Torneio de Contos de Futebol — Mario Benedetti: Quadrangular 2 [encerrado]

Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo

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Resultado: Com 33,3% dos votos, o Deportivo Recoleta (El Potro del Faro) vence o Quadrangular 2 e é o segundo finalista do Torneio de Contos! O Chavelines (Gol Azul), no segundo lugar com 32,2%, também entra no grupo dos quatro premiados ao fim da competição. Resultado completo no final deste post. Reforçamos para que autores e autoras não identifiquem grupo nem texto até o final do campeonato, seja em casa de classificação ou eliminação. A final está prevista para 8 de junho.

Segundo e último quadrangular semifinal em campo: La Equidad, Chavelines, Royal Pari e Deportivo Recoleta disputam uma vaga na grande decisão do Torneio de Contos Mario Benedetti. Quem passar pega Los Caimanes na finalíssima. O segundo colocado entra no bolo dos quatro premiados ao fim da Copa.

A votação do Quadrangular 2 fica aberta até sexta, 5 de junho, às 23h59. Leia os quatro textos e vote no campeão em enquete ao fim desta página (você precisará logar numa conta Google — também somos vítimas das grandes corporações). Somente o primeiro colocado da chave avança para a final. Listo?

Os quadrangulares vão a campo nesta semana, terça (02/06) e quinta (04/06). Aqui você vê o lançamento da fase final, e aqui o regulamento e tabela completa aqui. Bom jogo!

ATENÇÃO: Reforçamos aos autores e autoras que não identifiquem (muito menos republiquem) seus textos nem seus grupos até o final da Copa.

Nota: nenhum conto sofreu qualquer tipo de edição por parte da equipe do Puntero Izquierdo.

Feitiço do Fanatismo

A morte despertou a vida que não pulsara em Hernán González. A estadia de quatro meses no presídio marcou o jovem que apenas tentava sustentar a mãe enferma. Não se recuperou e nem aprendeu no cárcere. O sistema punitivista oferece apenas ódio. A saída dos muros o presenteou com uma ficha manchada e uma mãe morta. O corpo aguardava, há duas ou três semanas, no banheiro ainda mais sujo do que lembrava. O cheiro de carne podre não incomoda vizinhança sem saneamento. Dona Herculana haveria de prolongar a passagem entre os vivos besuntada sobre a poça de sangue e seus excrementos póstumos. O herdeiro foi o único a prover uma boa morada. O enterro de uma mãe assistido apenas pelo filho.

Fonte da antiga subsistência e motivo da prisão, o contrabando de cigarros não mais seduzia Hernán. A negação parte da dor nas têmporas que culpa a nicotina pela maldita lembrança da putrefação do cadáver ensanguentado na entrada do chuveiro. Não bastasse a memória, o chão de cimento se tornou sagrado e profano, com a marca do contorno do corpo da mãe que ainda brilhava em tom rubro com a ausência de luz no cômodo.

A marca de ex-detento apartava qualquer chance de emprego. Hernán González passou o primeiro mês a misturar leite com água para não secar o estômago. A oportunidade partiu da única testemunha de sua desgraça. O senhor que passava os dias sentado em frente ao cemitério, com a cuia de mate cheia, necessitava de um ajudante nas funções funerárias. Único candidato com interesse pela vaga, o filho de Herculana seria escolhido entre todos, pois ainda exalava odor de necrose — característica ideal para a função.

Destino inevitável dos seres vivos, a morte se tornou ofício e materializou-se em sentimento. A abertura de covas e o tamponar dos orifícios dos inanimados, seis dias por semana, oito horas por dia, rendiam setecentos pesos por mês. Contas atrasadas começaram a ser pagas. O alimento, em pequenas porções, rareava por geladeira e armários. A fome saciada e o dinheiro não compensavam a solidão. O último capítulo da vida da mãe era desencovado todos os dias, na mesma proporção que recebia caixões carregados por familiares de falecidos. Sentia vontade de morrer por não ter oferecido uma cerimônia digna. A mesma solidão que subtraía o gosto pela vida impossibilitava o suicídio: preferia o horror de se arrastar morto a não ter quem carregasse o seu caixão.

Acostumou-se com as lágrimas alheias. A indiferença ecoava dentro de um ser que não sentia compaixão pelo sofrimento dos outros. O rumo de suas afetações mudou diante do óbito de Pablo “Hechicera” Asturias. Aos cinquenta anos, o ex-jogador e maior ídolo da história recente do Apóstoles faleceu de infarto. Apesar de não acumular grandes conquistas com a camisa nacional, Hechi jogou os dezesseis anos da carreira no único time local de San Emílio. Capitão e principal personagem do esquadrão desde a juventude, o meio-campista ditou a moda da barbicha entre os homens. O número 14 da sua camisa se tornou a tatuagem oficial do vilarejo. Com a bola nos pés, enfeitiçava marcadores com a magia de seus passes e dribles. O vigor físico não autorizava que perdesse disputas — aéreas ou pelo chão. A adrenalina, presente em seu corpo mesmo após a aposentadoria, consentiu com a interceptação do sangue que chegaria até seus átrios.

O acontecimento repercutiu como grande tragédia para a pequena cidade. Hernán González teve a anunciação antes mesmo de saber da mais nova notícia. O silêncio da companhia diária dos mortos foi interrompido por cânticos firmes e amargurados. A multidão de apostolences levou o azul e rubro para ocupar a grisalha necrópole. Os túmulos tremiam e os anfitriões se preparavam para receber o mais querido hóspede. Antes mesmo do sepultamento, metade da cidade lastimava no cemitério, enquanto a outra metade acompanhava o corpo em peregrinação pelas ruas do município.

O ajudante de coveiro começara a ter contato com algum sentimento, mesmo que ainda não identificado, pela primeira vez desde a morte de sua mãe. Admirava as crianças a escalar árvores para girar o manto rubro-celeste. Como controlado por um ventríloquo, Hernán passou a entoar gritos de ordem e juras de paixão desconhecidas. Nenhum apostolence imaginaria que o agente funerário havia sido aliciado nas últimas horas pelo único amor que dominava a cidade. Enquanto aguardava o corpo para realizar o sepultamento, bebeu e chorou abraçado com desconhecidos.

No início da quadra do cemitério, o congestionamento de pessoas nas ruas trancou o caminhão que levava o caixão. A população, por instinto, tirou Hechicera do automóvel e o transportou até a lápide, de forma que o ídolo passasse pela mão de cada um de seus fieis. A última jogada do astro do futebol local foi ser carregado pela multidão, como um artista. Depois de passar, durante duas horas, por milhares de mãos da plateia, o ataúde chegou até Hernán. O recém-doutrinado chorou lacrimou sangue ao perceber a importância do momento.

Até a última pá de terra, o evento foi interrompido algumas vezes: oito pessoas tentaram se atirar no buraco, a fim de passar a eternidade no colo de Hechicera. Após lacrar o sepulcro, a celebração continuou por duas semanas. A festança imunizou a população de qualquer chaga ou acidente que poderia afetar San Emílio. Ninguém morreu na cidade enquanto proferiam as sagradas músicas apostolences.

Dois anos após a morte do ídolo, moradores visitavam, todas as manhãs, a lápide para pegar as bênçãos. O fim do turno de Hernán González era o único período sem movimento no trabalho. Assim como os mais antigos devotos, adquiriu o hábito de conversar com o mausoléu. Tinha intimidade e privacidade com o amigo mais desejado do povoado. No início do dia, torcedores depositavam desejos e pedidos; durante o fim da tarde, Hernán agradecia por ter retomado o rumo da existência. Prometeu recompensar Hechicera, com a certeza que a oferenda seria aceita.

Decidiu conhecer, ainda melhor, o grande astro. As arquibancadas teriam muito a dizer sobre o falecido. Hernán não teria coragem de cantar e comemorar sozinho. Então, esquematizou o plano. Comprou os ingressos, por apenas dez pesos, para o embate entre Apóstoles e Taquerín. Não tirou o compromisso da cabeça até o fim da tarde. Após a liberação e saída do chefe, permaneceu por mais meia hora nas instalações do cemitério. Finalizou os trabalhos. Trocou de roupa. Pegou o transporte até o palco do evento. A libertação completa se deu na entrada do Estádio José Miguel Carrera. O fanatismo se tornaria a mais vitoriosa superstição.

Quarta-feira e domingo se tornaram os principais dias para Hernán. O trabalho de coveiro e a rotina dos jogos permaneceram até o fim de seus dias. A armadura das batalhas foi a camisa 14 falsificada que algum fã entregara aos pés da lápide de Hechicera, e a mesma velha mochila preta que levava do trabalho até o estádio. Durante as fervorosas partidas, refletia sobre a atmosfera bélica e fantástica envolvida no clima patagônico que o rodeava, enquanto seus dedos eram tatuados pela grade. Sacudia ao lado de outros das mesmas cores como se fosse peneirado pelo balançar do alambrado. A rede retinha apenas o corpo ensandecido a buscar a liberdade. A maleabilidade da alma permitia que a paixão fosse escoada até o limite das linhas de cal — e ali ficasse, ajoelhada, em forma de súplica.

Precisava de apenas dois pares distintos de patas para se fixar aos fios de seda, tecidos para aqueles que encontram o sentido dos dias na barra brava. A solitária vida não existia entre desconhecidos tratados como irmãos. Beijos e abraços consentidos, programados em roteiro sem direção de cena. Os atores se manifestavam de maneira espontânea e cumpriam papéis orientados apenas pela emoção. O improviso sempre foi a principal arma nos arredores, dentro e fora de campo. As veias arfavam no ritmo dos cânticos.

O modesto Apóstoles vibrou nos seis melhores anos de sua centenária história. Desde o início do interesse pelo futebol, Hernán viveu apenas glórias. O invencível torcedor teria um aproveitamento que superaria qualquer possibilidade lógica. Apostolences não imaginavam que o maior amuleto da instituição seria a parceria entre um torcedor e a sua mochila preta, sempre pregada às costas. O progresso trazido pelo dinheiro das incontáveis premiações foi o motivo da derrocada.

Jogadores revelados pelo clube passaram a ser vendidos ao Velho Continente. A velocidade do nascimento das promessas se tornou menor que a ganância dos dirigentes. A modernização do Estádio José Miguel Carrera foi programada de maneira veloz. Hernán e seus desconhecidos companheiros não puderam mais torcer pendurados no alambrado. O som grave dos tambores e os bandeirões que tocavam as estrelas foram proibidos. Os setores da torcida foram divididos entre chão, para os que pulam, e cadeiras, para os que não sabem torcer.

Reprimidos e sem valor, perto do dinheiro estrangeiro que abastecia os bolsos gordos dos cartolas, os devotos do Apóstoles foram esquecidos. A invencibilidade não é o motivo do amor de quem estava ao seu lado nos piores momentos. A macondização do clube foi concluída quando o passaporte para os jogos passou a custar 100 pesos no setor mais barato. Mesmo assim, Hernán González deixava de comer para não abandonar o time. Estava presente em todos os jogos, com a mesma mochila preta, assim como havia prometido.

A vitória que ficara marcada como a última da história centenária do Club Atletic Apóstoles foi em um 4 de março. Nem a goleada de 4 a 0 agradou Hernán, o torcedor mais incomodado pela exigência de permanecer sentado e calado, como em uma exibição de cinema mudo. No fim do jogo, puxou os gritos que antes eram a identidade do clube. A polícia agiu de forma rápida. Reprimiu, com espuma na boca, milhares de torcedores. Os tiros de arma de fogo ensurdeceram e emudeceram simpatizantes das baterias de percussão. O gás lacrimogênio agiu como prenúncio do enxofre que habitaria para sempre a Preston Arena Inc — antigo Estádio José Miguel Carrera.

Acompanhada da música pop estrangeira que tocava no sistema de som do estádio, a carnificina deixou 1.300 mortos — segundo os noticiários. O número de torcedores que não voltaram para casa após o ocorrido é incontável e desconhecido. Uma das vítimas vestia um uniforme falsificado banhado a sangue, com o número 14 cravado na parte traseira. Em sua desgastada mochila preta, carregava um crânio humano. Para não expor mais problemas, a corporação decidiu enterrar a ingrata surpresa junto com o insubordinado que iniciou a agitação. Enquanto a curva de ascensão dos últimos seis anos do clube de San Emílio despencava até a falência, a eternidade presenteou Hernán González com a companhia dos restos mortais de seu maior ídolo, Pablo “Hechicera” Asturias.

Gol azul

Eu penso em diagonal

O passe que corta a zaga

Corta pro close

Da torcida embriagada

- cântico de alguma torcida em algum banheiro

“O inventor da bola merecia ganhar o Prêmio Nobel dos Brinquedos”. Essa frase eu ouvi do meu pai quando eu ainda achava que ia ser jogador de futebol. Eu era criança e achei a frase a coisa mais linda do mundo. Talvez minha vocação tenha morrido ali: futebol era coisa séria. Uma profissão. Não uma brincadeira. Mas a gente dá o primeiro chute do dia e é como se tudo começasse de novo.

Tudo bem.

Pego a bola da mão dele, jogo pro ar, deixo quicar e chuto com o peito do pé entre as duas únicas palmeiras do deserto. Golaço. Golaço cê tá maluco. Meu pai dizia que quaisquer duas árvrinha são mais sagradas que duas traves de verdade. Dois guarda-sóis. Um portão com guia rebaixada na frente. Um par de chinelos também, meu pai dizia. Mas um par de chinelos um pouco menos, eu falava pra ele. A altura do portão, do guarda-sol e da árvore meio que emprestam uma solenidade selvagem pra bola que invade a inestufável rede imaginária e vai parar longe. Talvez no vizinho — o que por si só quer dizer que não foi gol, porque se fosse gol a bola batia no muro que separa as duas casas.

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A pupila do olho azul-piscina do gato se contrai. Um raio de sol atravessa o furo na cortina, ilumina uma coluna de poeira num feixe dourado e penetra na pupila do gato. Passa um segundo sem que nada no universo aconteça. A não ser por uma nuvem que passa. A pupila do olho azul do gato se dilata. Nada mais inofensivo que uma nuvem que passa. Um bocejo antigo. Se contrai de novo. Nasceu o dia.

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Ando coisa de 10 metros pela estradinha de terra cor de argila e paro em frente ao gol do vizinho. Estou aqui pra bater palma, gritar, toda aquela humilhação despreocupada que só quem quer muito uma coisa está disposto a passar. O gol do vizinho é feito de madeira azul. Foi aí que eu lembrei de outra frase. Distante como um vizinho. Essa frase assolava minha mente na época. Distante como um vizinho. Merecia o Nobel das frases essa frase. Mas essa frase do Nobel não era do meu pai, era de um rapper da Serra da Mantiqueira, o Neto. Nada é mais distante que um vizinho. Se a sua bola tá no terreno dele então, nem se fale.

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Nano-ouros suspensos no sol.

- “Malditas partículas mágicas”, sente o gato intrigado. “Visíveis somente sob a luz solar”.

O feixe de poeira dourada entretém o gato, que se fascina com as coisas mais temporárias e se assusta com as mais vexatórias. E quem pode dizer o contrário de si mesmo?

Eu não.

Eu estou vendo a bola entre as frestas, nos espaços entre uma estaca de madeira azul e outra. Bola, azul, bola, azul. A bola tá perto. Mas o azul tá mais. A bola tá bem na quina entre o gol azul e a quina cinza do chão de concreto do quintal do vizinho.

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A luz de manhã é diferente da luz do fim de tarde? Quão diferente um pôr do sol é do nascer do sol? É impossível responder essa pergunta porque o que o gato sente de manhã é sempre diferente do que ele sente no fim de tarde. Mais que diferente: é sempre o oposto. Mas ele sente que aquela luz que contrai sua pupila é a luz da manhã. Ele sempre sente. Um barulho. Vem do lado de fora da casa vazia. O gato imediatamente levanta a cabeça, as orelhas giram, o corpo se ergue com a mesma elegância dos mágicos de rua. Os olhos de piscina procurando o foco através da janela.

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Afasto as duas mãos pra bater a palma inaugural que anunciará minha chegada. Mas meus braços abertos congelam no ar de janeiro. Uma enorme sombra se projeta no quintal do vizinho. A sombra se move lentamente até que um focinho se revela. Meus braços ainda abertos, a palma em pause eterno. Meu queixo caído. Minha boca aberta como um gol, minhas bochechas entregues como um par de traves que vê o atacante driblar o goleiro. Tem um tigre olhando no meu olho.

O tigre se esgueira em slow motion, mais rápido que uma bala de canhão. Entre eu e ele, madeiras azuis, minha bola e uma parte cada vez menor do quintal ensolarado. O tigre e sua sombra se aproximam. Um filme com a minha a vida começa a passar diante dos meus olhos.

Naquele mesmo fim de tarde que meu pai falou do Nobel dos Brinquedos, ele me falou outra coisa. Ele disse que tinha uma teoria sobre o que, afinal, era a vida.

- E se o que eu e você chamamos de vida é, na verdade, apenas o filme da nossa vida passando diante dos nossos olhos em nossos últimos instantes de vida?
- Como é?
- “É isso. Na verdade nosso corpo está em outro lugar, prestes a morrer. Nesse lugar, nossa vida está passando diante dos nossos olhos. O que chamamos de vida é esse filme. O que chamamos de vida é essa retrospectiva audiovisual que protagonizamos como se fosse nossa vida. Mas tudo isso já aconteceu. A gente acha que não, que tudo está pra acontecer. Que a realidade se desvela pouco a pouco, que tudo — destino ou não — é um mistério. É um mistério pra nós, protagonistas do filme. Mas, pra plateia, é apenas uma retrospectiva. O problema — ou a graça — é que a plateia também somos nós. A vida é a versão estendida daquele vídeo de melhores momentos que assistimos antes de morrer. Os Momentos de Tédio — não qualquer tédio, mas o Tipo de Tédio Que Te Assola A Alma™ — não são cortados. Pelo contrário: são prolongados. Filho, e se a vida for isso, filho? Um passado embrulhado pra presente”.

O tigre repousa uma de suas patas dianteiras em cima da bola. A pata dele é maior que a bola.

- “Por que você gosta de futebol?”, eu pergunto.
- “Porque o futebol te obriga a jogar com a mesma parte do corpo que te mantém em pé”. A parte do corpo que te deixa em pé é a mesma parte do corpo que tem que proteger a bola, que tem que conduzir a bola. O basquete é estética pura, mas é porque aqueles americanos estão protegendo e conduzindo a bola com a mão. No futebol, a única parte do corpo que toca o solo, a única parte do corpo que faz com que sejamos, de fato, terrestres, é a parte do corpo responsável por proteger a bola, por conduzir a bola. Por ludibriar. Ou melhor, por induzir o zagueiro. Tudo isso enquanto universos e pupilas se dilatam”.
- “Ludibriar”.
- “Todo drible é uma indução. O atacante precisa induzir o zagueiro a reagir como o atacante deseja. E o zagueiro precisa achar que a ideia é dele. Em suma: o atacante se antecipa — claro, a bola está no pé dele — mas quem tem que ter a sensação de estar antecipando é o zagueiro. Essa é a história de todo drible. De todo rolinho, principalmente. Adoro rolinhos. E não tem um rolinho que eu goste mais que o do Denílson no Arce. O Denílson está na marca do escanteio, de costas pro zagueiro. Denílson está pressionado. Sem alternativas. Quem marca ele não é nem Arce, é outro zagueiro. Arce vem de longe e vem com uma ideia genial: não estou no campo de visão de Denílson, vou dar é um bico na bola. Ele não contava com a olhadinha pra trás do Denílson, que mexeu a cabeça só o suficiente pra ver Arce e sua ideia chegando. Um rolinho de costas, rolando a bola pra trás. Um rolinho etimologicamente preciso, um rolinho rolado. O melhor lateral direito que eu vi jogar, chutando uma bola que não existe.

A finalização cara a cara com o goleiro: quase sempre, o melhor a se fazer é chutar reto, em direção ao goleiro. Goleiros são como labradores correndo atrás de uma bola em um gramado. Eles passam a maior parte do jogo sem encostar na bola. E a palavra bola merece ser lida com a maior reverência possível. Dentro de um campo de futebol, nada é mais sagrado que a bola. Qualquer analogia divina é insuficiente. Em uma época em que não existem mais ícones únicos, não existem mais clássicos, mais hits, nesses tempos líquidos em que a capa do cd não existe, em que nada mais é sagrado de verdade, a bola permanece sólida como uma estátua no altar. Então quando a bola vem, o goleiro quer brincar. Quer participar do jogo. Quer encostar na bola.

Quer pular.

Ele não vai esperar o seu grande momento pra ficar plantado. Ou só pra cair de bunda no chão. Sem a estética. Sem o salto. Sua tia veio assistir o jogo. Ele tem que ficar por um tempo sem nenhum contato com o chão. Sem ser terrestre, por um segundo que seja. Por isso quase sempre a melhor coisa é chutar reto, em direção aonde o goleiro estava antes de ficar cego de amor pela bola.

A finalização de longe é assim: não pense no goleiro. Você sabe onde ele está. O goleiro está atrás do zagueiro. Sempre. Ou pelo menos em toda situação em que se pode ou deve almejar a finalização de longe. Assim como o comportamento do goleiro é previsível, o do zagueiro também é. Dentro de todo zagueiro tem um chip que programa o seu corpo a cumprir, no fundo no fundo, uma só função: proteger o gol. Tal qual toda tarefa cotidiana de um segurança de banco tem o cofre como pano de fundo, todo movimento do corpo do zagueiro, no fundo no fundo, tem a segurança do gol como motivação. O zagueiro é um microcosmos do gol. Um robô programado pra proteger o gol. O zagueiro é um soldado que se alistou na guerra voluntariamente. Sua pátria é o gol.

Desse modo, o melhor a se fazer é usar a convicção desse soldado como referência. A limitação como recurso. Concentre seu foco em tirar a bola da perna do zagueiro. Pela esquerda, pelo meio, pela direita, tanto faz. Esse conceito traz algumas vantagens. Suas chances da bola chegar até o gol aumentam muito. Pelo menos do primeiro zagueiro — que em muitos casos é o único — a bola passou. Segundo: é muito menos trabalhoso balizar sua finalização pela canela do zagueiro do que pelo goleiro. Poucos centímetros X muitos metros. Do zagueiro só é preciso tirar um pouco. Se não, você chuta muito pra fora. A finalização de longe deve ser entendida como uma tentativa psicodélica de fazer gol: as canelas do zagueiro são as traves. Seu objetivo é fazer a bola passar pelo lado de fora das traves. Só que se você chutar dentro delas também vale. Chutar dentro muitas vezes é até melhor: um raio-x que atravessa o zagueiro sem maiores explicações. Como o sol que atravessa o furo na cortina. O goleiro sempre menospreza essa possibilidade, até porque ela é pouco provável. A não ser que você trabalhe pra que ela aconteça mais vezes”.

E o gato volta pra casa com a mesma solenidade selvagem dos paraquedistas em solo.

Time de Índio?

Foi o Índio que me apresentou a minha primeira dose de buchudinha pura, “sem frescura” como disse na hora. Em Belém fazia o calor de sempre e ele simplesmente me passou a garrafa com um último dedo de cana, enquanto eu, meu tio e mais a torcida do Paysandu, todos putíssimos, principalmente com Dadinho, o primeiro quase-gol, descíamos a rampa do Mangueirão depois de mais uma derrota no Re-Pa. Ninguém sabia que seriam os últimos meses de vacas magras; tricampeonato do Remo, mais um ano de fila no parazão e, ainda assim, o melhor guardado para o fim do ano. Índio, ou Indião, foi como nos acostumamos a chamar o Cara-do-Índio-da-Tampa-da-Lata-do-Biscoito-Aimoré, abaetetubense de idade indefinida e apelido auto explicativo, pratista na charanga da terror bicolor.

Quando éramos apenas colegas de arquibancada, lá pelos meus onze anos, achava curioso quase todo mundo chamá-lo pelo “nome” completo, e o tio também, já com umas cerpas na cabeça, ficava admirado. “Égua, moleque, até o caboco terminar de chamar ele a Terror já cantou umas duas músicas” comentava, cuspindo gotículas de saliva etílica. Nos conhecemos ali, no concreto sagrado do Alacid Nunes, bem antes da reforma que o transformou em uma arena olímpica e que o rebatizou por outro nome que ninguém liga. Graças a Deus, ou não, o tio sempre fazia questão de ficar do lado da banda, mas não necessariamente junto com a organizada. Com o tempo, Índio até deixou eu tocar pratos. Eu me divertia, a maioria achava uma merda, mas ele falava sempre pro tio que “o moleque leva jeito”.

Apesar da mística do Mangueirão, sempre gostei mais quando os jogos eram na Curuzu. Claro que não pela (falta de) estrutura, e sim porque o clima era cem por cento Papão. Além da proximidade com o gramado, o churrasquinho era um pouco mais barato e tinha o Urubu Molhado, vendedor de bebidas com um isopor gigante, que sempre tinha uma mentira nova para contar, mais cabulosa do que a última, e ai de quem interrompesse ou mesmo mostrasse um resquício de olhar desconfiado. Como se essa farra não fosse o suficiente, ainda iam mais mulheres “per capita” do que em jogos grandes. Para um adolescente dos anos 90, o clichê futebol-mulher-cerveja representava tudo de melhor que a vida podia oferecer, e não tinha como se sentir mais vivo do que em um domingo de jogo na Curuzu.

Quase todas as minhas alegrias e angústias de ser bicolor tiveram sempre o tio e o Índio presentes. E ponha angústia nisso: apesar da série B em 91, vivemos para ver o penta paraense do Remo, essa “imundície” como diria minha mãe e minha finada vó. Em 98, quando finalmente quebramos a sequência, eu já estava no segundo ano de faculdade, vinha ganhando um troco a mais no estágio e dando aulas particulares, então a comemoração foi a altura. Meu tio, advogado, tinha audiência na segunda de manhã, em outra cidade, e não enxugou mais que do que cinco ou seis latinhas, mas eu e o Índio fomos ao Cavalo de Fogo, melhor casa de tolerância no bairro da Cremação. Já estava chamando urubu de meu louro quando eu disse para ele “escolher a mais gostosa, que eu acerto a conta”. Disse isso claramente me referindo a preta espetacular que tentava disfarçar o tédio no balcão, mas o sacana escolheu uma branquela que tinha o rosto de uma pintura renascentista qualquer, e que deu um sorriso amarelo enquanto tentava adivinhar adivinhar a idade do coroa. “Entre 60 e 110” deve ter sido o melhor palpite. Como eu só tinha dinheiro para aquela, esperei meu amigo tomando mais algumas enquanto me deliciava não só com a vista, mas com a fresca memória do três a um no Re-Pa. Mas, espera! Em quase dez anos de arquibancada, por que eu nunca vi o Indião usando uma camisa do papão, mesmo fazendo parte da charanga? Coisa de bêbado, deixa pra lá. Pouco menos de uma hora depois o velho sai pelo mesmo corredor que entrou, todo todo.

- Égua, filho, é muito pai d’égua ver toda aquela pentelheira preta numa pele bem branca. — Nas duas últimas palavras pronunciou o “b” como “p”.
- Mas Índio, tu não viste aquela gostosa no balcão? Ainda tá lá fingindo que bebe. Ninguém aqui compete com ela, velho. E aquela outra mulata também?
- É que eu to meio fodido da vista, filho, então prefiro uma pele mais pranca. — Explicou.

Meses depois compramos um óculos para o Índio, que agradeceu nos convidando para passar o Círio em sua casa. Sabíamos que uma vida inteira como vendedor de farinha no Ver-o-Peso não poderia proporcionar luxo nem pompa, mas foi reconfortante ver a dignidade com a qual o pequeno barraco de madeira estava arrumado. Morava sozinho e organização da casinha estava impecável. “Esse cara é um vencedor”, pensei. Esperamos o tucupi ferver sentados no sofá improvisado com um colchão velho e notei que no canto perto do rádio havia um amontoado de revistas Placar, a maioria dos anos 80 até o meados dos anos 90. Tinha também algumas Playboys perdidas, e foi garimpando informações de Placar velha com o noticiário da época que ligamos os pontos para quarta a noite.

O papão ia jogar contra o Londrina pela terceira fase da série B, na Curuzu. Comandados por Zeca Xavier, os paranaenses vinham de três empates, tendo chegado até ali aos trancos e barrancos. A torcida pedia a cabeça do treinador desde a primeira fase mas, bancado pela diretoria e por ter amizade com o presidente, Roni Calisto, Xavier respirava por aparelhos. Depois do último empate, porém, a coisa começou a desandar: o técnico vinha passando por “problemas pessoais” — um divórcio, descobrimos — e Roni já não o defendia publicamente. Era tudo que precisávamos para infernizar o banco dos visitantes na bombonera paraense. Quarta, às nove, eu, o tio, Índio e muitos outros parceiros da fiel bicolor estavam atrás do banco do Londrina, com aquela proximidade que só a Curuzu permite, em um uníssono “Ze-ca Xa-vi-eeer, até o Roni tá comendo a tua mulher!”, entre outras canções de amor. Ele ficou puto e foi expulso no começo do segundo tempo, depois de jogar uma garrafinha d’água em nossa direção e fazer “gestos obscenos”. Eu achava que “passar mal de rir” era só uma hipérbole até ver o Cara-de-Navio, conhecido de arquibancada, tendo que sentar, buscando algum ar entre tosse e lágrimas. Paysandu dois a zero, liderança temporária do grupo, e o nervosinho (ex) amigo do presidente caiu.

O novo século trouxe os melhores anos da história bicolor, mas também revelava cada vez mais os efeitos da idade sobre a saúde do nosso amigo. Sem nunca ter contribuído para a previdência, trabalharia até morrer ou morreria de tanto trabalhar, e o cansaço acumulado já não permitia que estivesse presente em tantos jogos quanto antes. Há quase dois anos tinha parado com os pratos, quando ia ao Mangueirão ou Curuzu não aguentava mais tantas latinhas e passou a torcer de forma contida. Minha admiração pelo velho só aumentava: não é todo idoso que que consegue acordar às três da manhã, seis dias por semana, para carregar sacos de farinha. Dizia que “o segredo para dormir bem por poucas horas é um copo de leite morno, banana amassada com aveia quaker — tem que ser quaker — e punheta. Eu duvido qualquer caboco ficar acordado depois disso, filho.” Ainda bem que não mexi naquelas playboys nas vezes que fui lá.

No ano do bi brasileiro, se tinha alguma coisa que dava mais medo do que jogar contra o papão era um tal de Aedes aegypti, e a dengue não perdoou nem o Índio: foi hemorrágica. O tio pagou todo o tratamento no hospital Guardalupe, mas a idade por si só já incluía nosso velho amigo em um grupo de altíssimo risco, condenado. Foram algumas noites ruins, e outras horríveis; o que me confortava, nas últimas horas, além do fato de eu ser o único presente, era a resignação do sacana. Quando ele estava consciente buscava demonstrar a paz de sempre, mesmo com toda preocupação estampada na minha cara:

- Índio, não vou perguntar como tu estás porque eu tô aqui, mas tem alguma coisa faltando ou tem alguma coisa te incomodando?
- Exceto pela tua presença, tá tudo certo.
- Finalmente tu estás descansando, hein, velho. — Sem força para gargalhar, ele sorria com os olhos. Aproveitou a descontração para um último desabafo.
- Filho, sou remista.
- O que? Índio, o que?
- Eu sou remista.
- Isso não é possível, não pode ser verdade, Índio. Ou tu estás chapado de remédio ou explicas essa porra aqui e agora. — Ele continuava rindo com os olhos, mas minhas mãos tremiam.
- Sempre fui Remo. Em 47 já eram sete anos de fila e o Remo foi pra final com o Paysandu. Égua, filho, eu tinha certeza que ia acabar o jejum e deu Paysandu. Fui direto em uma Mãe de Santo que me falou que eu ia ser pé frio pelo resto da vida. Me disse que nem ela nem ninguém conseguia desamarrar. Continuei indo no Baenão e nada, o jejum só aumentava. Em 49 parei de ir e o Remo saiu da fila depois de nove anos. Aceitei a sentença como se fosse um dom, então passei a frequentar a Curuzu, entrei na banda da terror e continuei só tareando. Mas fui ficando velho e meus poderes foram acabando, lá por 80 e pouco. Foi quando eu conheci tu e teu tio. Prova de que meus poderes acabaram foi 91. Eu ia parar de ir pro campo, mas a companhia tava muito pai d’égua, animal. Talvez eu tenha virado um pouco bicolor, mas sou mais remista. Agora que eu tô levando o farelo eu te devia essa explicação.

Lembro de me perguntar um milhão de coisas ao mesmo tempo, mas a principal era como é que ele lembrava todas essas datas quinze minutos antes de “levar o farelo”? Suspirou e fechou os olhos; não foi na hora mas ele estava pronto. Entre um rebuliço de sentimentos, levantei e chamei a enfermeira. Não consegui falar nada além de “morreu”. Sai dali rememorando todos os nossos momentos e, maldito Aedes, por poucas semanas o Índio não viu o bi, por dois anos não viu o bicola na libertadores! Acho que ouvi num samba, que da vida ninguém sai vivo, e para o Índio com certeza foram uns 230 anos bem vividos, ou pelo menos os últimos quinze.

Chego em casa, abro uma buchudinha in memoriam, ligo a televisão e a desgraçada passa Remo e Fortaleza! Leão contra leão! A imundície nem tinha todos os jogos transmitidos e mesmo assim a assombração me pegou na hora! Meu pai, que nem era muito de bola, dizia que “jogo bom tem que ter muito gol ou muita porrada” e em circunstâncias normais eu torceria pelo segundo. Em respeito ao finado, tentei pelo menos assistir sem me irritar nem torcer para que cada um tivesse cinco expulsos. Haja cana! Passamos mais tempo vendo jogos e falando do papão do que fazendo qualquer outra coisa, mas e o cara me desarma falando que e remista logo antes de morrer? Que Deus o tenha… filho da puta!

El Potro del Faro

Os dias em Cabo Polônio passam de um jeito diferente. Não mais devagar: apenas diferente. Mesmo hoje, quando os turistas chegam com seus barulhos, seus vícios e suas virtudes, ainda se nota a paz que sempre rondou aquela ponta de terra.

Só há uma certeza em Polônio. Os 24 segundos que a luz do farol leva para fazer uma volta. A noite, estrelada em céu aberto, é uma tela em negativo, riscada por um pincel claro. O farol ainda desempenha um papel importante no vaivém dos navios que rondam aquele canto esquecido. Faz tempo, há gente que cuida dele, para que não se apague e para que mantenha as embarcações a uma distância segura. O seu papel é bonito: mostra que é preciso estar perto dele para compreender que é preciso estar longe.

A certeza do cabo passa pela certeza de que haverá quem o cuide. Quem são os faroleiros? Por que alguém romperia a lógica média de ter uma vida normal? Talvez se imagine que seja solidão. Mas tem algo mais. O mar chama algumas pessoas sem motivo. O rugido das ondas, o estalar da água nas pedras. Algo chama. E foi esse chamado que inundou a mente de Gonzalo, o velho faroleiro.

Ele sempre foi quieto. Atlético, poderia ter sido um ator, não fosse a timidez. Desde cedo, fez o que todo guri de Montevidéu faz: jogou bola. Na adolescência, se destacou como um meio campo nato, daqueles que regiam uma orquestra. No futebol platino, era muito mais um domador tocando uma tropilha de potros do que um maestro. Nascera em 1942 e lembrava vagamente da festa do Maracanazo.

Talvez essa mística tenha influenciado Gonzalo a pender para o futebol. As suas atuações na várzea não tardaram a chamar atenção de pessoas ligadas aos clubes da capital uruguaia. Foi numa manhã de sábado, num campo barreado, que um olheiro foi falar com Gonzalo. Ele jogou 90 minutos com pilchas de gala. Eduardo, o olheiro, já era tordilho e tinha olho bom para o futebol. Convenceu o rapaz a visitar as canchas de alguns clubes.

Juntos, visitaram vários. O Centenário já era um monumento ao futebol e impressionava. Mas foi num clube bem mais modesto que Gonzalo ouviu o chamado das águas. Pararam para almoçar na Cidade Velha depois de algumas visitas, quando Eduardo pediu que Gonzalo não se empolgasse muito com o clube que visitariam. Fora campeão nacional em 1927, mas já não era tão pujante. Terminadas as milanesas, fizeram a volta na Baía de Montevidéu e chegaram ao Cerro, bairro operário da capital.

Em frente ao portão do Estádio Olímpico de Montevidéu, Gonzalo sentiu algo estranho. Nenhuma epifania, nada abrupto. Mas, ao olhar para a cancha do Rampla Juniors, ele deixou de ser o Gonzalo de sempre. O estádio ficava na margem do Rio da Prata, e os anéis da arquibancada não faziam a volta completa. Jogava-se -e se torcia- com uma vista espetacular para a Baía. O meia estava decidido: jogaria ali. Não importava o salário, não importava nada.

O meia fez um teste e foi contratado. Era parte do escrete Friysis. Gonzalo se adaptou, fardou, virou titular. Recebeu ofertas para trocar de clube, mas algo fazia ele ficar: era aquele curso d’água, que assistia aos seus passes desconcertantes. De tanto ver o futebol pateado de Montevidéu, o Prata talvez já tivesse perdido as esperanças de testemunhar um jogador daquele nível. Ainda que forte e combativo, era limpo e elegante nas jogadas. Todos queriam ver Gonzalo marchar em campo com seu trote de cavalo andaluz. Não tardou a ser apelidado de el potro.

Tudo ia bem até que, no fútbol de potrero oriental, num clássico contra o Cerro, viu sua perna esquerda dobrar de uma maneira pouco usual. Um beque rival aplicou-lhe uma tesoura por trás, torcendo as pernas do meia. Hoje, saberíamos que se romperam os ligamentos. À época, ele só sabia que não jogaria mais profissionalmente.

Gonzalo não conseguiria jogar um jogo picado do campeonato nacional. O rapaz tímido, agora na casa dos vinte e poucos anos, teve sua única vocação esvaziada por uma entrada desleal. Seus pais haviam falecido poucos invernos antes, de modo que não lhe restava ninguém de amparo.

Tinha vigor para muitos anos de qualquer atividade. Menos para o futebol profissional. Em casa e sem muitas perspectivas, resolveu ir ao estádio que não encarava há meses. Das arquibancadas, mirava o rio. Pensou que deveria fazer algo que ainda o mantivesse próximo da água. Não podia nadar, não sabia pescar. Tampouco sabia navegar. Apenas ouvia aquele chamado.

Dali uns dias ou meses, ele nunca soube precisar, ouviu no rádio que estavam procurando um faroleiro novo para Cabo Polônio. Não entendia nada de faróis, tampouco sabia onde ficava o lugar. Mas foi à sede da Armada Nacional entender melhor. Era apto ao trabalho, e um total de três pessoas haviam se inscrito: ele, um idoso e um padre. Não tardou para ser avisado de que ganhara o emprego.

Depois de arrumar suas coisas, embarcou num ônibus para Rocha, capital da província onde ficava o farol e de lá, a cavalo, chegou ao povoado de pescadores. Se hoje o local parece inóspito, calcule nos anos 1960.

O antigo faroleiro precisava de um sucessor. Já não aguentava as lides diárias, que não eram muitas. Limpeza, manutenção do farol, tarefas de registro. Gonzalo daria conta tranquilamente. E mais: ficaria sozinho e próximo ao mar. Lembraria até o fim da vida a sensação de chegar próximo às pedras. Ver os leões marinhos -seus vizinhos-, sentir o cheiro do mar e ver aquele descampado. Ele sentiu a mesma coisa que sentira quando colocara os olhos pela primeira vez na cancha do Rampla Juniors. Era ali o seu lugar.

Chamou atenção um campo de futebol modesto, no gramado plano al rededor do farol. O antigo faroleiro, já com a pressa de quem quer regressar para sua casa, disse que os pescadores costumavam jogar ali às vezes. Gonzalo sentiu felicidade e pavor juntos. O futebol estava longe da sua realidade, mas logo abaixo dos seus olhos. Depois, quando subia para limpar os vidros do farol, via que era a mesma relação que os navios tinham com a luz que a construção emanava: chegavam perto para saber que deveriam ficar longe.

O farol era bonito. Caiado na base, subia alto e iluminava todo o vilarejo, indo até as pedras mais distantes no mar. A casa do faroleiro também era boa. Típica meia água uruguaia, simpática pela frugalidade. Gonzalo se adaptou rápido à rotina.

Um dia, no terraço, tomando mate aos pés do farol, viu os pescadores chegarem com uma bola. Vieram alguns marinheiros também. Enquanto um senhor barrigudo prendia fogo no parrillero, eles iam se dividindo em dois times. A bola rolaria sob os seus olhos, com o mar de testemunha.

Gonzalo assistiu a tudo lá de cima. Viu o jogo, o assado, o vinho. Era o mesmo fútbol de potrero que encontrara na capital. A cena passou a se repetir conforme o verão se aproximava. Os fins de tarde eram animados pelas partidas. Depois, juntavam tudo, davam tchau para ele e partiam.

Um dia, depois de uma semana de chuvas e de frio em pleno verão, Gonzalo acordou irritado. O barulho de gaivotas, os leões marinhos agitados, achou que estava cansado daquilo. Mateou em silêncio e viu o sol aparecer tímido pela primeira vez em dias.

Ao entardecer, mesmo com o campo encharcado, os jogadores apareceram. E pareciam estar ainda mais felizes, como que a comemorar a trégua da chuva. Jogavam descalços, de bombachas arremangadas. Alguns inclusive entravam em campo de boina. Uma confusão organizada.

Gonzalo entendeu que não tinha raiva do Farol, a quem já tinha se irmanado. Era só saudade da bola. Foi naquele dia que o seleto grupo de pescadores de Cabo Polônio conheceu El Potro del Faro. Tímido, apareceu em volta do campo, sendo cumprimentado por todos. Bartolomé, pescador de uns 30 e poucos anos que pareciam 60 de pele e 20 de energia, convidou o faroleiro para jogar. O homem que nunca havia ficado nervoso jogando partidas contra o Nacional tremeu diante de 12 pescadores destreinados.

Timidamente, arremangou as bombachas, tirou as alpargatas e entrou no time que jogava sem camisa. Há coisas na vida que não se desaprendem. Quem nasceu com a bola no corpo não perde. Gonzalo deu dois ou três passes para sentir o joelho e ganhar confiança, percebendo que estava tudo aparentemente bem.

Quando se deu por conta, estavam todos boquiabertos com o requinte das jogadas do faroleiro. Embora tivesse bom físico, nunca imaginaram que aquele homem de poucas palavras fosse um jogador daquele quilate.

Foi então, no assado depois do jogo, entre carne e copos de tannat, que Gonzalo contou sua história. Os pescadores queriam ouvir causos e saber mais sobre a vida em Montevidéu. O mais velho deles, Hernán, entre uma tragada e outra do seu palheiro, achou estranho um jogador tão bom estar naquele fim de mundo.

Gonzalo disse que a água o havia chamado. Quando soube do posto no Farol de Cabo Polônio, sabia que ali era seu lugar. Quando chegou, teve certeza. O pescador, coçando a barba amarelada pelo fumo, entendia. O campo e o mar, quando chamam, são irrecusáveis.

Assim Gonzalo passou os anos. Fez amizade com os pescadores, daquele seu jeito tímido. Jogou futebol, comeu assado, aprendeu a pescar. Cuidou do farol por quase quarenta anos. Levou uma vida monástica, sempre perto do mar. Manteve junto de si a bola, da mesma forma que aquela imensidão oceânica.

Quando a velhice o alcançou, trocou o farol pela casa de repouso em Rocha e as lides pelas memórias. O chamado das águas, que ouvira 60 anos atrás, era quase um susurro. Já há anos sem visitar Polônio, pediu aos cuidadores que arranjassem um meio de levá-lo ao Farol para uma despedida. Ele sentia que a luz do seu próprio farol se apagaria. Era como se ele estivesse vendo, da meia lua adversária, o juiz posicionar o apito entre os lábios para o silvo final.

O acesso ao vilarejo ficara mais fácil. Os 4x4 faziam a travessia em poucos minutos. Falaram com o novo faroleiro e pediram para Gonzalo passar a noite lá por uma última vez. El potro foi bem recebido por todos. Houve um grande assado, e, claro, uma partida de futebol entre pescadores, marinheiros e até alguns turistas que hoje são frequentes no povoado.

Finda a festa, já na escuridão, Gonzalo foi acomodado no seu antigo quarto, como se nunca tivesse deixado o aposento. Ficou lá, sentindo-se velho e fraco, como se aquele corpo não fosse seu. Lembrou o vigor dos tempos de Rampla Juniors, lembrou a imensidão da vida de faroleiro. Entendeu que os clarões que ele abria no campo eram iguais aos clarões que o farol abria no mar.

De madrugada, foi dar uma última olhada no campo. Aquele mesmo campo onde jogou pela maior parte da sua vida. Seu Centenário particular.

Parado, pouco depois da meia cancha parcamente desenhada, olhou para o gol, olhou para o farol e sabia que havia chegado a hora. O árbitro apitaria. E ali, esperou o farol lhe dar as costas, como que a poupá-lo desse momento triste. Naqueles segundos de escuridão -única certeza do cabo-, el potro encontrou a única certeza da vida. Ia para sua eterna noite entre cancha e mar. O velho faroleiro finalmente descalçava as chuteiras.

Resultado final do Quadrangular 2

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