A armadilha da feminilidade e as novas masculinidades

Reflexões sobre seus papéis

Furiosa
QG Feminista
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5 min readMar 26, 2020

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Tradução do artigo La trampa de la feminidad y las nuevas masculinidades, de Tasia Aránguez Sánchez, publicado originalmente em janeiro de 2019 na Tribuna Feminista. Você pode ler o original em espanhol aqui.

Algumas mulheres afirmam que a feminilidade as empodera; alguns homens afirmam estar reinventando a masculinidade que os oprime; algumas pessoas afirmam que é necessária uma feminização da política. Essas afirmações me são desconcertantes. Recorro a um livro de Margarita Pisano, El triunfo de la masculinidad, para elucidar a origem de minha estupefação.

Pisano assinala que masculinidade e feminilidade têm origens muito distintas, de modo que não podem se abordar com equidistância, como se ambos os gêneros nos limitassem de forma comparável, como se fossem dois cárceres: “enquanto um provém de uma experiência de poder e de onipotência, com uma história escrita e relatada, o outro provém de uma história de séculos de submissão, violência e marginalização”. Em outras palavras, a masculinidade é a marca do poder e a feminilidade é a marca da subordinação.

Na sociedade o que se ama e se respeita é ao homem “pois a masculinidade atraiu para si o valor fundamental que nos constitui como humanos e humanas: a capacidade de pensar”. Tal masculinidade pretende descrever não só os homens, mas tudo que é humano. “O que o patriarcado trouxe consigo como essência desde sua lógica de dominação — a conquista, a luta, a submissão pela força — hoje se modernizou em uma masculinidade neoliberal e globalizada”. A masculinidade eleva as contingências da história do poder dos homens à categoria da universalidade. Ou seja, a masculinidade é a ideologia do patriarcado.

O espaço da feminilidade está dentro da lógica masculinista. “A leitura simplista de dois espaços diferenciados de gênero masculino e gênero feminino nos conduziu a formulações errôneas de nossa condição de mulheres e de nossas rebeldias, pois esses supostos dois espaços simbólicos não são dois, mas um: o da masculinidade que contém em si o espaço da feminilidade.” Ou seja, a feminilidade não é um espaço autônomo que nos permite emancipar-nos ou que pode reinventar-se: a feminilidade “é uma construção simbólica e valorativa desenhada pela masculinidade e contida nela como parte integrante”.

Pisano considera que a contraposição de caracteres entre os gêneros tem sido uma estratégia da masculinidade para manter a submissão das mulheres e sua forma de relacionar-se entre elas e com o mundo: a feminilidade nos instala no espaço privado e intocável da maternidade. A finalidade da ideologia da masculinidade e da feminilidade (o gênero) é que os homens possam utilizar as mulheres para: “o prazer (o casal, o amor, a heterossexualidade”, o uso da reprodução (a maternidade) e, por último, o poder (através da exploração e do trabalho das mulheres).

A feminilidade não é um espaço à parte com possibilidades de empoderamento, senão uma construção de valores contida na masculinidade. A noção de masculinidade estabelece uma fronteira necessária para diferenciar os sujeitos poderosos das subordinadas: “a masculinidade se construiu a partir de uma lógica antimulheres em termos coletivos”. A masculinidade é a cultura do patriarcado e a feminilidade é apenas seu oposto necessário. Toda noção de masculinidade, antiga ou nova, contém dentro de si uma fronteira entre homens e mulheres que se sustenta por oposição com o feminino.

Tentaram nos convencer de que a feminilidade nos oferece uma forma alternativa de poder. As mulheres se agarram ao pequeno poder da amor e da maternidade, que não são mais do que um disfarce. No entanto, o poder exercido por governantes, militares e outros homens é claro, forte, violento, reconhecível.

Existe toda uma linha feminista que busca a emancipação por meio do orgulho da feminilidade, de seus valores ou da reivindicação do feminino: “teremos que abandonar parte do corpo teórico produzido pelo feminismo que se baseia precisamente nessa ideia”. E abandonaremos também o modelo de feminilidade “que temos instalado em nossas memórias corporais, até o ponto em que acreditamos ser essa nossa identidade”. Temos apresentado tal identidade feminina como rebeldia ante a masculinidade, mas a feminilidade não faz mais do que afirmar a masculinidade: “Não conseguiremos desmontar a cultura masculinista sem desmantelar a feminilidade”.

Por conseguinte, Margarita Pisano expõe que a masculinidade e a feminilidade não podem se reinventar, devendo ser abolidas. A libertação das mulheres passa necessariamente pela reflexão a partir de um espaço cultural e político não feminilizado. A autora afirma que as mulheres avançaremos “nos libertando dos desejos nostálgicos de permanecer em uma cultura que, por mais que a queiramos ler como nossa, nos segue sendo alheia”. Por isso o principal avanço do feminismo são os espaços nos quais pensamos e atuamos com outra mulheres, nos quais rompemos com a feminilidade, e nos conhecemos como seres humanas completas. Nesses espaços desmontamos a desconfiança e a traição entre mulheres. É necessário que surja um pensamento inspirado em nossa própria genealogia e construído a partir dos debates entre mulheres. Esse pensamento permitirá que desenvolvamos a capacidade civilizatória de nossa classe sexual.

A propósito dessas reflexões de Pisano, poderíamos perguntar-nos qual é a tarefa dos homens no projeto feminista de abolição da ideologia patriarcal (masculinidade e feminilidade). Para além do oximoro da nova masculinidade, os homens poderiam se negar a fazer uso das estruturas que subjazem por trás de tal ideologia (e denunciar os homens que fazem uso das mesmas).

Refiro-me às estruturas do prazer (pornografia, prostituição, valorização das mulheres por sua beleza, pelas partes de seus corpos ou por suas roupas, fetiche pela juventude feminina, romantização da mulher submissa, pedestal objetificante do amor cortês, etc.), da reprodução (exploração das mulheres como parideiras e cuidadoras), e do poder (elevar os ídolos da cultura masculina e invisibilizar as mulheres, explorar as mulheres em uma dupla jornada para liberar seu próprio tempo, delegar às mulheres os trabalhos mais ingratos, apropriar-se de honras, imagens e protagonismo, apropriar-se da palavra, participar em qualquer evento ou instituição não paritária, apropriar-se da liderança de instituições ou de movimentos de protesto, etc.).

Admito meu ceticismo ante à disposição das pessoas a renunciar àquilo que lhes acaba sendo útil e prazeroso. Na história, observamos que os direitos se conquistam, não se pedem “por favor” nem são alcançados graças à tomada de consciência dos opressores. Por mais que pontuemos as desvantagens que a masculinidade tem para os homens, o patriarcado lhes acaba sendo indubitavelmente benéfico. Sem dúvida, bastantes homens acham prazeroso receber palmadinhas nas costas por sua bondade e seu altruísmo com as mulheres, mas creio que essa motivação está muito longe de ser um compromisso feminista, pois não fazem mais do que satisfazer a transferência de afeto e de reconhecimento das mulheres em direção aos homens.

Ainda assim, sempre existiram alguns homens que, sim, são autênticos aliados feministas e seguem existindo. Entretanto, uma organização dos homens frente às estruturas patriarcais encontraria lugar fora da categoria da “nova masculinidade”, que resulta contrária ao projeto abolicionista de gênero característico do feminismo.

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