A palavra da insolência
A rebeldia é o primeiro passo para a liberdade
Texto original de Andrea Franulic, aqui. Tradução de Fêmea Brava
A insolência é pensante, não reacionária. Não consiste em mostrar os peitos, pintar o corpo, colocar bigodes ou gritar o desatualizado “somos más, podemos ser piores”. É, antes, construir um pensamento — expressado em gestos, atitudes, relações e palavras — que radicalize o olhar crítico para questionar o patriarcado a partir de suas bases, sem qualquer concessão ou complacência. É colocar em ação um discurso que se reconhece na história da autonomia política das mulheres e recupera — em um ato sempre novo — suas vozes rebeldes. É colocar em ação os argumentos que surgem de uma experiência corporal que é escutada e percebida como nunca antes. Quando o clichê é abandonado, o lugar comum, a ideia preconceituosa, a imaginação estereotipada, as convenções, os lugares sagrados… a obediência.
Esta insolência é perdida toda vez que entra na academia. O patriarcado e suas colaboradoras mulheres a matam naquele espaço endossado pelo conhecimento legítimo e pela Ciência. Assim, os referenciais teóricos surgidos de um pensamento entre mulheres foram deslocados por machos pós-modernos. O feminismo, em vez de ser uma posição, um ponto de partida, tornou-se objeto de estudo. A teoria feminista foi trocada por estudos de gênero. Estudos de mulheres foram travestidos em estudos da masculinidade. O lesbianismo foi apagado pelos queer. A visão holística da teoria feminista transmutou-se em desmembramento temático. E o feminismo, de um lugar político e criativo, tornou-se um trabalho (Pisano, 1996).
As mulheres deixaram o diálogo com as outras mulheres para buscar a legitimidade do macho acadêmico, pseudolivrepensador. Esta é uma das ações mais autodestrutivas. Nesse gesto, renasce a obsequiosidade, a fala baixinha, o pedido de permissão para dizer. A palavra desapaixonada procura o politicamente correto e não se incomoda, não se abala ou arranha. A palavra sem corpo encontra-se no argumento cool, no raciocínio respaldado, na tese autorizada. A palavra neutra tece uma intertextualidade de séculos: a trama ideológica das mentiras e dos segredos do patriarcado para excluir a nós, mulheres, do contexto do humano e nos aprisionar na feminilidade.
A palavra se enfraquece, e surge distante e moderada na voz de Alejandra Castillo, feminista acadêmica, que desenvolve suas preocupações teóricas sobre o feminismo em uma entrevista em 2012 pelo Conselho Nacional de Cultura e Artes do Governo do Chile. A entrevista é inundada de expressões que atenuam o discurso, temperando-o, escondendo cada ideia com um manto quente para não prejudicar o interlocutor e esperar seu reconhecimento: de alguma forma, de alguma maneira, poderia pensar, poderíamos pensar, digamos que, poderíamos dizer, pode-se pensar, acho que, parece, poderia ser, poderíamos descrever, viria a ser, viria a fazer, deve-se alterar, considera-se necessário, talvez… Utilizando-as várias vezes ao longo do texto.
Mas não são apenas essas expressões de boas maneiras que manifestam uma relação de poder, isso também se reflete nas ideias, tanto no que Castillo afirma quanto no que ela esconde. Então diz que
(…) artistas visuais como Regina Galindo na Guatemala, quando em uma performance escreve em sua perna, com uma faca, a palavra ‘puta’, alguém pode perguntar, bem, a partir de uma política afirmativa de mulheres, qual é o objetivo de Galindo ao escrever na sua perna um insulto que gera uma desvalorização das mulheres no espaço público? (…) é assumir precisamente essa representação subalterna ou desvalorizada das mulheres (…) porém não recorrendo ao lugar incontaminado das mulheres, de pensar as mulheres como boas, santas e protetoras, mas assumindo seus próprios corpos como lugar de registro do patriarcado.
A academia, instituição masculinista, abre suas portas para discursos como este acima, porque eles são funcionais. A citação anterior não foge à lógica dicotômica, que projeta as mulheres no espaço reprimido da feminilidade, onde encarnamos a prostituta ou a santa. Pior ainda é chamar de transgressora uma ação como a de se escrever puta com uma faca na perna, o que perpetua a misoginia, a autodestruição, o (sado) masoquismo. Séculos disto. Eles tentam fazer uma política feminista com as mesmas ferramentas que o mestre, como Audre Lorde disse certa vez. E é por isso que o mestre deixa passar esses discursos em sua casa, porque reforçam sua palavra, sua lei, sua ideologia e sua lógica de pensamento. Reforçam o ódio contra mulheres e, em contrapartida, a legitimidade dos homens. Castillo ignora o quanto a misoginia está inscrita em nossos corpos, que defende intensificá-la? Ignora quantas vezes, na verdade, o canivete masculino atravessou nossos corpos?
Para realizar essa façanha, é necessário apagar um terceiro ponto de vista que escapa à dicotomia puta/ santa. Esta terceira perspectiva é a de um feminismo pensante e rebelde, que propõe nos curarmos da misoginia, não através de uma exaltação das virtudes femininas e sua pureza, mas através do livre exercício da capacidade de pensar e se expressar (Pisano). E isso não deve ser lido como uma fragmentação — novamente contaminada por preconceitos patriarcais — entre corpo e mente. Pelo contrário, só podemos pensar livremente com o corpo. O preço que as mulheres — alegremente — pagaram para chegar à academia foi o sepultamento do feminismo radical da diferença. Esse foi o custo que o mestre exigiu.
A corrente radical da diferença rejeita o acesso aos espaços patriarcais de poder, recusa-se a endossar uma cultura desumanizada; cospe, como Carla Lonzi, contra todo o referente masculino. Em suma, declara fracassada a civilização (Lonzi, Pisano). Por outro lado, Castillo coloca a ênfase em uma performance como a descrita acima e, em completa coerência e sintonia com ela, sugere a instalação não elitista de mulheres em espaços governamentais:
(…) a questão é que outras políticas produzir?, uma resposta é a política de cotas, fazer com que os partidos políticos incorporem uma porcentagem obrigatória da participação das mulheres, e não mais corrijam a partir de cima, mas corrijam a partir dos próprios partidos e de lá desorganizem a ordem da representação masculina nos partidos políticos…
As boas maneiras são refletidas nas palavras dessa feminista acadêmica. A autora, do ponto de vista essencialista, declara que, pela mera presença de mulheres, corpos femininos sexuados, a ordem de representação pode ser desorganizada. E que discursos essas mulheres constroem, que projetos políticos estão por trás delas, que propostas filosóficas e, principalmente, com que história elas acessam esses espaços patriarcais, os mesmos que sistematicamente nos deixaram sem história?
O panorama atual do feminismo oscila entre um fazer reativo, um ativismo vazio de conteúdo e essas teorizações acadêmicas, que se movem entre gênero, performance e argumentos pós-modernos. O feminismo precisa de teoria, genealogia, história, mas não destes discursos requentados. Para nós, no Movimiento Rebelde del Afuera, a teoria, a produção de conhecimento, a escrita da história, a elaboração de ideias, a articulação de um discurso consistente, constituem um fazer político válido. Confiamos na ação da palavra, mas na palavra insolente; essa que não pede permissão ao sistema masculinista para pensar. Nossas palavras têm que ecoar as palavras rebeldes das mulheres pensantes.