Bandeira Lábrys, a bandeira lésbica não é em tons de rosa

Celle Fonseca
QG Feminista
Published in
9 min readAug 17, 2020

Lésbicas do mundo: honrem a nossa história, não permitam que usurpem nossos símbolos e que apaguem a nossa trajetória de luta

Lábris é a verdadeira bandeira lésbica, repleta em história e significados
Bandeira Lábrys, a bandeira lésbica não é em tons de rosa

Vivemos, lamentavelmente, um tempo em que reforçar os papéis e estereótipos sexuais passou a ser considerado revolucionário em vez de uma prática limitadora. Com isso, pautas e símbolos associados ao feminismo são atacados como conservadores e ultrapassados.

E, muito embora eu esteja falando sobre fenômenos atuais de ataques ao feminismo e às lésbicas, é importante frisar que o processo de ataque e apagamento às nossas luta e história são antigas e constantes, se iniciaram desde que começamos a nos organizar com o objetivo de denunciar as estratégias patriarcais de controle e dominação.

A bandeira lábrys é um excelente exemplo desses ataques alimentados pela misoginia, lesbofobia e desinformação, constantemente vemos diversas histórias absurdas sendo contadas em torno dela, que é um símbolo de TODAS AS LÉSBICAS, tendo reunida em si muito do que faz da história escrita pelas lésbicas algo forte e capaz de resistir em uma sociedade que cotidianamente tenta nos destruir das mais diversas, violentas e cruéis maneiras.

Meu xequerê com a bandeira labrys

Trouxe esses apontamos iniciais porque busquei reunir nesse texto um apanhado sobre as bandeiras criadas na internet que tentam fazer passar como sendo do movimento das lésbicas, como pretendo apresentar um pouco da potente história da bandeira lábris e seus significados de luta e visibilidade.

Bandeiras criadas na internet: um pouco sobre as bandeiras em tons de rosa e laranja

Lipstick Lesbian

Em 2010 popularizou-se nas redes sociais uma bandeira dita lésbica — em tons de rosa, trazendo a marca de um beijo na lateral, de nome Lipstick Lesbian (em português, lésbica de batom) –, que tinha como intenção representar as lésbicas feminilizadas.

Lipstick Lesbian com o beijo na lateral

Apesar de intensa pesquisa não sei ao certo como surgiu o termo, há rumores de que, no ano de 1982, uma jornalista do San Francisco Sentinel, um jornal da comunidade gay de São Francisco, escreveu um artigo chamado Lesbians for Lipstick (lésbicas pelos batons), uma espécie de reivindicação por maquiagens e outros elementos que tornam visíveis a feminilidade cosmética como um “símbolo” das mulheres que se afirmavam lésbicas.

Após muitas críticas quanto ao beijo na lateral e ao fato de ela remeter exclusivamente às lésbicas feminilizadas, a marca de batom foi retirada mantendo-se apenas as listras em tons de rosa.

Ainda sobre a Lipstick lesbian, ela foi criada no Tumblr, em 2010, por pessoas que entendiam que a bandeira lábris era muito séria. Desta forma, resolveram fazer uma com listras em vários tons de rosa para simbolizar “diversas formas de feminilidade”.

Lipstick Lesbian sem o beijo na lateral

Bandeira Sunset

Em 2017 surgiu, então, uma bandeira com tons de laranja e rosa, feita também no Tumblr, por um usuário de nome Sadlesbiandisaster, que prometia ser mais inclusiva, porque o laranja escuro, segundo o criador, significa “não conformidade de gênero”; o laranja médio, “independência”; e o laranja claro, “comunidade”. O branco que fica no meio representaria as “relações únicas com o universo feminino”. Depois, rosa claro para “serenidade e paz”; rosa médio para “amor e sexo” e rosa escuro para “feminilidade”.

A bandeira Sunset

Em 2018, uma nova versão da bandeira Sunset foi criada, bastante parecida com a anterior, mas com apenas cinco tiras: laranja escuro, laranja, branco, rosa claro e rosa escuro, mantendo os mesmos significados anteriores.

A bandeira Sunset em uma versão de apenas 5 cores

Bandeira lábrys, a bandeira de todas as lésbicas

Bandeira lábrys: a bandeira de todas lésbicas

São várias as razões para eu insistir na labrys como uma bandeira oficial na luta lésbica. A primeira delas é a força que ela transmite através dos seus símbolos: não são meras cores que foram colocadas ali sem uma história, ela tem uma memória dentro do movimento das lésbicas.

Gostaria de registrar algo que digo todas as vezes que vou contar a história e debater sobre a bandeira lábrys, que é de que eu entendo como um erro dizer que em 1999 o designer gráfico Sean Campbell “criou” a bandeira lábris para ser publicada em junho de 2000 na edição Prime da revista Gay and Lesbian Times. Tenho essa opinião pois levo em consideração que todos os símbolos contidos nela já eram usados juntos e separados pelos grupos, coletivos e lésbicas autônomas há muitos anos, por isso eu digo que ele apenas catalogou a bandeira, mas criar eu não concordo que ele tenha, pois em respeito a memória lésbica, dizer que foi uma criação dele o roxo, o triângulo preto invertido e a lábrys é ignorar o uso anterior e significativo desses símbolos pelas lésbicas em materiais, ações, atividades e manifestações.

Foto histórica de Alix Dobkin grande militante lésbica utilizando uma camiseta com a lábrys
Fotografia do coletivo lésbico Lavender Menace, é possível ver a lábrys e o triângulo invertido sendo utilizados

Triângulo preto invertido: para a militância de grupos marginalizados resignificar palavras e símbolos utilizados na nossa opressão é em muitos momentos uma forma de resistência política, um exemplo disso é a palavra sapatão, que era utilizada por policiais durante a Ditadura Militar, como forma de humilhar e reprimir lésbicas, mas que foi tomado pelo movimento lésbico e resignificado de forma a passar a fazer parte do nosso vocabulário e sermos nós as donas dela, tirando dos nossos algozes o poder.

Foi o que aconteceu com o triângulo preto invertido.

Os triângulos foram uma forma de identificar as prisioneiras e os prisioneiros nos campos de concentração em razão da religião (roxo), dos ideais políticos (vermelho), da orientação sexual (rosa para os gays e preto para as lésbicas) e demais cores que, junto com a tatuagem de números, serviram para marcar essas pessoas. O triângulo preto também era usado nos Romanes, ciganos e nas mulheres rebeldes, como as feministas e grevistas.

Exatamente por isso que nós, que defendemos a força e a legitimidade desse símbolo, nos pautamos no entendimento de que resgatar o triângulo preto invertido é uma forma de honrar a memória dessas mulheres lésbicas, é uma maneira de dizer que temos consciência de que poderia ser qualquer uma de nós ali, pois sabemos que não são foram apenas em campos de concentração que lésbicas foram marcadas por negar se relacionarem com homens e amar exclusivamente outras mulheres.

É importante dizer que não enxergamos que haja qualquer referência ou analogia ao ódio empregado contra as nossas, sim a luta pela vida e pela liberdade que elas tiveram. Carregar o triângulo preto invertido é levar conosco nosso respeito imenso pelas mulheres que foram presas, torturadas e mortas por amarem e lutarem por outras mulheres.

Somos orgulhosas por sermos lésbicas.

Lábrys: símbolo de força e proteção, é um machado de dupla lâmina que possuiu diversas histórias em torno dele. Algumas dizem ter sido uma das armas utilizadas pelas guerreiras amazonas, e outras que esse era um símbolo das sociedades matriarcais.

O que é pontuado em rodas de conversa promovidas por organizações lésbicas é que a labrys foi agregada à bandeira por seus dois lados iguais, o que remete ao relacionamento entre mulheres, que têm em comum o mesmo sexo.

A lábrys é hoje um dos símbolos lésbicos mais conhecidos do mundo.

Remete a visibilidade lésbica.

Cor roxa: A escritora e teórica Betty Friedan, em um discurso em 1969 para a National Organization for Women — Organização Nacional para as Mulheres (NOW), a qual fundou, chamou as integrantes lésbicas da organização de “lavender menace” (“ameaça lavanda”), afirmando que elas manchavam a reputação do grupo, afastavam outras mulheres e desviavam a atenção de pautas mais importantes na luta pela libertação das mulheres. Com essa situação, as feministas lésbicas decidiram fundar seus próprios grupos e levantar a independência lésbica como forma de marcar nossas demandas específicas na luta pela emancipação das mulheres.

Dentre os grupos que nasceram desse rompimento está o que se denominou Lavender Menace (Ameaça Lavanda), que em 1970 interrompeu o Second Congress to Unite Women — Segundo Congresso para Unir Mulheres (organizado pela NOW) apagando as luzes do local, tomando os microfones e distribuindo o manifesto The Woman-Identified Woman (em português, A mulher que se identifica com a mulher).

Tal manifesto é considerado um marco do feminismo lésbico e do lesbofeminismo ao afirmar, entre outras coisas, que as lésbicas estavam na vanguarda da luta pela libertação das mulheres.

A flor lavanda e a cor roxa possuem um simbolismo antigo com as mulheres lésbicas, que dizem eram trocadas em buquês entre amantes lésbicas como prova de paixão e fidelidade.

Tentam apagar os nossos símbolos para fazer desaparecer nossa história

Se considerarmos que antes de tudo a bandeira é um símbolo coletivo, que ela representa pessoas que se identificam por terem em comum uma comunidade, uma ideologia, e, no caso em questão, uma orientação sexual, já cai por terra qualquer possibilidade de que as bandeiras criadas por esses sites, blogs ou essas redes sociais sejam capazes de representar as lésbicas em suas pluralidades.

Uma bandeira lésbica, portanto, deve transmitir orgulho, visibilidade e honra pela nossa história, já que, diferentemente do que vemos ser difundido nas mais diversas plataformas midiáticas, o L não está lutando apenas pelo direito de amar, afinal somos mulheres, somos oprimidas, perseguidas, violentadas, silenciadas e mortas diariamente, a nossa luta é contra a lesbofobia e o lesbo-ódio. A nossa luta é para sermos plenamente vistas e visíveis, respeitadas e contempladas por políticas públicas, livres para estarmos em sociedade sem temores.

É bem significativo perceber que a história de luta das lésbicas é completamente esvaziada de sentido quando associada a essas listras rosas, branco e laranja, sendo transformada em meras frases de efeito que podem ser reproduzidas e cooptadas por qualquer um. Para mim é um equívoco ignorar a trajetória das lésbicas e a nossa linha histórica, e por isso reivindico a bandeira roxa, com triângulo preto invertido e uma lábris no centro como sendo a nossa bandeira.

A nossa história é passada de geração para geração, de uma mulher que esteve presente, que participou de um levante, que chamou uma reunião, que passou horas em um processo de criação coletiva para outra mulher; ou seja, nós somos as guardiãs do que significa cada um dos nossos signos e lutas.

Foto Carol França na 18ª Caminhada das Lésbicas e Bissexuais de BH

Há muito se tenta apagar as lésbicas, seja pela culpa, pelas chantagens, manipulações ou por atribuírem a nós privilégios que nunca nos pertenceram.

Lutamos para manter vivas e visíveis todas aquelas que se organizaram em coletivas, que romperam com o preconceito, que publicaram a revista ChanacomChana, que invadiram o Ferro’s Bar, que construíram as Caminhadas Lésbicas, que se reuniram nos primeiros seminários, que estiveram ativamente em Stonewall, que publicaram os primeiros livros sobre nossas vivências, que usaram suas vozes em manifestos, que foram corpo político de luta e não aceitaram ter nossas pautas silenciadas.

Lésbicas, honrem a nossa história, não permitam que usurpem nossos símbolos e que apaguem a nossa trajetória de luta, não podemos aceitar que sejamos fragmentadas.

As lésbicas sempre foram sinônimo de resistência.

Nossa bandeira não é em tons de rosa.

Não aceitaremos revisionismo histórico.

Nota importante: A Bandeira Lésbica Brasileira

Eu fui da Associação Lésbica de Minas (ALÉM) durante muitos anos da minha vida, construí as primeiras Caminhadas das Lésbicas e Bissexuais de BH (quando se chamavam Caminhada das Lésbicas e Simpatizantes de Minas) e carregamos a bandeira lésbica brasileira em nossos atos e atividades por muitos anos.

Ela foi confeccionada em 2003 em Porto Alegre/Rio Grande do Sul, no III Fórum Social Mundial, quando as lésbicas presentes pintaram juntas em uma bandeira arco íris (a bandeira do movimento LGBT) os símbolos relacionados ao movimento das lésbicas: dois espelhos de vênus entrelaçados (espelho de vênus é o símbolo da mulhere e ele em duplicidade simboliza a relação/encontro entre duas mulheres, como acontece entre lésbicas), o triângulo preto invertido (mesmo significado descrito acima), uma lábrys (mesmo significado descrito acima) e as palavras lésbicas (em cima) e lesbianas (embaixo).

A intenção é que essa bandeira fosse utilizada em toda América Latina e por isso tem a palavra lésbica tanto em português quando em espanhol, mas infelizmente a promoção desse símbolo não ocorreu e ficou limitada ao Brasil.

Essa é uma bandeira muito utilizada em eventos promovidos por associações lésbicas e tem sido resgatada pelo movimento independente das lésbicas por possuir uma história de orgulho, resistência e rebeldia lésbica.

Bandeira Lésbica Brasileira

mulheres trocando sangue

nos quartos mais íntimos do momento

temos de provar da nossa fruta

pelo menos uma vez

Audre Lorde

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Celle Fonseca
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Written by Celle Fonseca

Lesbofeminista talhada em batalhas. Eu sempre lutarei pelas mulheres.

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