Ainda há tempo?

por Marcella Montanari

Conjunto Artefato
Puxadinho
3 min readMay 24, 2020

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Me perdi num medo reservado às sombras das máscaras que caíram e revelaram a face de rostos que me enganaram por anos a fio. O ar parece mais denso nos pulmões de uma asmática que enfrenta a pandemia.

O mundo lá fora não me assusta, na verdade, ele nunca pareceu tão seguro sem a nossa presença, é claro. Em tempos pandêmicos a ignorância me sufoca mais do que o normal e me coloca aos prantos num desespero interminável, me fazendo questionar: quando terá fim? Haverá fim, afinal de contas?

Me preocupo demais. O ar fica ainda mais denso. Faço os exercícios de respiração que já não funcionam, numa tentativa angustiante de me auto enganar. Há alguns anos havia parado de sentir aquela sensação de que não gostaria de estar aqui e que agora, retorna insistente e lateja na memória.

Fantasmas do passado nos assombram. Isso mesmo, aquele passado. Que torturou, matou e não foi estudado, mas agora maquiado, parece aos ignorantes uma solução, que nem eles mesmos entendem. Esse pião que insiste em rodar horas no umbigo dos que vivem de luxo ou dos que vivem aquele sonho efêmero de acreditar que são inclusos num grupo ao qual não pertencem.

Ninguém mais sabe conversar. Ninguém mais sabe pensar no outro. O outro não é apenas aquele que se encaixa no meu grupo de conhecidos. O outro é o outro. Aquele que tem menos do que eu, aquele que é diferente de quem sou. Aquele que é deixado às sombras e apenas lembrado quando bate o espirito natalino, servindo de enfeite pra rede social, que tenta adocicar a alma amarga com os biscoitos ganhos.

Pra quem você ora que acata o seu ódio maquiado de justiça? Não entendo. Não consigo. Me sinto um grão de areia que agora pulsa fracamente em meio a tantos corações sombrios. Sou um peixe fora d’água, insignificante, que grita e esbraveja o óbvio numa sociedade egoísta e cruel. Somos reincidentes em sermos cruéis. Não aprendemos. Falhamos, mentimos e odiamos.

Vamos sucumbir. Pode não ser agora, mas não há evolução no ódio ou na ignorância. Me desperto com medo de me descobrir em Gilead. Desperto hoje, lamentando ter despertado.

37 dias incertos de medo e crises constantes de choro. 37 dias aterrorizada por perder alguém nessa jornada silenciosa e às cegas. Não sei lidar com perdas e comecei a trilhar esse caminho cedo demais. É o fim, entende? Acabou. Os abraços cessam, o perfume desaparece, a voz cai no esquecimento e o coração soma os buracos que nunca fecham. Entendam que o tempo não alivia nada. Ele é cruel com quem sente demais. Cruel com quem ama demais. Quando algo aparece desenfreado em nossas vidas e ameaça dizimar quem mais amamos, não há como ficarmos bem.

Todos vamos perder alguém um dia. Todos vamos nos perder também. Ao fim deste texto, já sinto fadiga e cansaço para respirar. O ar não entra e os olhos não contém as lágrimas. Mais uma dose da minha bombinha de resgate. Ao fim dessa quarentena, espero apenas estar aqui, com quem amo. Ainda há tempo?

22 de abril de 2020

Marcella Montanari é uma jornalista e especialista em Branded Content que se apaixonou desde cedo por histórias, tendo se apegado a elas como uma fuga da realidade, que por vezes, lhe parece cruel demais para suportar sozinha. Fundou o blog Raprosando em 2018, na intenção de ter um espaço liberto para se expressar sobre cultura pop, universo feminino e saúde mental. Atua como Diretora de Marketing e Redatora na agência de comunicação administrada por mulheres, Ladies.co, sendo cofundadora da empresa.

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