Medina.

— Marquitos. ¡Qué raro vos por acá! No tienen nada para contar los turros de Racing.
— Tener, tienen.
— Sí, es verdad que son bastantes bocones. Y eso que cada vez que vienen al pueblo se comen de a tres o cuatro tus amigos.
— Ramírez, no me comprometas. Yo soy un profesional, no vivo de esto, pero intento. Vos sabés…
El viejo sonrió apenas con la comisura de sus labios antes de responder.
— A ver, contame que te trae por la gloriosa sede del Ferrocarrilero.
— Viste la foto del plantel del 48.

— ¿Si la vi? ¿Vos con quién te pensás que estás hablando, Marquitos?
— Pará, viejo. Acompañame.

Los dos caminaron hasta el fondo de la sede. A Ramírez le gustaba y mucho ver a los más jóvenes interesados en glorias pasadas. Cuando llegaron al cuadro del equipo campeón Marcos empezó a explicarle el por qué de la cuestión.

— Este que está acá, con cara de malo y agachado, con el número cuatro, ¿quién es?
— Ese es el gringo Konoval. Tanto lío para esto, Marquitos.
— No, viejo. El gringo Konoval es este otro.

Ramírez, más por respeto que inseguridad, se acercó a la foto una vez más.

— A ver pará.

El veterano, ahora sí en un acto de inseguridad, sacó sus lentes.

— Tenés razón, Marquitos. ¿Y vos cómo sabés? ¿Sos algo del gringo?
— No, qué voy a ser. Si lo conocí recién. Me dijeron acá, en la sede.
— Abajo tiene que decir, igual ¿Te fijaste ahí?
— Sí, el papel está bastante borroneado y no se ve nada.
— Yo no quiero ser malo contigo Marquitos, pero si yo no sé, es difícil que alguien sepa. No es que yo sea un genio, pero los campeones se murieron todos. El último que quedaba era el Pato y falleció el año pasado. Después los hinchas, más que enterrados. Te diría que Doña Laura, que en paz descanse, fanática del Ferro, pero también, otra que en el cielo está la vieja.
— A mí me parece que alguien tiene que saber. No puede ser. Y otra cosa, estamos hablando de jugadores campeones, glorias del club, no de cualquier desconocido.
— No, Marquitos, eso es lógico. Vos dame una tarde y pasame tu celular. Dejame ir a casa, ahí tengo millones de diarios, cuadernos y anotaciones.

En su casa Ramirez vio su archivo y expediente una vez más. Sacó algunas cajas con recortes de diarios. Leyó y releyó, una y otra vez. Comparó fotos, ató nombres con rostros. Rememoró anécdotas. Extrañó y mucho su juventud, la vitalidad de aquellos años. Añoró jugadas, gritos de gol y camisetas. Después de un rato tomó su teléfono. Marcó el celular y apenas con una frase contó su estrategia.

— Mañana recorremos el pueblo con la foto.

Marcos, no alcanzó a responder.

Al otro día, cuando Marcos llegó a la sede se encontró con una glamurosa versión del viejo Ramirez. Estaba bien vestido y con una impronta ganadora. Llevaba, cual trofeo, la foto bajo el brazo y un cuaderno con los nombres de los vecinos más fanáticos del club.

— ¿Arrancamos?
— Yo diría.

Las palmas llamaban a la primera casa del recorrido. Después de unos segundos salió la primera familia. Ramírez hacía ademanes con sus manos, señalaba el semblante del jugador agachado, pero a pesar de las indicaciones precisas, la primera familia decía que no con la cabeza.

El pueblo estaba con la misma parsimonia de toda la vida. La calle principal tenía, como hace más de cien años, una grieta en el medio que a esa altura era tan conocida como el pueblo mismo. Cambiaban los perros, se mantenían los ladridos. Eran otras las personas, se conservaban las casas. Cambiaban las flores, envejecían los árboles.

En el segundo hogar no consiguieron el nombre, pero sí un nuevo compañero de ruta. Doña Carlota, conmovida por el pasado, se sumó a la travesía y ahora eran tres quienes recorrían el pueblo con la foto. En la tercera casa alguien más tiró el nombre del gringo Konoval. Marcos, que a esa altura sabía la historia de memoria, señaló el rostro del verdadero gringo. En la décima casa se sumó una familia entera a la búsqueda del nombre. Ocho personas marchaban, casa por casa y con igual e idéntica paciencia, con el cuadro de los campeones.

Disculpen pero no los puedo ayudar. No me gusta el fútbol. Ese no me acuerdo, sí de este otro. Gracias, pero justo ese no sabemos quién es. ¿Los puedo acompañar? Sumesé. Hay lugar para usted y quien quiera venir.

Al cabo de la hora y media, ya con el sol bajando, eran veinte las personas que golpeaban manos, tocaban puertas y sonaban timbres en busca de respuestas. Algunas familias, asustadas por las personas que irrumpían en las puertas de sus casas, optaban por no salir. Otras, vencidas por la curiosidad, decidían hacerlo. Pasaba el tiempo y con él, la avalancha era cada vez más grande. Cada vez más vecinos formaban al unísono, una única presencia.

Después de varias horas de caminata y en el medio de la muchedumbre Ramírez pensó que jamás dirá la verdad sobre aquel número cuatro agachado y con cara de malo que aparecía en la foto de los campeones del 48. Porque Claudio María el Viejo Ramírez, antes que jugador, prefirió ser hincha.

O velho da casaca

Os vizinhos mais peçonhentos dizem que a obsessão começou depois que sua mulher o trocou pelo então presidente do Esporte Clube São Luiz. Conheceu o boa-praça numa semana, largou o velho na seguinte e no outro mês já tinha se mudado para Ijuí. Logo o time que fizera o VEC amargar o rebaixamento à divisão de acesso pela primeira vez na história. Ah, a fina ironia. Contudo, ainda que isso tenha lá seu fundo de verdade — há sempre algo de subconsciente na monomania -, essa não é a versão mais popular entre os fofoqueiros profissionais de Veranópolis, cidade sede deste causo (e também do Pentacolor Gaúcho). A versão oficial conta que o velho ficou mal mesmo quando seu antiquário centenário, que havia passado de mão em mão por várias gerações de acumuladores, foi praticamente engolido por uma iniciativa de jovens endinheirados da capital. Os tais “empreendedores”, orgulhosamente patrocinados por um think tank gringo, não satisfeitos com seus espaços de coworking e chopes artesanais superfaturados, resolveram adentrar o interior do estado em busca de novos horizontes e ar fresco. Ou melhor, dinheiro fresco.

Eram quatro jovens no total. Todos muitos parecidos, até porque não é muito difícil imaginar seus arquétipos. Daqueles que gastam suas fortunas em macchiatos, andam de patinete elétrico, têm um “mindset positivo”, comem brunch e torcem pelo “meu Liverpool”. Provavelmente atendiam por Fê, Lu, Má, Pê ou quaisquer abreviações do gênero. Ao perceberem que a localização do antiquário era estratégica, não tiveram dúvidas: ali ficaria a Vontade Vintage. Adotaram um “approach arrojado” e, contando com o “follow-up” do “staff” da Prefeitura, conseguiram achar uma brecha legal e forçar o velho a passar o ponto.

É possível dizer ainda, por incrível que pareça, que este não foi o pior dia na história do velho. Não, também não foi a derrota por um a zero contra o São Luiz na décima rodada do gauchão de 2019, exatamente cinco anos depois que sua esposa o deixou e calhando ainda de rebaixar seu clube do peito. Tampouco seu pior dia fora o de sua morte, cujas circunstâncias reverberam até hoje pelas ruas de Veranópolis. É de fato impossível que haja algum jogo no Estádio Antônio David Farina sem que os adeptos debatam calorosamente — uns em tom chistoso, outros mais saudosistas — sobre a figura que se convencionou chamar “Velho da Casaca”. O que realmente doeu foi ver o maldito logotipo da Vontade Vintage estampando as mangas do uniforme do Timaço. Aquilo, para ele, foi o fim — mas também o começo.

Posta à mesa a boataria, verdade é que nada disso importa. Voltemos nossa atenção ao velho. Fazia tudo pelo seu novo objetivo. Arrancara os dentes para não gastar com cuidados dentários. Abandonou seu cachorro na esquina mais próxima; a ração era muito cara. Não poderia alimentá-lo com restos, dada a escassez de comida até para si. Não, na verdade não faltava nada. Era o suficiente. “Estava precisando emagrecer” mesmo. Trocou o Corcel 73’ num burrico acabado e mais seis mil reais de diferença. O burrinho era o bastante para viajar pelos brechós e lojas de esportes das redondezas e aguentava umas cento e cinquenta camisas de time no lombo. Infinitamente mais econômico. Pasto era de graça, punha nas contas de Deus. A este, aliás, creditava grande parte do sucesso de sua empreitada. Era Ele quem provia suas necessidades hídricas. Se chovia, ótimo, tomava banho e matava a sede. Se não chovia, paciência. Pela graça divina, a macieira anciã de seu quintal parecia estar sempre carregada. O fruto era doce e custava a estragar. A Deus, por último, agradecia pela piedade das freirinhas dominicais, que semanalmente o visitavam para doar alguns mantimentos. Acreditavam que o velho havia enlouquecido e temiam pelo descanso de sua alma. Aparentemente, a única coisa que o Senhor não fazia de jeito nenhum era tirar o Timaço do Peito daquela draga que se encontrava.

Vendeu — a muito custo e sob grave relutância, é justo dizer -, todos os patuás cristão-ortodoxos raríssimos da antiga União Soviética. Herdados de sua mãe armênia, foram a melhor aquisição da vida de um colecionador espertalhão que passava casualmente pela cidade. Trocou a cama por um kit completo de 1922 do Sport Clube Rio Grande, casa e visitante, incluindo o uniforme de goleiro, flâmula e tudo. “Puta aquisição! Dormir sentado ainda melhora a circulação, pelo que disse a Lourdes”, repetia para si. Com o passar dos anos, decidiu deixar de pagar as contas de luz. Dormia durante grande parte do dia devido à parca saúde, e de acordo com seus cálculos rústicos era mais barato comprar querosene e utilizar a lamparina. Aliás, já nem fazia mais tanta questão assim de realmente admirar sua coleção, passar o tato pelos tecidos envelhecidos e admirar os escudos dos clubes, muitos destes já preteridos por versões mais modernas e vetorizadas, inclusive. O importante era tê-las.

Certa feita, o velho foi à esquina principal da Avenida, bem ao lado do hospital municipal, local onde ficava o antigo antiquário. Onde antes se via uma infinitude de camisas de time belamente preservadas, etiquetadas e meticulosamente organizadas, para além de outras bugingangas e quinquilharias, agora reinava a presunção. Não havia nada antigo ali. Tudo era réplica, nova e brilhante. “Que empáfia!’, pensava o velho, ao adentrar os portões da arrogância. Sujo, tísico e banguela, tomara a visita como sua redenção final. Seu orgulho era cristalino. O semblante era o de um partizan russo prestes a executar um nazi. Naquele momento, sentia-se Taffarel contra Baggio em 94. Era o seu momento. A derrota não era uma possibilidade. Estufou o peito, olhou nos olhos do barbudinho e lançou: “- Eu tenho todas as casacas do mundo. Sua loja de merda não chega nem perto da minha coleção. Moda retrô é meu ovo esquerdo.”. “- Ah, é?”, respondeu o jovem atendente, achando aquilo tudo um barato. “Aposto que você não tem nenhuma camisa dos times da Red Bull.”.

E em um instante, tudo ruiu. O velho conhecia cada item de sua coleção. Sabia de cor e salteado todos os respectivos anos de fabricação, detalhes históricos sobre o contexto dos uniformes e até a ampla maioria dos fabricantes. Não possuía nenhuma camisa da Red Bull. Morreu ali mesmo. De desgosto, pelo que dizem.

Resultado final do Quadrangular 1

--

--