Torneio de contos de futebol — Mario Benedetti: GRUPO A [encerrado]

Puntero Izquierdo
Puntero Izquierdo

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Resultado: Vaca Diez (Camisa 5, Valdir da Jura) vence o grupo com 30,8% dos votos e está classificado à segunda fase. Votação atualizada e final no fim da página.

Sinalizadores, rolos de papel, um cachorro retirado do campo e, finalmente, bola rolando para o Grupo A do 1º Torneio de Contos de futebol — Mario Benedetti. Em campo Vaca Diez, Brujas de Salamanca, Unión Maestranza, San Telmo e Atlético Grau. Reforçamos aos autores e autoras que não identifiquem (muito menos republiquem) seus textos nem seus grupos até o final da Copa.

O Grupo A tem publicação terça-feira, 5 de maio, e votação aberta até quinta-feira, 7 de maio, às 23h59. Leia os cinco textos e vote no campeão do grupo em enquete ao fim desta página (você precisará logar numa conta Google — também somos vítimas das grandes corporações). Somente o primeiro colocado da chave avança para a segunda fase. O Grupo B está marcado para sexta, 8 de maio. Regulamento aqui. Bom jogo!

Nota: nenhum conto sofreu qualquer tipo de edição por parte da equipe do Puntero Izquierdo.

Camisa 5, Valdir da Jura

Quanto mais dura a falta que cometia, mais grave a penitência que pagava em busca de redenção: um pontapé simples, desses que interrompem um contra ataque, lhe custava dez Ave-Marias; um tostão maroto, para impedir que o maldito cristão continuasse a infernizar a defesa, rendia quinze louvações à virgem e um Pai Nosso (Pai Nossos eram os juros incidentes sobre atos que escondiam intenções pecaminosas); um carrinho maldoso, daqueles que arrancam tufos de grama do chão — além de levantar o adversário — , culminava em alta expiação: cinquenta Ave-Marias, dez Pai Nossos e um Credo, pela periculosidade do ato; por fim, uma cotovelada, uma tesoura ou um tapa na cara — casos mais raros, é verdade - resultavam no dever de encomendar missas em nome do atingido. Foi por isso, por seus pecados e suas penitências, que o camisa cinco Valdir, volante-volante do América de Alfenas, foi batizado de Valdir da Jura.

Valdir era um jogador de futebol com predileções eclesiásticas. Seu dom era parar um ataque, sua dádiva era o coice. Recebera a missão divina (Seu Divino era o técnico do América) de ajudar os miseráveis zagueiros. Assim, defendia a grande área como ortodoxos defendem sua fé — e nessa cruzada contra os atacantes adversários, os maiores pecados de Valdir eram o alto número de cartões vermelhos e a ausência de compaixão para com o próximo, lição que estava por aprender.

Ainda que não tenha sido um atleta de talento iluminado, Valdir da Jura disputou partidas canônicas ao longo de sua impura carreira. A maior delas entrou para a história da cidade como “O jogo do ‘Deus te abençoe’”.

Era final do campeonato regional de futebol amador. O humilde América, trajando mantos vermelhos, enfrentava a soberba e ostentosa Tombense. Ao América, bastava o empate para garantir o título. Mas o adversário adentrou as quatro linhas com ganas de alcançar a glória: escalou um meia ofensivo, dois pontas e um centroavante, dispostos veneravelmente em cruz.

Contudo, se no futebol o jogo ofensivo é sagrado, o Divino optou pelo profano. Para conter os falsos profetas de Tombos, o técnico recuou mais um volante e liberou seu camisa-cinco, Valdir da Jura, para instaurar o caos. Carrinho ele distribuiu às pencas; pernadas saíram às dúzias. Apenas a cotovelada e o cuspe Valdir não ofereceu por atacado: um de cada. Dos quatro cavaleiros do apocalipse, três deixaram o campo contundidos e o outro não teve força suficiente, tampouco coragem, para enfrentar sozinho a perseverança inabalável de Valdir.

Contudo, apesar do pandemônio causado pela praga enviada a campo pelo Divino, um milagre se operou naquela tarde quente dos infernos. Incumbido da dolorosa missão de castigar os adversários, Da Jura finalmente se compadeceu do próximo. Mesmo que fosse ele o operário de tal obra, padeceu-se dos irmãos que rolavam, em agonia, pelo gramado.

Foi assim que, após um lance que fez a arquibancada chiar, Valdir buscou se redimir. A partir de então, depois de cada pancada, depois de cada sopapo, ele se ajoelhava ao lado do pagão e dizia: “Deus te abençoe, meu filho.”. Era uma cena tão comovedora que se o jogo não fosse no sul de Minas, só poderia ser em Canaã, na Galiléia.

Vencido o “jogo do ‘Deus de abençoe’”, Valdir se tornou o messias daquela pequena — para o bem da verdade, era minúscula; porém fiel — legião que torcia para o América. Os devotos rendiam-lhe oferendas: constantemente Da Jura recebia em sua casa frangos assados, cartuchos de doces, pés-de moleque, cachaças de alambique e outros agradecimentos saborosos.

O problema é que, quanto mais elevado aos céus pelos torcedores do América, mais a culpa flagelava Valdir. A missão que recebera era demasiadamente ingrata. Na faixa de capitão, sentia o peso daquele fardo. Afinal, sabia-se instrumento de defesa dos oprimidos, daqueles que nasceram sem o dom da ginga e da malemolência; dos pobres coitados sem vocação para a caneta e o drible da vaca. Da Jura fora escolhido para conter o ataque dos afortunados, para tornar humildes os bem-aventurados eleitos pelos deuses do futebol. Homem de fé, não questionava as vontades do Divino: batia por convicção. Apesar disso, contudo, não havia uma tarde que não deixasse o campo tomado pela culpa.

Na tentativa de aplacar tal sentimento, na temporada seguinte requisitou que um padre da sua congregação acompanhasse o time nos jogos fora. Da Jura desejava com isso poder confessar, imediatamente, os pecados que os torcedores testemunhavam em campo. Padre Valério, conhecedor da basal e profunda importância do esporte para a sociedade — e, claro, torcedor fanático do América — , aceitou o prestigioso chamado.

Nas primeiras partidas, Valdir se confessava após os jogos e cumpria a penitência ainda no ônibus, durante a viagem de volta. Mas não se satisfez. Logo passou a se confessar nos intervalos: ao invés de escutar as instruções do técnico Divino, Da Jura se ajoelhava ali mesmo no vestiário e pagava, em forma de orações, por cada um dos pontapés disparados.

Inevitável era o incômodo que a presença do Padre Valério causava nos colegas de time. Em respeito à batina, o palavreado ficou comedido, os assuntos tornaram-se estéreis. Nas derrotas, sermão; nas vitórias, senão. O samba deu lugar ao salmo, e as viagens dos jogadores passaram a lembrar peregrinos em procissão.

Ainda pior que a presença celibatária do clérigo, era a baptismal figura na qual Valdir se transformara. Jesuitara-se. Seu primeiro ato de catequização foi ensinar orações aos colegas de time para, em seguida, obrigá-los a rezar antes de entrarem em campo. Depois, ordenou que o sacristão produzisse camisetas com versículos bíblicos (“Buscai ao Senhor enquanto se pode achar.”, Isaías 55:6, foi o primeiro que escolheu.) para que os companheiros as usassem por baixo do uniforme. Por fim, como um cordeiro, sacrificou-se em nome da fé: Valdir da Jura anunciou que não jogaria mais em dias santos.

A decisão se deu dias antes a uma partida que aconteceria em um vinte e seis de setembro, data reservada a homenagear, no calendário católico, São Cosme e Damião. Dessa maneira, no dia do jogo Valdir chegou ao vestiário sem chuteira nem uniforme; ao invés disso, trazia nas mãos sacos e mais sacos de doces. Distribuiu-os a todos os colegas, ao técnico Divino e a sua sagrada comissão. Sem necessidade de explicação, deixou o vestiário e seguiu para as arquibancadas, de onde viu, rodeado por crianças com as bocas lambuzadas pela tradição, o América ser derrotado por três a um.

A promessa se manteve: Da Jura não jogou no dia de São João, do Padre Victor e de Nossa Senhora Aparecida; até mesmo nos dias santos menos prestigiados, como São Jerônimo e Santa Luzia, o volante não calçou suas chuteiras. Em todos eles, o América foi derrotado.

É claro que sua decisão causou um rebuliço na cidade. Houve revolta e quebra-quebra. Colegas de time praguejaram, torcedores blasfemaram. Houve até quem acusasse o próprio Jesus de Yoko Ono.

Em vão. Tempos depois, Valdir da Jura pendurou as chuteiras atrás da porta da sacristia. Hoje ele ajuda na limpeza e na organização das vestes e dos objetos litúrgicos. Nunca cometeu uma falta. Jamais foi expulso.

Giocondo

- Ôôô, burro de teta!

A vociferada geralmente já era suficiente para apaziguar os ânimos de um beque mais batedor e quase sempre vinha acompanhada do cartão esfregado na fuça do faltante, que respeitava o senhor atlético de quase dois metros, baixava a cabeça e seguia o jogo, largando só uma respirada profunda de resignação.

Quando não, o Jaimão era obrigado a lançar mão dos artifícios de que mais gostava. Teve aquela vez no Campo Velho que o time de fora era encarniçado: batia e batia, mas reclamava a cada falta marcada. Numa dessas, ele arrancou o amarelo do bolso e colou no nariz do volantinho deles.

— Na próxima, você vai expulso!
— Quero ver você me expulsar! Se você for homem, me expulsa agora!

Não deu outra, catou o cartão vermelho e tacou na cara do rapaz, que sem titubear, veio para cima do Jaimão. Qualquer temente a Deus que visse a cena sabia no que ia dar. E não sobrou nem tempo de tirar o relógio: o Jaimão mandou um sopapo na boca do rapazinho. Fechou o tempo, o pau comeu e o jogo acabou por ali mesmo.

A fama de juiz brigador o precedia, tinha virado seu cartão de visita. O que não combinava nada com o jeito proseador e o porte elegante que ele sempre ostentou. Na verdade, quando ele chegou no sítio, a molecada nunca tinha visto um homem tão bem aprumado. Parece o Heleno, o pai dizia. Mas a gente lá sabia quem era Heleno. O que eu gostava mesmo era dos sapatos brancos. Ele chegava à noitinha em casa para namorar a Tereza e meus olhos corriam de cima a baixo: o cabelo brilhava e o topete saía de uma risca lateral para o outro lado da cabeça sem perder o rumo, a camisa social clara e engomada ia por dentro da calça e era arrematada pelo sapato branco que atiçava meus olhos. No sítio não tinha dessas coisas.

No Giocondo, moravam sete famílias meeiras. Os alqueires eram divididos de acordo com o número de pessoas em cada família. O pai ficava geralmente com 3 alqueires, já os Zanzim, que tinham mais gente na família, costumavam pegar o dobro. Era o pai quem colocava os números no chapéu e sorteava o taião de terra que cada um ia pegar para a próxima colheita. Além da agricultura, o seu Ernesto Giocondo também passou a investir na plantação de eucaliptos e foi aí que o Jaimão apareceu no sítio.

A família dele vinha da serra. Ganharam um taião de terra na divisa do Giocondo com o Araquá, subiram uma casinha de tábua na beira do barranco e foram logo formando os eucaliptos, como se dizia no sítio. Da casa de tábua, fizeram um trilho beirando o mato que saía numa várzea lá do outro lado. Era ali na várzea que eles formavam as mudas de eucalipto: plantavam a semente e, quando a muda estava formada, arrancavam e transferiam para uma terra fértil e barrenta. Daí, misturavam com adubo, pegavam a muda de eucalipto e faziam uma bolinha. A turma chamava esse processo de empelotar muda e como precisava de muitas mãos, eu e a molecada éramos convocados para ajudar. Foi a primeira vez que eu vi o Jaimão.

Logo a fama dele de bom jogador se espalhou no Giocondo e marcaram um jogo contra a Usina Tanquã para a estreia do novo desportista. A habilidade foi confirmada, jogava ora de ponta-direita, ora de centroavante. Era esguio, inteligente e sabia chutar. Parece o Heleno, o pai repetia. Era mais uma atração no domingo dia de jogo, que era sempre dia de festa no sítio, tudo organizado pelo pai. O Mario Amaral descia com o caminhãozinho dele e levava fruta e doce para vender. As moças sentavam na arquibancada de tábua improvisada para assistir o jogo e a criançada corria no terrão.

O pai tinha muita ideia que eu nem sabia de onde vinha. Todo 1º de Maio ele organizava uma corrida entre uma fazenda e outra, espécie de maratona que agitava o pessoal e tinha até premiação. Mas o que ele gostava mesmo era do futebol. Ele próprio aplainou a várzea e convenceu o seu Ernesto a deixar o pessoal jogar ali. O campinho era uma lombada só. Quando seu Ernesto viu que o time do pai ia para frente, pediu para passar a máquina e aplainar o campo. Não gramou, mas arrumou as traves e manteve o terrão do outro lado.

O negócio foi ganhando importância, mas o pai via que o pessoal era muito cabeça de bagre. Resolveu, então, explicar como funcionava o quadro de futebol. Reunia a turma em casa à noite e, com uma espiga de milho na mão, ia tirando grão em grão e colocando em cada posição do campinho improvisado na mesa. “Esse é o arfo direito e esse o arfo esquerdo” — tirava dois grãos e colocava um de cada lado da mesa. “Aqui ficam os beques. Um é o beque de espera e outro o beque de arranque” — e dois milhozinhos ficavam na frente do que fazia o quíper. “Depois tem o center alfo” — e assim ia até o forardo.

Eu ficava admirado porque o pai nunca tinha estudado e sabia todas aquelas coisas. Era santista por causa do Santos de Pelé, mas nem acompanhava tanto futebol assim, gostava mesmo era de jogar e montar os times.

Como o Segundão do Giocondo era muito ruim — a turma até chamava de ‘Cascudão’ — o Zé Bondesan, que era metido a treinador, deu a ideia para o pai de colocar os meninos mais novos para fazer esse jogo inicial antes do Primeiro Quadro, que era sempre às 16h.

A Copa de 1970 tinha acabado fazia pouco e a molecada ainda estava empolgada com os jogos, que a gente tinha ido assistir no sítio do Dito do Aranha. Era a única casa que tinha televisão. Reunia toda a vizinhança na sala grande, colocava o papel azul em frente ao aparelho e a imagem estava lá, parecendo colorida para os nossos olhos que só viam preto e branco. Enquanto o pessoal se encantava com o Pelé e o Jairzinho, o Bondesan cochichava no meu ouvido: “Olha como o Clodoaldo joga, Tonico. Presta atenção no posicionamento.”

A ideia do Bondesan deu certo e ele passou a montar o nosso time junto com o pai. Eu gostava de jogar na meia direita, de ponta, gostava de fazer gol. Mas o Zé já tinha outro plano. “Com essa altura, você vai jogar de volante, igual ao Clodoaldo”. Não gostei muito da mudança logo de cara, mas a gente era ensinado a não questionar os mais antigos.

A estreia do nosso time no Segundão foi no São Lourenço, que ficava a uns sessenta quilômetros do Giocondo. Campo gramadinho, na beira do rio, coisa que nenhum de nós estava acostumado. O pai tinha ficado orgulhoso da minha entrada no time e antes do jogo veio me dar a chuteira nova que tinha conseguido comprar. Olé, trazia a etiqueta na língua. Todinha preta com uma faixa lateral branca que me fez até esquecer dos sapatos que um dia cobicei. Foi com ela que marquei o primeiro tento. 3x1 para o time visitante, de virada. A gente já estava subindo no caminhão para ir de volta para casa, quando o Bondesan passou por mim e soltou num tom indulgente: “Tá vendo, o Clodoaldo também marca”.

No banheiro do Beira-Rio

Foi um assalto rápido. Morro da Embratel, rua sem saída, as agressões verbais de praxe, filho da puta! Vagabundo! Passa a grana! Vou te matar! Passa tudo! O casal não despertou suspeita do taxista, bem vestidos, educados, fora do comum apenas o fato de a mulher ter sentado na frente, o homem no banco de trás. Fora isso, tudo normal. Anunciado o assalto, a arma encostada na têmpora, tudo foi muito rápido e louco, depois de quatro assaltos a mão armada, o taxista quase já sabia o que esperar, mas alguns detalhes beiraram a loucura: o taxista não esperava ser tão, digamos, apalpado.

— Caralho, tu tá passando a mão nas bolas dele!?
— Olha, o taxista é todo saradinho.
— Porra, Meg, te liga, deixa de ser escrota, pega as porra tudo e vamo cair fora!
— Vira, aí, taxista, quero ver o bolso de trás, hum, que bundinha mais empinadinha que ele tem…
— Eu vou te matar, taxista filho da puta! E te mato também, Meg, porra, mas que merda, larga a bunda do cara, tu tá chapada, tá louca, sua vadia!

Levaram tudo, táxi, dinheiro, celular, negaram-se a deixar documentos, carteira de motorista, levaram tudo. O taxista deu-se por satisfeito por não levar um tiro na testa, o assaltante possuído, enciumado, louco pra descarregar o trezoitão, a mulher mandando deixar quieto, só estava tirando uma onda, o taxista mandado correr, entrar no mato, o táxi sumindo na poeira da estradinha de chão batido. Depois de um tempo, sair do mato, procurar ajuda na redondeza. Um morador, solidário, a ligação para a polícia, a carona em uma viatura até a DP mais próxima, registrar BO, a burocracia padrão. Uma colega mais chegada aparece, joga a notícia do assalto no grupo dos taxistas, logo o carro é localizado próximo a Belém Novo, abandonado num beco. Tudo certo. Mesmo sem muita esperança de reaver o aparelho celular, o taxista resolveu arriscar. Pediu o telefone da colega emprestado e ligou para seu número. Atendeu a assaltante!

— Alô.
— Alô, ãã, esse telefone, eu sou o dono do telefone, eu, fui, ãã, assaltado, esse
telefone…
— Olha, o taxista gatinho! Tava esperando a tua ligação. Fiquei com teu telefone. Ele não tá rastreado, tá? Não quis jogar no Guaíba um aparelho tão bacana. Aliás, agradeça a mim também o fato do seu táxi não ter parado no fundo do Guaíba.
— Obrigado.
— Então. Fiquei com teus documentos também. Deixei o dinheiro com meu namorado, aquele craqueiro idiota, mandei comprar droga e sumi. Tava esperando tua ligação. Queria te devolver tudo, que tal?
— Bah, obrigado mesmo, onde eu posso te encontrar, o aparelho não tem rastreamento, não levo polícia nem nada disso, já vi que tú é uma mulher do bem.
— Nos encontramos daqui uma hora, no Beira-Rio.
— Avenida Beira-Rio?
— Estádio.
— Mas… hoje… quarta-feira… Tem jogo, gauchão…
— Então, eu tô indo no jogo. Alguma coisa contra? Tu és gremista?
— Não, não, sem problema, sou colorado, inclusive.
— Perfeito. Nos encontramos no estádio. Vou estar no anel superior sul, vestindo uma camisa oficial do Inter, número dez.
— Tu e toda a torcida..
— Nos encontramos no banheiro, quando der 20 minutos de partida, dentro do banheiro do anel superior.
— Mas como é que eu vou entrar no banheiro feminino?
— No masculino, tolinho.
— Masculino??

Foi assim que o taxista acabou conhecendo Meg, a travesti mais perfeita da cidade, foi assim que engrenaram um romance que já dura mais de uma década. No banheiro masculino mesmo trocaram o primeiro beijo apaixonado. O momento mágico. Os lábios unindo-se no exato instante do gol, o estádio vindo abaixo, o estrondo magnífico fazendo o concreto vibrar, um terremoto aos pés do casal!

Um encontro desses não acontece todo dia. Não duvido que dure para sempre.

Sin brujas no hay paraíso

O soldado que desembarcou no Porto Stanley em 1982 chamava-se José Luis Beltrán, era centroavante do Estudiantes e mal sabia manejar um fuzil. Vinha de um longo mês de isolamento no fim do mundo, usava camadas de brim e possuía um nariz, ao mesmo tempo, saliente e gentil. Os passos largos e lentos chamavam atenção naquele iceberg que, desde os tempos de La Plata, geravam um certo olhar negligente da tribuna. Ali, mesmo acotovelado por outros meninos do Regimento 7, mantinha o péssimo hábito de fumar com o pequeno rádio de pilha colado ao rosto. Sob a densa neve que caía no entardecer, afundava-se em lamúrias cada vez mais opacas e decrépitas, como se estivesse a caminho do subúrbio do inferno.

Mas antes de ter os olhos vendados e o fuzil partido ao meio, havia de recordar aquela tarde de julho em que desperdiçara uma das cobranças no Metropolitano Argentino de 1979. Herdando a 11 de Ramón “La Bruja” Verón, sentia no suor impregnado da camisa, o peso de um legado que ele nunca poderia sustentar. Elevado ao principal do alvirrubro aos 18 anos foi chamado à marca da cal para o último pênalti contra o Independiente de Avellaneda. Sob os gritos de “toro Beltrán”, caminhou em direção à área, beijou a medalha da virgem de Luján e recebeu a bola do capitão Emílio Fortunato:

— Eles estão mortos José, acabe com a festa!

O vento que vinha da Terra do Fogo espalhou as lembranças, devolvendo-o para a costa das Malvinas. Esfregando os dedos secos e quebradiços, pediu ao colega Enrique Pérez um trago do cigarro e um gole do cantil, que compartilharam durante todo o trecho de caminhada até o posto 27, próximo do Monte Longdon, onde cruzariam a fronteira da puberdade.

Ambos faziam parte da classe de 62, pelotão sorteado no árido 1981, reunindo desempregados, universitários e outros boleiros, como Héctor Cuceli (San Lorenzo), Omar De Felippe (Huracán), Gustavo De Luca (River) e Javier Dolard (Boca Juniors). Naquele 13 de junho, onze mil quilômetros os separavam do plantel convocado pelo técnico Luis Menotti, que buscava o bicampeonato na Espanha. Enquanto rumavam para a vigília na trincheira, Pérez contestou o amigo com o óbvio:

— Ei José, esse teu radinho já disse se Menotti escolheu Díaz ou
Valdano?
— É Díaz quem vai jogar.
— Não sinta cabrón, sua chance vai chegar.
— Não creio…
— Esses putos estariam se cagando se você estivesse lá, com Diego. Ânimo, toro, dale!

Desde as fazendas de Laborde, aquele robusto servil fumava sem falar e resmungava no silêncio. Não protestou quando o capitão Fortunato fez as paredes do chuveiro ecoarem por todo vestiário com seus murros, nem reagiu ao retirar as páginas de jornais pregadas em seu armário após aquela tarde de pênaltis em Avellaneda. As manchetes eram claras: Sin brujas no hay paraíso.

Agora, acomodado junto aos amigos e com barro nos dentes, Beltrán decidiu baixar a guarda dentro da trincheira. Acima da jaqueta verde, acendeu mais um cigarro, bradou contra os pelotudos ingleses de mierda e recostou em seu peito o pequeno rádio. A neve deixara o trânsito tumultuoso em meio ao lamaçal, fazendo-o fixar posição durante todo entardecer. Assim que soou os primeiros acordes da transmissão foi o primeiro, começando baixinho, enquanto balançava o tabaco para o canto da boca: “Argentina va a salir campeón!”.

O pelotão se entreolhou e o sussurro se repetiu junto de petelecos no aparelho. De longe, no canto esquerdo da vala, Andreas Martinez o único que desdenhava dos modos trapistas do grupo, improvisou versos de “Se lo dedicamos a todos, la puta madre que lo te parió!”. Aos risos, o regimento empurra Passarella para o meio, lançando Maradona para a lateral da área. O pibe recebe a cobertura de Gerets, corre para o fundo e cruza uma pelota longa, na cabeça de Valdano. Junto dele, Bertoni disputa no corpo com Marc Baecke e ambos desabam, abrindo uma janela para o empate, que o atacante do Zaragoza desperdiça, entregando-a no peito do goleiro Pfaff. O árbitro aponta o escanteio e das Malvinas se ouve: “ARGENTINA VA A SALIR CAMPEÓN! ARGENTINA VA A SALIR CAMPEÓN!”.

Como nos mais sórdidos pesadelos, o contra-ataque começa num desarme e termina pelas pontas. Do alto do monte, um céu avermelhado trazia as bombas britânicas que abafaram o gol do belga Vandenbergh. Contando os cartuchos, Martinez inicia a linha de disparos sem saber por onde rumavam os pelotões. Desesperados, os protetores do posto 27 chamam a central num apelo surdo, já que o som das sirenes cobriu o campo, invadiu a trincheira e cegou os pensamentos dos argentinos. Três caças modelo Dagger cortaram os céus do Porto Stanley, acompanhados do avanço de um porta aviões pela costa.

Agachado, Pérez arrasta o amigo para perto da saída, já que ambos deveriam retornar para a base e informar a chegada do que parecia ser milhares de europeus. Desistiram na metade do caminho com a tomada do quartel e forte estrondo do morteiro que explodiu em seus pés. De olhos semicerrados, Beltrán correu com dificuldade pela lateral do campo de batalha, à sombra dos corpos no caminho. Na trincheira, encontrou apenas o pequeno rádio ligado próximo dos soldados encobertos pela neve. À sombra de nova ameaça aérea e respirando com dificuldade, balançou os cadáveres ao seu lado em busca de alguma munição dos companheiros, porém, o sangue nas mãos dificultava o carregamento da metralhadora.

Isolado em um buraco de gelo, sentia saudade daquele passado fosco com fazendas, potreros, assados e gols, que hoje não passam de um amontoado desbotado de fotografias. Com as memórias encobertas pelo frio, repete o beijo na virgem de Luján e confere novamente os bolsos do casaco. Não há mais brujas no passado.

Beltrán empunha com firmeza um fuzil sem balas e salta para fora da trincheira.

O velho Aldir

Cantarolava sambas antigos o velho Aldir nos prados da Muda. No escritório da Garibaldi, temporal lá fora, se equilibrando na corda bamba de sombrinha enquanto tragava um cigarro molhado de chuva até os ossos sofria com seu Vasco como de costume. Porém, ai porém, já não tramava desilusões com seu coração em desalinho pois a sensação de angústia colossal diante do esquadrão cruzmaltino não era mais do presente. Vinha sim das profundezas abissais da memória de tempos não tão idos em que assistia a um bom e velho esporte bretão à deriva em algum dos canais mais recônditos daquela sua televisão mequetrefe. A bola já não mais corria ou não era mais assassinada nas possessas canelas vascaínas. O mundo já era outro e não via mais nem glamurosas ligas tampouco peladas dionisíacas e rodrigueanas das várzeas mais deslavadas. Ter a glória única de poder pressentir todas as lutas inglórias de um perna-de-pau, impossível.

O tempo batera na porta da frente cheio de zombaria, os amantes cálidos das canchas míticas órfãos de poesia se calaram num pileque homérico no mundo. Futebol mais não havia. Sobraram melancolia, replays, vts, lives, anglicismos assépticos, insossos, insípidos e inodoros. Aldir se vira diante das recordações, tarjas pretas na cabeceira, livros, cds e vinis empoeirados e buscou escrever umas mal traçadas linhas sem eira nem beira. Vai ver, para desafiar o destino, o desatino de tempos tão sorumbáticos. Sentado na velha poltrona, pensara em sambas antigos do Salgueiro, parcerias, blocos, jogos, crônicas como aquela da carambola, nas filhas, na psiquiatria da juventude e foi se enamorando de um torpor, um candente desejo de se deixar levar pelo estado hipnótico que vinha na cadência de batidas numa mesa de bar…

“Tapir, jabuti, Iliana, alamanda, alialaúde, piau, ururau, akiataúde,…”

A caneta transbordava na sua própria saga entre os dedos de Aldir. Nasciam rabiscos, garranchos, notas musicais, versos de poemas. O atravessar do túnel eterno vinha à mente daquele que dizia que sua vida nunca teve tanta beleza. A infância era fundamentalmente construída sobre alguns pilares: brincadeiras de rua, aprendizados matreiros, afetos familiares e, sobretudo, a reação diante dos paradisíacos túneis do Maracanã e de São Januário. Havia algo de uterino ali, de nascimento, de iluminação, um alvorecer que parecia o anoitecer, como certo dia compôs. Qualquer ancestral amante da bola em sã consciência e de caráter lembra vividamente dos seus primeiros passos, ou em cima dos ombros do pai, rumo à paisagem onírica que começava com sons de surdo, bandeiras tremulando muito ao fundo, um coro indistinguível aos ouvidos muito jovens. E ao romper dos céus e do anel de concreto da marquise, fazia-se a luz: ali era compreendido o futebol com toda pompa e circunstância.

“Salve, como é que vai? Amigo, há quanto tempo. Um ano ou mais. Posso sentar um pouco? Faça o favor. A vida é um dilema. Nem sempre vale a pena”

A tinta já estava completamente desgovernada, desenhos de melodias vãs, cataventos e girassóis. Seguia a escrita de outro ali no sumidouro do espelho do papel. O diálogo sui generis soluçava as dores de tantos dias difíceis. A folha borrada, molhada, amassada continuava por si só… Alguns não lembram ao certo seu primeiro jogo em estádio, um pecado perdoável. Porém, esquecer a escuridão de um túnel e a luz quase bíblica no seu final é algo da ordem da excomunhão do sujeito. Um camarada desses não merece dizer que ama essa bagaça que nos entorpece e vicia. Há que se lembrar até do samba-enredo cantado a altos brados no dia, de que trecho e se foi perto do escanteio, atrás do gol, no centro do campo que foi parar. Irão dizer os incautos, “Ah, mas minha memória não é lá muito boa”. Isso não se trata de conexões neuronais, é ferro e fogo no corpo, é tatuagem à moda de Chico. É tiro e queda: se o doce canalha não souber contar uns dois minutos de túnel não leva muito a sério sua dita paixão. É só um esporte qualquer.

“Num dia azul de verão sinto vento/Há folhas no meu coração/É o tempo/Recordo um amor que eu perdi/Ele ri/ Diz que somos iguais/Se eu notei/Pois não sabe ficar/E eu também não sei”

A esta altura do campeonato, Barbosas, Danilos, Alfredos, Ipojucãs, Queixadas, Friaças, Chicos, Robertos, Zanatas, São Jorges Carvoeiros, Dulces, Santanas e outras entidades ninavam Aldir em berço esplêndido. Livros esbofeteados no chão, cadernos corsários navegando perdidos sobre o colo do gênio. Esferográficas esfarrapadas, lápis aos montes já fecundavam uma obra febril contra o bafio da fera… O atravessar do túnel é eterno, leva crianças, jovens e velhos até hoje diante de um estádio a correr, bradar gritos do Ipiranga, sorver goles de cerveja mais profundamente diante do encontro com o irromper das luzes, do verde do gramado, da torcida tomando seu latifúndio.

“Dorival Caymmi falou para Oxum/Com Silas tô em boa companhia/O Céu abraça a Terra”

À mesa com velhos confrades, Aldir sorriu feito um Chaplin tijucano, em eterno estado de sítio. E do túnel iluminado, num sufoco louco, o bêbado com chapéu coco retornou aos saltos, rememorando aquele gol do Cocada, o drible de Edmundo dois pra lá, dois pra cá contra eles e o tirambaço no canto, o lençol do Dinamite, as derrotas torturadas.

“Mas sei, que uma dor assim pungente/Não há de ser inutilmente, a esperança/Dança na corda bamba de sombrinha/E em cada passo dessa linha pode se machucar/Azar, a esperança equilibrista/Sabe que o show de todo artista tem que continuar”

Resultado final do Grupo A

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