A questão do feminismo socialista
Tradução do VI capítulo de “Reading between the lines–A Lesbian Feminist Critique of Feminist Accounts of Sexuality” (1991), de Denise Thompson.
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Tradução: Amanda M.
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I Classe e ‘autonomia’ ou separatismo?
EU PUS À PARTE o feminismo socialista¹ como uma categoria especial, não porque o considerasse absolutamente diferente do resto do feminismo, mas porque ele se define como diferente. Em particular, define-se como diferente de uma marca de feminismo que rotula de várias maneiras ‘Feminismo radical’, ‘feminismo cultural’, ‘separatismo lésbico’ ou ‘movimento anti-pornografia’. (Mitchell, 1971: 87–96; Eisenstein, ed., 1979: 6; Coote e Campbell, 1982: 26– 33; Barrett, 1980: 4; Snitow et al., Eds., 1983: 29–30; Eisenstein, 1984: xx; Segal, 1987: 44e passim) Hester Eisenstein caracterizou essa diferença da seguinte forma:
“o feminismo radical… sustenta que a opressão de gênero é a forma mais antiga e profunda de exploração, que antecede e subjaz a todas as outras formas, incluindo as de raça e classe [econômica]; o feminismo socialista (…) argumenta que classe, raça e opressão de gênero interagem de maneira complexa, que a opressão de classe deriva do capitalismo e que o capitalismo deve ser eliminado para que as mulheres sejam libertadas.” (Eisenstein, 1984: xix — xx)
Coote e Campbell argumentaram que cada uma das duas posições teve desde o início ‘Preocupações diferentes, diferentes abordagens analíticas e diferentes prioridades estratégicas’. Elas declararam que “a diferença entre os dois parecia cada vez maior e intransponível”, embora, ao mesmo tempo, reconheçam que, em relação a uma compreensão das forças que perpetuam a subordinação feminina, “a maioria em ambos os lados mantêm posições semelhantes”. O feminismo radical envolveu a designação das mulheres como uma classe [sexual] oprimida e a formulação da “linha pró-mulher”, disseram elas. (Coote e Campbell,1982: 27–ênfase delas) Feministas socialistas, por outro lado, disseram:
“estavam convencidas da importância de entender as forças econômicas e da análise de Marx do conflito de classes (…) na visão delas, os homens oprimem as mulheres não em virtude de sua masculinidade biológica, mas em virtude de suas relações sociais e econômicas com mulheres (…) A luta para acabar com a subordinação feminina está (…) inextricavelmente ligada à luta de classes e não pode ser levantada acima dela–porque o próprio capitalismo não se baseia apenas no patriarcado, mas mudou a sua forma.” (pp. 32–3)
Classe
Mas a questão não é tão clara quanto isso. Em primeiro lugar, o feminismo socialista é vago sobre a questão das mulheres e de classe. Existe um desacordo geral com o conceito feminista radical de “classe sexual”. Margaret Page, por exemplo, objetivou ao termo porque o conceito de “classe sexual” “permanece dentro do quadro de reducionismo biológico (…) com base na crença de que as diferenças sexuais são biológicas e, portanto, imutáveis”. (Página, 1978: 36), mas esta acusação de “reducionismo biológico”, embora seja endêmica no discurso feminista socialista, deturpa o projeto feminista radical (como eu argumento bastante no próximo capítulo).
Além disso, um compromisso feminista dificilmente pode ser um vazio reconhecimento que os homens oprimem mulheres (e não apenas ‘capitalismo’ ou ‘instituições patriarcais’). Mas os homens não são opressores como entidades “biológicas”, mas como participantes de dentro e beneficiários de relações sociais supremacistas masculinas e na medida em que afirmam a importância excessiva de sua masculinidade às custas das mulheres e lutam para manter o privilégio masculino.
Mas o feminismo socialista não foi capaz de nos fornecer uma análise da relevância da classe econômica à opressão das mulheres. No geral, tende apenas a apostrofar o ‘Mulher da classe trabalhadora’ como a personificação de pelo menos dois dos três grandes eixos de opressão (e se ela não é anglo-americana, ela apresenta um exemplo ainda melhor): ‘A situação das mulheres da classe trabalhadora são as mais subversivas ao capitalismo, porque abrangem a produção e reprodução, exploração de classe e opressão sexual’ (Rowbotham, 1973b: 124). Beatrix Campbell resume isso em uma frase apropriada: ‘o assunto mais cobiçado e esquivo da luta [feminista] socialista, a mulher da classe trabalhadora’ (Campbell, 1983: 160). O feminismo socialista, no entanto, não foi capaz de ir além de tais floreios retóricos.
Houve várias tentativas feministas socialistas de teorizar mulheres e classe. Nenhuma dessas tentativas conseguiu explicar a opressão das mulheres em termos de classe ou em termos de relação das mulheres com o capital. Esse fracasso não é surpreendente, uma vez que a opressão das mulheres só pode ser adequadamente explicada em termos de supremacia masculina. O que enfraquece tentativas feministas socialistas de explicar a subordinação das mulheres é sua relutância em reconhecer a importância central para a luta feminista o reconhecimento da dominação masculina como o principal inimigo. E é isso, em vez de confiar na ‘classe’ (econômica) como um dispositivo explicativo para explicar a opressão das mulheres, que marca o feminismo socialista fora do feminismo radical.
Poucas feministas socialistas, se houver alguma, argumentam explicitamente a favor da “classe” como o único fator determinante na opressão das mulheres. Angela Weir e Elizabeth Wilson, no entanto, chegam perto. (Weir e Wilson, 1984) Elas fazem vários gestos simbólicos para indiciar ‘poder masculino’. A certa altura, afirmam que: “a subordinação das mulheres no século XX (…) resultou da complexa interação das relações capitalistas de produção com instituições de poder masculino” (p. 79). E elas criticam pelo menos uma posição com a qual discordam–aquela que elas chamam de “teoria do discurso”, como exemplificado pela posição adotada pela revista m/f e alguns escritos de Rosalind Coward–com o argumento de que ela não explica o fato que “em todos esses diferentes discursos são os homens que têm o poder” (p. 84). No entanto, é a “Classe” que é priorizada em sua análise: “as melhores condições de mudança para as mulheres estão em desafiar o capital e em campanhas de massa para um governo socialista (…) essas mudanças só podem ser conquistadas através da luta de classes” (pp. 102–3).
O argumento delas não tenta explicar a opressão das mulheres em termos de “classe”, ou seja, elas não afirmam que é a posição de classe das mulheres que é responsável pela opressão das mulheres. Mas reivindicar uma mobilização feminista “no interesse da classe trabalhadora como um todo” (p. 103), certamente implica que ‘classe’ é o fator determinante na subordinação das mulheres. Pois se ‘classe’ não é o principal inimigo, então seu grito de guerra nada mais é do que um apelo para que as feministas direcionem suas energias em lutas que não são do melhor interesse das mulheres.
A discussão de Michèle Barrett sobre o que ela chama de “gênero” e classe também não funciona. Ela afirma, um tanto hesitante, que “a relação entre classe e gênero” é “complexa”, mas essa é uma maneira útil de se colocar (…) seria argumentar que (…) as mulheres têm uma dupla relação com a estrutura de classes”. Essa dualidade é a que ela caracteriza como “uma relação direta de exploração do capital na medida em que a maioria das mulheres são assalariadas e na medida em que muitas mulheres dependem do salário mediado de um ganha-pão masculino”. (Barrett, 1980: 151) Mas sua tentativa de vincular essas duas formas de exploração prejudica seus próprios esforços em demonstrar a relevância de uma análise de classe para a opressão das mulheres.
Ela reconhece que mesmo a “exploração direta do capital” das mulheres como trabalhadoras assalariadas difere sistematicamente dos homens–”As mulheres ocupam empregos com salários mais baixos, mais inseguros, com menor probabilidade de promoção do que os homens … e concentram-se em particular, geralmente em indústrias mal pagas” (p. 156). Ela também reconhece que essa “exploração direta” de mulheres depende da relação “indireta” das mulheres com o capital, através da “estrutura familiar (…) a ideologia da responsabilidade doméstica (…) [e em particular] sua responsabilidade pelo cuidado das crianças” (p. 157). Ela também diz que o atual sistema de arranjo familiar para a reprodução da força de trabalho “não é necessariamente” o mais benéfico para o capital (p. 221). Portanto, se ‘a família’ é ‘o local central da opressão das mulheres na sociedade contemporânea’ (p. 214), mas ‘a família’ não é necessária para o capital, nem a opressão das mulheres. Até a exploração das mulheres na força de trabalho, na medida em que difere da exploração homens, não é necessária para o processo de acumulação de capital, uma vez que a exploração do trabalho feminino é mediado e determinado pela ‘família’, e o capitalismo não precisa ‘da família”, como está organizada atualmente. Não decorre daí que, portanto, as mulheres possam ser libertadas sob o capitalismo (e Barrett não chega a essa conclusão). Segue, no entanto, que a tentativa de Barrett de enquadrar as mulheres em uma análise de classe e argumentar pela classe como um fator determinante na opressão das mulheres não é bem-sucedida porque, para ela, o local principal da opressão das mulheres é “a família”, não a classe econômica.
Ela não se ajuda ao insistir que “alguns capitalistas são do sexo feminino” (p. 132). Ela prontamente mina essa afirmação também pelas evidências que apresenta para suportá-la. Ela cita Hilary Wainwright no sentido de que “as mulheres têm uma participação quase igual na propriedade da riqueza: elas possuíam cerca de 40% de toda a riqueza privada em 1970” (p. 133). (Barrett não diz se esses “40%” se aplicavam à Grã-Bretanha ou ao mundo inteiro, mas eu diria que se aplicava apenas à Grã-Bretanha). A própria Wainwright parecia acreditar que esse número implicava algum tipo de equidade entre os sexos em possuir capital. Ela disse que “há pouco a dizer sobre as desigualdades sexuais no que diz respeito à propriedade do capital” (ibid.). Mas seus comentários adicionais deixam claro que a propriedade das mulheres não significava controle para as mulheres, já que essa “propriedade” era “principalmente por razões de impostos e herança” e era “propriedade da família, investida pelo marido” (ibid.). Portanto, esses maridos arranjaram as coisas para que suas esposas não pudessem se assustar com o saque. Então, essa suposta “propriedade” feminina do capital não é realmente propriedade de todo, uma vez que a riqueza provavelmente não estará à livre disposição das mulheres.
Anne Phillips nos fornece uma forma diferente de evasão do problema da supremacia masculina em favor da “classe”. Sua preocupação é não dar uma explicação causal da implicação de classe na opressão das mulheres. Mas ela dedica atenção exclusiva à questão de que “pode haver diferenças entre as mulheres’. (Phillips, 1987: 22) Agora, é importante ressaltar, sempre que for relevante, que nem todas as mulheres são igualmente oprimidas ou oprimidas da mesma maneira (na medida em que não são). Mas dedicar atenção exclusiva a esse projeto às custas das maneiras pelas quais a realidade falocrática privilegia homens e prejudica mulheres, onde quer que estejam situadas em relação aos homens, é desconhecer e deturpar a causa feminista. Obviamente, se é o caso das diferenças entre as mulheres que estão na raiz da subordinação das mulheres, em vez de “diferenças” (ou seja, dominação) entre mulheres e homens, então dar prioridade à elucidação das diferenças entre as mulheres seria a principal tarefa feminista. Mas isso não foi demonstrado por Phillips. E se concentrar nas diferenças entre as mulheres para a exclusão da dominação masculina obscurece o ponto principal.
A questão da classe também é central para os debates do “patriarcado capitalista”, dos “sistemas duais” (por exemplo, Eisenstein, ed., 1979; Sargent, ed., 1981). Mas nenhuma discussão que encontrei até agora fornece uma análise adequada em termos feministas. A “opressão das mulheres” é reduzida apenas a outro aspecto da exploração capitalista, com o capitalismo expandido para incluir o ‘trabalho das mulheres’ mal remunerado na força de trabalho e não-remunerado na esfera doméstica; ou a dominação masculina é confinada à “família” (por exemplo, Delphy, 1977 [1970]), em vez de ser percebido como algo que permeia toda a ordem social.
O feminismo socialista ainda não conseguiu demonstrar a natureza complexa das interações “entre as opressões de sexo e classe” (para não mencionar raça). Sua principal tentativa para preencher essa lacuna na teoria marxista, no que foi chamado de ‘debate do trabalho doméstico’, terminou em desordem. Não foi possível demonstrar inequivocamente que o trabalho doméstico não remunerado das mulheres era uma exigência das necessidades do capital. Este resultado não é surpreendente, dado que o próprio Marx definia a esfera doméstica como “fora do processo de produção”, no campo da “Natureza” e, portanto, não é um objeto de interesse apropriado para uma “ciência” cujo campo da investigação era histórica: “a manutenção e a reprodução da classe trabalhadora continuam sendo um condição necessária para a reprodução do capital. Mas o capitalista pode deixar com segurança os esforços do trabalhador por auto-preservação e propagação”, disse Marx. (Marx, 1976 [1867]: 718)
Não que Marx tivesse aversão a escrever a história a partir das “bases naturais” da vida de “indivíduos humanos”. Mas ele não estava preocupado com a ‘natureza física real do homem’, ou seja, ‘natureza do homem’, mas com a natureza como outro, ou seja, ‘o resto da natureza’. (Marx e Engels, 1970 [1845–6]: 42) ‘Homens’ (sexo específico) transformaram ‘o resto da natureza’ através da história, modificando e trabalhando na “natureza” para produzir os meios de subsistência e, ao fazê-lo, transformaram a si próprios. Mas o sexo e a reprodução eram a ‘natureza’ própria do homem (genérico) e, portanto, não eram objetos de preocupação apropriados para uma análise que começou com o homem trabalhador.
O debate do trabalho doméstico serviu ao propósito de focalizar a atenção na importância do trabalho não-remunerado das mulheres em casa. Seu fracasso estava na tentativa de ajustar esse aspecto da opressão das mulheres em uma estrutura marxista. Portanto, sobre a questão da direta relevância da teoria marxista para uma análise da opressão das mulheres, o feminismo socialista não é muito distante do feminismo radical, por mais que as feministas socialistas gostem de manter as opções abertas.
‘Autonomia’ ou Separatismo?
Outra questão que rompe quaisquer distinções duras e rápidas entre o feminismo socialista e o feminismo radical é a questão da autonomia. Por um lado, como o feminismo radical, o feminismo socialista está comprometido em manter a autonomia do movimento das mulheres e em dar prioridade à opressão específica das mulheres. Como Rosalind Coward colocou, a tarefa feminista é “promover a opressão das mulheres em sua especificidade, reconhecendo que isso não será resolvido por mudanças nas relações econômicas da produção”. (Coward, 1978: 95) E Coote e Campbell disseram: “Nós precisamos de um movimento feminista autônomo agora assim como em 1970” (p. 236).
Por outro lado, o feminismo socialista está comprometido com o socialismo como a luta ampla para superar todas as formas de opressão, geralmente caracterizadas como “‘gênero’, raça e classe”: o feminismo socialista se enraizou cada vez mais como uma tendência que enfatiza a necessidade de integrar um entendimento de raça e classe em uma análise feminista mais complexa [que a do feminismo radical]. (Snitow et al., Eds., 1983: Introdução, p. 27) Juliet Mitchell até chegou ao ponto de dar ao socialismo um monopólio explícito da derrubada da opressão: “grupos oprimidos”, disse ela, “trabalhadores, mulheres, colonizados–podem ter suas consciências oprimidas, mas a ideologia que eles propagam deve ser a dominante na sociedade que os oprime (ideologia burguesa) ou a que eles conscientemente adotaram para a sociedade que derrubará isso (ideologia socialista)”. (Mitchell, 1971: 96) Sheila Rowbotham não era tão explícita, mas a implicação estava lá: “Recorte de classe e raça através da opressão sexual. Um movimento feminista que se limita à opressão específica das mulheres não pode, isoladamente, acabar com a exploração e o imperialismo”. (Rowbotham, 1973b: 123– 4)
O feminismo socialista está preso em um dilema entre a necessidade de reconhecer a autonomia de um movimento de mulheres que lida com a especificidade da opressão das mulheres e um compromisso com o socialismo como um movimento revolucionário combinado que luta para acabar com todas as formas de opressão. Esse dilema levou a uma tendência angustiante de se definir como uma política de “vanguarda” do feminismo por acreditar que apenas o socialismo pode liderar o caminho frente a revolução. Juliet Mitchell:
“Se simplesmente desenvolvermos a consciência feminista (como sugerem feministas radicais), obteremos não a consciência política, mas (…) simplesmente um olhar autodirecionado, que vê apenas o funcionamento interno de um segmento; somente o interesse próprio desse segmento. A consciência política responde a todas as formas de opressão.” (Mitchell, 1971: 93–4)
Michèle Barrett:
“A razão pela qual o feminismo radical foi insatisfatório residia em seu fracasso em fornecer uma análise adequada da opressão que denunciamos com tanta certeza e seu silêncio paralelo sobre uma estratégia política adequada para a mudança. Ao posar para a opressão das mulheres simplesmente como efeito da dominação masculina, ele se recusa a levar em conta as estruturas e as experiências amplamente diferentes dessa opressão em diferentes sociedades, períodos da história e classes sociais.” (Barrett, 1980: 4)
Margaret Page:
“A viabilidade da tendência feminista socialista reside no reconhecimento da necessidade de uma análise que possa mover o WLM além da alternativa estéril da guerra de classes ou da guerra dos sexos como áreas primárias da luta revolucionária. Encontra-se ainda em aceitar a responsabilidade de iniciar os debates necessários e criar as estruturas organizacionais.” (Página, 1978: 42)
E Sheila Rowbotham:
“Parece-me que a libertação cultural e econômica das mulheres é inseparável da criação de uma sociedade na qual todos as pessoas não têm mais suas vidas roubadas e nas quais as condições de sua produção e reprodução não serão distorcidas ou retidas pela subordinação de sexo, raça e classe.” (Rowbotham, 1973b: xvi)
E assim dizemos todas nós. Mas concordar com esta última afirmação de Rowbotham não é concordar que o “socialismo científico” (como Mitchell chamou) é o veículo apropriado para teorizar e combater a opressão das mulheres (ou a opressão racial, nesse tópico), ou pelo menos não em qualquer versão que apareceu até agora. Insistir que o marxismo está particularmente preparado para liderar todos nós no caminho da revolução é ignorar a crise atual (e de longa data) do próprio marxismo.
Não é de forma alguma uma estrutura testada e confiável, cuja eficácia foi provada uma e outra vez na luta contra a exploração. Pelo contrário, apesar das restrições de Marx contra a futilidade do “pensamento puro”, suas batalhas foram travadas com mais frequência nos bosques de academias do que nas barricadas ou no chão de fábrica. Nem a Rússia Soviética, China ou Cuba comunistas são exemplos brilhantes de socialismo na prática, embora os povos desses países estão melhor agora do que nos regimes anteriores. A riqueza produzida pelo trabalho humano continua mundialmente concentrada nas mãos de poucos às custas de muitos, embora o lócus das formas mais extremas de exploração tenha mudado geograficamente para os povos do “Terceiro Mundo”. No Ocidente, o capitalismo tem magnanimamente, embora não benevolentemente, fornecido mais guloseimas para mais pessoas, incluindo sistemas de bem-estar social (embora o processo de desmembramento tenha começado). Mas nos países ocidentais contêm enormes minorias de pessoas privadas do mínimo necessário para a manutenção da dignidade humana, que não tem nenhuma relação com os meios de produção porque o capital não requer sua força de trabalho. Nas instituições da dominação capitalista, o marxismo fez poucas, se alguma, incursões. Disputas secretas nas instituições de ensino superior tem pouco ou nenhum efeito de melhoria nas relações sociais de poder. O Marxismo dificilmente se qualifica como o exemplo do caminho correto para a revolução. Não pode nem resgatar suas donzelas em perigo, quem dirá as de outras pessoas.
Embora seja verdade que a libertação das mulheres não seja alcançável enquanto permanecerem distinções hierárquicas e desagradáveis entre categorias de seres humanos (porque as categorias também contêm mulheres), isso não é dizer que apenas o socialismo pode superar essas distinções. Surgem problemas para o feminismo porque as mulheres participam de todas as categorias, incluindo as privilegiadas. Mas na medida em que a heterogeneidade feminina dá origem a problemas, esses problemas não são resolvidos recorrendo a uma estrutura que não permite espaço para especificidade feminina, porque continua a universalizar o homem como norma “humana”. Nem são resolvidos insistindo que o feminismo dê prioridade a causas que não dão prioridade para as mulheres.
Embora não se possa negar que questões de paz mundial, ecologia, exploração econômica, ódio racial e violência são tão relevantes para as mulheres quanto para os homens, o feminismo não pode fazer mais do que manter um breve olhar sobre elas para garantir que os interesses das mulheres não sejam enterrados em uma confusão de briga de galo entre homens.² Como Julia Penelope apontou, existem feministas (a quem ela chama de ‘feministas neo-humanistas’)³, que aceitaram como válida a premissa de que o feminismo, para ser uma ideologia política viável, deve ter, como prioridade, as lutas para acabar com o ‘racismo, classismo, imperialismo, fome, pobreza, proliferação nuclear, poluição, anti-semitismo e crueldade com os animais’. (Penelope, 1986 II: 27) Ela reconhece que “não existe um único problema que não afete ‘lésbicas / separatistas / feministas Radicais”, mas ressalta que:
“aceitar a afirmação de que a “credibilidade” política exige um compromisso simultâneo (e igual?) com todas as questões políticas de nossos tempos não é viável ou realista … não temos tempo ou energia suficiente para participar de todos os grupos, ir a todas as reuniões ou demonstrações, e ainda cuidar de nosso próprio bem-estar e necessidades. (Op. Cit., P. 28–ênfase dela)
O que me leva à questão da oposição inflexível do feminismo socialista ao separatismo, apesar de sua própria insistência na necessidade de um movimento autônomo de mulheres, e sua firme crítica ao fracasso do marxismo tradicional em lidar adequadamente com as questões criadas pelo feminismo (neste último ponto, ver especialmente: Coward, 1978; Rowbotham, Segal e Wainwright, 1979; Coward, 1983: 130–87). Enquanto separatismo, de acordo com o feminismo socialista, tem o efeito de isolar o movimento das mulheres da luta política “mais ampla” e das lutas de outros grupos oprimidos, o feminismo socialista não dá conta de como “autonomia” difere do separatismo. Afinal, ambos envolvem colocar a opressão das mulheres no centro do projeto feminista. Quando esse projeto entra em conflito com os princípios marxistas, como, por exemplo, na questão da classe ou no trabalho doméstico das mulheres, é o Marxismo que está sendo abandonado, geralmente sem reconhecimento explícito, não o feminismo. Suspeito, no entanto, que enquanto ‘autonomia’ e separatismo se tratem da questão sobre a opressão das mulheres, o separatismo é explícito na identificação da supremacia masculina como o principal inimigo. E é o equívoco do feminismo socialista nessa última questão que está por trás de seu antagonismo ao separatismo e ao feminismo radical.
Anna Coote e Beatrix Campbell argumentam que o feminismo radical não implica necessariamente separatismo. Elas sugerem que existem duas respostas possíveis que se seguem do argumento feminista radical de que “a luta pela libertação das mulheres é principalmente contra os homens” em oposição ao que elas chamam de “estratégia política mais ampla” (que elas não definem, mas que é presumivelmente o que elas consideram o domínio do feminismo socialista). A primeira resposta que elas não consideram como separatista, como de fato não é, envolve, de acordo com Coote e Campbell, ‘a luta para destruir a masculinidade como uma construção social e, assim, transformar homens em seres humanos, com intuito de desenvolver um relacionamento harmonioso no qual não exercem poder sobre as mulheres’ (ênfase delas)
Mas essa é uma recomendação estranha sobre o que devem fazer as feministas. Certamente depende dos homens, e não das mulheres, “transformar homens em seres humanos”. Dificilmente é um projeto feminista recomendar que as mulheres se dediquem à tarefa de tentar investigar, manipular, coagir ou mesmo argumentar com os homens para mudá-los. As mulheres têm feito isso há séculos, sem nenhum sinal perceptível de melhoria na maneira como os homens se comportam. Felizmente, é possível que as mudanças que as mulheres estão fazendo terão efeitos benéficos sobre os homens. Mas as energias das mulheres são necessárias para as mulheres. Por muito tempo, as mulheres se concentraram nos homens e nos interesses dos homens. O que o feminismo tem revelado é a necessidade das mulheres focarem a atenção em nós mesmas.
Além disso, a destruição da masculinidade pode ser percebida pelos homens como a destruição de si próprios ou pelo menos de sua característica anatômica mais valiosa. As mulheres podem se recusar a reforçar o ethos masculino e os egos masculinos que isso gera, retirando energia, apoio e despojando-nos da exigência feminina de que as mulheres gostam de homens. Mas não podemos ficar paradas à espera que os homens mudem. Há muito o que fazer entre as mulheres juntas.
A segunda resposta possível é o que as autoras consideram que o separatismo: ‘busca acabar com a necessidade da distinção biológica, estabelecendo modos de viver e se reproduzir totalmente independentes dos homens … insistindo que as mulheres devem viver separadamente dos homens, repudiando não apenas a relação heterossexual, mas também os meninos’. Elas permitem uma terceira possibilidade: ‘Para outras, é necessário um grau de separatismo, mas como estratégia–para tornar a luta pela libertação das mulheres mais eficaz do que como fosse um fim em si mesma’. (Coote e Campbell, 1982: 29)
Ao longo dos anos, surgiram várias declarações afirmando inequivocamente que as mulheres devem se separar dos homens (e meninos–Penelope, 1986 I: 23–4)⁴ como pré-requisito para a revolução feminista. Em primeiro lugar, essa separação dos homens tinha que ser sexual. “Até que todas as mulheres sejam lésbicas, não haverá verdadeira revolução política”, disse Jill Johnston em 1973, (Johnston, 1973: 166), um argumento que foi reiterado em 1981 pela Feministas revolucionárias de Leeds. (Veja o capítulo 2). E há muitas mulheres cuja posição separatista é intransigente e inequívoca. Julia Penelope, por exemplo, prefere identificar-se como “separatista” e “lésbica”, e não como feminista, por causa do que ela vê como “diluição dos valores feministas em um esforço para torná-los menos ameaçadores ao heteropatriarcado”, a “cosmética ideológica do WLM, a fim de atrair as massas das mulheres” (Penelope, 1986 II: 26–ênfase dela), e a traição de lésbicas implicada nesse processo de diluição. Enquanto eu concordo com as críticas de Penelope à diluição de valores feministas, eu discordo da rejeição dela ao feminismo. (Veja também: Hoagland e Penelope, eds., 1988, especialmente Wittig, 1980) Se o feminismo é ou se tornou irrelevante para as lésbicas, a solução é torná-lo relevante, não abandoná-lo.
As colaboradoras da questão separatista da Éticas Lésbicas são unânimes em sua definição do “separatismo” como um repúdio completo de todos os homens, sem exceção. Como uma escritora colocou: ‘Se uma mulher me diz que é separatista lésbica e (…) ela permite uma criança do sexo masculino de uma amiga em sua casa ou convida seu pai para visitar sua mãe, então eu sei que o que ela quer dizer com “separatista lésbica” não é o que eu quero dizer” (p. 10). E outra disse: ‘quer uma rede de quadros, de sapatonas comprometidas com o planejamento e a queda dos homens e, se necessário, sua extinção’ (p. 22). Pode-se argumentar (e de fato tem-se argumentado) que tais posturas não são realistas. Mas o próprio feminismo é “irrealista” na medida em que desafia a realidade falocrática.
Contudo, meu próprio compromisso com o separatismo não é tão intransigente por várias razões. Em primeiro lugar, existem alguns homens que conheço que não posso definir como “inimigos”, embora ao mesmo tempo eu insistiria que nenhum homem pode ser feminista e que todos os homens se beneficiam da dominação masculina, até porque o mundo é criado à sua própria imagem e semelhança.
Em segundo lugar, uma postura separatista absolutista permite pouco espaço para reconhecer que cada uma de nós precisa tomar suas próprias decisões, o que não significa negar que a tomada de decisões é altamente problemática dentro de uma ordem social em que certas “opções” são mais valorizadas, mais recompensadas, ou mais evidentemente “real” do que outras.
Eu concordaria que o feminismo fez muito pouco para validar o lesbianismo e que, às vezes, é totalmente ofensivo para com as lésbicas. Eu concordo também que o feminismo continua preocupado com questões heterossexuais, embora possa ser argumentado que a hegemonia heterossexual contínua requer essa preocupação contínua. Não concordo, no entanto, que feministas heterossexuais sejam parte do problema e que minhas únicas aliadas são outras lésbicas. Meu compromisso é com as mulheres em geral.
O lesbianismo está altamente entre meus critérios de solidariedade política. Mas não é necessário–algumas das mulheres em quem confio são heterossexuais. Tampouco é suficiente–algumas das mulheres de quem desconfio são lésbicas. Outra razão para minha inquietação com o separatismo absolutista diz respeito ao que percebi ser sua tendência ao essencialismo. (Este não é um termo que uso facilmente–veja o capítulo 10). Como exemplo dessa tendência, uso a seguinte declaração:
“Podemos ser facilmente tentadas a diluir nossa consciência separatista lésbica para incluir [outras lésbicas e mulheres heterossexuais] … Essa generosidade de inclusão não apenas prejudica e dilui o separatismo lésbico como ideologia e movimento, mas também mina e insulta a capacidade das lésbicas de escolher o separatismo claramente e distintamente de outras maneiras de ver e ser.” (Éticas Lésbicas, 1988: 20–1)
Apesar do uso da palavra “escolher”, o teor desta afirmação é que uma “separatista” é algo intrinsecamente diferente de outras mulheres, mesmo de outras lésbicas, e que existe uma linha divisória acentuada entre “Separatistas” e outras. Não há apenas uma causa comum, existe conflito total e não há possibilidade de qualquer ponto de encontro. “Separatismo” é algo em uma forma pura e imaculada que pode ser “diluída” e “prejudicada” pelo contato com qualquer outra coisa. Não deve nada a ninguém nem a nada, e não há nada igual no mundo. Não tem precursores, sem conexões, sem aliados, existindo para si, por si e em si mesma. É nesse sentido, e apenas nesse sentido, que uso o termo “essencialista”.
Por outro lado, porque considero o separatismo relevante para todas as mulheres, vejo-o como um continuum de escolhas, em maior ou menor grau, e como necessidade estratégica apenas enquanto a supremacia masculina perdura, embora eu não veja o fim da necessidade de separatismo em meu próprio tempo de vida. Eu prefiro considerar o separatismo dessa maneira porque o vejo como central para o projeto feminista e, portanto, como algo que qualquer feminista participa em virtude de seu compromisso com o feminismo.
Defino separatismo como a prática das mulheres retirarem a sua atenção, energia, interesse e foco dos homens e instituições masculinas, como uma maneira de desalojar os homens do lugar central que eles se apropriaram para si mesmos em nossas vidas, e de desafiar a dominação masculina e os homens que encarnam e sustentam isso. Como Marilyn Frye argumenta, porque a dominação masculina permite que os homens parasitem as mulheres, é essencial negar o acesso dos homens a nós mesmas, se quisermos obter controle sobre nossas próprias vidas (Frye, 1983: 95–109). E como Julia Penelope argumenta, precisamos “nos retirar dos homens, reter deles nossa energia, nossa nutrição e nossa atenção a eles se quisermos nos libertar da dominação masculina”. (Penelope, 1986 II: 45)
O separatismo não é apenas a retirada dos homens, é também a prática de por as mulheres primeiro. Mia Campioni cunhou o termo ‘separatismo conceitual’ para se referir a capacidade de inspiração feminista para “ver as mulheres primeiro” (a frase é de Marilyn Frye). Ela define como “a capacidade de nos tomarmos como a norma independente de nosso pensamento e ser” e a recusa de qualquer aliança política e teórica [ou, acrescentaria, emocional] (…) [que] envolvem uma lealdade a conceitos, categorias, princípios e modos de ação que derivam de uma negação da experiência das mulheres como mulheres. Campioni e Gross, 1983: 136–ênfase no original; e conversas pessoais). O lesbianismo é fundamental para esse projeto porque, como Marilyn Frye argumenta, lésbicas que reconhecem que não temos interesse na “realidade falocrática” são “mulheres-videntes”. Frye diz:
“A perspectiva lésbica prejudica o mecanismo pelo qual a produção e a reprodução constante da heterossexualidade para as mulheres deveriam ser tornadas automáticas … Se a lésbica vê as mulheres, a mulher pode ver a lésbica vendo-a… A mulher, sentindo-se vista, pode aprender que pode ser vista; ela também pode saber que uma mulher pode ver, isto é, pode perceber a autora. Com isso, entra para a mulher a possibilidade lógica de assumir sua autoridade como percebedora e mudar sua própria atenção.” (Frye, 1983: 172)
Este processo de reconhecimento não pode ser unilateral. A fim de valorizar o “ver” da lésbica, a mulher deve valorizar a lésbica, uma forma não insignificante de reconhecimento dentro da falo-realidade em que nem mesmo é possível definir a ‘lésbica’ (como Frye argumenta no último artigo em seu livro), muito menos respeitar sua dignidade e valor humanos. Mas esse reconhecimento feminino da lésbica não é apenas um reconhecimento da lésbica como um “outro”. É também o reconhecimento da lésbica “de dentro”, o reconhecimento de que o lesbianismo não é apenas uma característica ou uma escolha daquelas mulheres legais por aí, mas algo de vital importância para a vida de alguém, embora, no nível sexual, não seja uma realidade no momento presente.
Portanto, embora o lesbianismo esteja no centro do separatismo, embora seja o que dá ao separatismo seu foco característico, significado, guia e padronização, não significa que toda mulher que participa tem que ser lésbica no sentido estritamente sexual. Ninguém é chamada a apresentar suas credenciais, embora eu sugira que um fracasso no compromisso com os principais critério de separatismo, isto é, colocar as mulheres em primeiro lugar, constituiria motivo suficiente para desqualificação. Mas existem muitas feministas heterossexuais cujo compromisso com as mulheres é inequívoco e cujas vidas não se centram em torno dos homens.
Até Julia Penelope reconhece que existem algumas feministas heterossexuais que ‘mostram, uma e outra vez, que seu compromisso com os valores feministas é confiável e consistente’. (Penelope, 1986 II: 45) Ela critica a idéia de que “a questão de dar energia aos homens pode ser reduzida ao sexo”, como se essa fosse a “distinção significativa”, argumentando que isso é uma má interpretação do problema. Ela concorda com Ti-Grace Atkinson que o mais importante é “pelo quê você está disposta a morrer” não “com quem você dorme”. Ao mesmo tempo, ela diz que “frequentemente escolhemos pelo que estamos dispostas a morrer de acordo com quem dormimos”. Como consequência, ela diz, “falando no geral, é mais provável que eu possa confiar em uma lésbica do que em uma feminista heterossexual” (ibid., p. 46–ênfase dela). Ela também diz que a heterossexualidade faz com que “mulheres cooperem em sua própria traição” (p. 50), embora ela não diga se isso por si só exclui as feministas heterossexuais da participação no separatismo.
Parece, à primeira vista, como se fosse necessário. Como uma mulher pode centralizar sua vida em mulheres, inclusive ela, se seu desejo e energia sexual e emocional forem direcionados a um homem (ou homens)? Não sei a resposta para essa pergunta ou mesmo se é o tipo certo de pergunta, porque não é um dilema que eu enfrento. Mas esse tipo de pergunta parece depender de um certo tipo de suposição sobre a natureza da sexualidade. Pressupõe que o sexo é uma força motriz esmagadora que oblitera todos os outros interesses, desejos ou atividades, não somente durante o ato sexual, mas o tempo todo. O sexo falocêntrico e suas instituições tendem a ter esse efeito na vida das mulheres. Mas feministas heterossexuais podem estar cientes dessa tendência também, e fazer suas próprias negociações para lidar com isso. Muitas delas estão cientes do dilema do desejo e atividade heterossexuais para as mulheres. Elas podem também estar cientes da necessidade de afirmar o lesbianismo como prática feminista das mulheres à nossa volta, e prova de que as mulheres podem viver a vida ao máximo sem os homens. Na medida em que as feministas heterossexuais podem reconhecer isso, elas também participam do separatismo, mesmo que continuem lutando e se relacionando com os homens.
Além disso, a questão apresentada parece muito absolutista, como se recusar o acesso a homens fosse uma decisão única. Mas é claro que não é, nem mesmo para aquelas de nós que não sentem que precisam tomar decisões sobre a permissão de acesso sexual masculino. Pois a demanda masculina por acesso para as mulheres é onipresente e não se limita ao sexual, e sempre há a possibilidade de podermos querer permitir que homens acessem (se essa for a terminologia correta), enquanto amigos, colegas, interlocutores ou adversários.
Uma das objeções mais frequentes levantadas por lésbicas às feministas heterossexuais no espaço separatista, centrado na mulher, aberto por lésbicas, é que feministas heterossexuais tiram proveito do ambiente de apoio proporcionado pela separação apenas para alimentar a força e a energia nele obtidas de volta para os relacionamentos com homens. Conquanto algumas lésbicas se sintam ‘usadas’ dessa maneira (embora nunca tenha sido minha experiência), nem sempre é o que acontece. Às vezes, o ambiente favorável de separatismo (na medida em que é favorável, e nem sempre é) pode fornecer às feministas heterossexuais a força para resistir e continuar resistindo, o conhecimento para definir os termos e condições sob as quais elas permitem o acesso dos homens e a coragem de negar o acesso quando tem interesse em fazê-lo.
Uma objeção levantada pelas feministas socialistas contra o separatismo é que envolve alguma forma fugir do mundo real, como é o caso de Anna Coote e Beatrix Campbell, uma recusa em desenvolver “estratégias que permitam às mulheres sobreviver no mundo” (Coote e Campbell , 1982: 224–ênfase delas). Mas acho absurda essa noção de estar ‘fora do mundo’. Em primeiro lugar, mesmo mulheres que se retiraram fisicamente para países remotos, essas áreas ainda estão no mundo — existem vizinhos, prestativos ou antagônicos, fornecedores, sistema legal, intrusos. Mais importante, porém, “o mundo” não é algo que está fora de nós, dos quais podemos sair e deixar para trás.
É possível que tenha havido mulheres que pensaram que poderiam fazer exatamente isso, e no fim descobriram que trouxeram os problemas com elas ou foram confrontadas com novos problemas não menos “mundanos” do que aqueles que deixaram para trás. Além disso, essa ideia de que o separatismo acontece em algum lugar que não seja ‘no mundo’ implica que ‘o mundo’ é somente onde os homens estão e que as mulheres que deixam os homens estão deixando o ‘mundo’.
Enquanto há uma certa quantidade de verdade nisso — os interesses dos homens são realmente oferecidos como [se fossem] os interesses de todos — assumir como dado garantido que “o mundo” é o mundo dos homens, e organizar prioridades políticas feministas para tal, é derrotista na medida em que a prerrogativa supremacista masculina de definir o que conta como “real” e “importante” não é desafiado em sua origem.
Coote e Campbell também consideram o separatismo como “derrotista”, e Michèle Barrett consegue afirmar categoricamente que ‘a estratégia do separatismo… não é uma estratégia, pois nunca poderá mudar as coisas’. (Barrett, 1980: 4) Hester Eisenstein concorda: ‘[por] retirar-se do mundo construído pelos homens, [separatistas] se afastam da luta para mudar o mundo para melhor’. (Eisenstein, 1984: xviii) Se retirar de projetos masculinos e de confronto direto naqueles locais onde a energia reside, pode levar consigo a ameaça de irrelevância. Mas eu não estou convencida de que a mudança sempre ocorra por meio de confronto direto. Apesar de ser uma maneira de lidar com as feministas dispostas e capazes de dirigir suas energias a isso, sempre existe o perigo de cooptação, tokenismo e ‘esgotamento’. Mas aberto a resistência, pode reforçar o status quo, fornecendo a ele um alvo visível para o ataque e o ímpeto para esclarecer seus interesses, propósitos e prioridades com mais precisão. E na medida em que projetos masculinos dependem do apoio das mulheres para sua existência, a retirada desse apoio, longe de ser irrelevante, promete miná-los.
Além disso, se, como o feminismo sempre argumentou, a luta não é apenas contra um mundo dominado por homens, mas também por um ‘novo mundo para mulheres’ (o título de um dos livros de Sheila Rowbotham), então precisamos começar agora, criando um espaço para nós mesmas que seja centrado na mulher, mulher-identificado, criado por e para mulheres, onde os homens não se intrometem (ou, pelo menos, não na maioria das vezes, e não enquanto pudermos evitá-los). Esse espaço precisa ser material e psíquico.
Precisamos de lugares físicos reais onde as mulheres possam estar com outras mulheres e dos quais os homens são excluídos. Mas também precisamos de “espaço” psíquico, uma consciência que descentraliza os homens, que define os homens como irrelevantes, a menos que escolhamos quando, onde e como devem estar, o que lhes nega a importância que arrogam no resto da “sociedade”.
Criar espaço de mulheres, em todos os níveis, é mudar o mundo masculino, porque fornece uma alternativa a ele (por enquanto e enquanto for necessário).
Outra objeção que o feminismo socialista levanta ao separatismo é que ele supostamente atribui todas as virtudes para as mulheres (e todas as imoralidades são deixadas para os homens). Como Sheila Rowbotham colocou: “Um sonho de harmonia pode ser encenado entre as mulheres, porque é assumido que as mulheres foram misteriosamente não corrompidas ao viver no mundo real”. (Rowbotham, 1973b: xii. Veja também: Echols, 1983, 1984; Willis, 1979a; Eisenstein, 1984; Segal, 1987). Mas isso é um deturpação da política separatista. Na minha experiência, a expectativa de duradoura harmonia não é um pré-requisito para o separatismo. Nem é muito sensata. Viver a vida apenas com mulheres é viver com elas e todos os seus espinhos (inclusive os próprios). Dificilmente é realista esperar que seja doçura e luz o tempo todo, embora algumas (todas?) de nós às vezes ficamos chocadas com as profundezas do nosso ser, com quão amargo e angustiante isso pode ser. Mas essas experiências não significaram o fim do separatismo, que continua a crescer e prosperar apesar, ou melhor, por causa de seu abandono pela “má reputação”.
Não há, afinal, nenhum outro lugar para ir, e o alívio que vem com o reconhecimento de que não é necessário continuar batendo a cabeça contra a parede de tijolos da supremacia masculina vale a pena. Além disso, as mulheres são seres humanos totalmente formados, plenos por si, capazes de toda a gama da experiência humana e sem faltar “metades”.
Outra crítica que o feminismo socialista faz contra o separatismo é que é ingênuo e irrealista esperar poder viver sem homens. Sheila Rowbotham:
“O relacionamento do homem com a mulher é como nenhum outro relacionamento de opressor com o oprimido. É muito mais delicado, muito mais complexo. Afinal, muitas vezes os dois se amam. É uma tirania bastante gentil. Estamos subjugadas no exato momento de intimidade. Essa subjugação extática é, portanto, muito diferente da relação entre trabalhador e capitalista. Os trabalhadores podem conceber seu próprio mundo no futuro em que o capitalista não existem mais. Não podemos imaginar nosso mundo em que nenhum homem exista.” (Rowbotham, 1973b: 34–5. Ver também p. 117)
Mas podemos e fazemos, e não apenas imaginamos, mas também vivemos. Não, é claro, em nenhum sentido que nega que os homens existam como entidades físicas reais (ou pessoas). Afinal, mesmo o “trabalhador” (masculino) apostrofado de Rowbotham não insistiria que o “capitalista” deveria deixar de existir como um indivíduo humano real. (Ele iria?). Quanto à “gentileza” da tirania, Sheila Rowbotham deve ser uma mulher muito afortunada de ter escapado de qualquer manifestação de violência masculina. Onde ela esteve esse tempo todo?
Para nós (separatistas), os homens não existem como força motriz em nossas vidas, sexual, emocionalmente, financeiramente, profissionalmente, pessoalmente ou não, se tivermos alguma escolha. Homens estão em liberdade condicional e devem provar serem dignos de nosso respeito, carinho, amizade, amor, em vez de tomar tudo como seu direito garantido dado por Deus. Vivemos muito bem sem homens em um mundo onde, para a maioria dos propósitos, eles não “existem”.
Mas a existência real e concreta (ou inexistência) de homens não é o problema, apesar da boa retórica de declarações como a citada acima sobre a “extinção dos homens” e o slogan “Homens mortos não estupram”. A raiva das mulheres por trás de tais declarações é perfeitamente compreensível, dada a evidência ainda tolerada pela violência masculina maciça contra mulheres (e crianças) e o fracasso da hegemonia falocrática em impedir ou mesmo reconhecê-la. (O último exemplo enfurecedor que encontrei é delineado em Campbell, 1988. Em seu relato do “caso Cleveland”, Beatrix Campbell descreve a campanha da mídia em coro para distorcer, ignorar e banalizar as evidências de estupro anal generalizado de crianças para defender os “pais” — lê-se: “pais”– suspeitos ou acusados de abusar sexualmente de seus filhos).
A questão do feminismo é a luta pela abolição da categoria supremacista masculina de ‘homens’ como os únicos exemplos de status de “humano”, como dominador “natural” das mulheres, como exploradores justificados da terra e seus recursos e de povos impotentes e subjugados em todos os lugares. Separatismo é a única estratégia disponível para conseguir isso, com a retirada do reconhecimento dos homens como monopolistas do status ‘humano’ porque está estampado em seus corpos, e de energia, tempo e esforço de instituições de dominação masculina. A estratégia feminista socialista de ‘autonomia’ não é radical o suficiente porque seu ponto de referência, de que o movimento das mulheres é supostamente “autônomo” em relação à, está confinado à esquerda (masculina) organizada. Mas a esquerda masculina não é, sobretudo, a supremacia masculina. O antagonista do feminismo é a realidade falocrática em geral, não um qualquer segmento pequeno, limitado e relativamente impotente (impotente, isto é, em relação a outras formas de dominação masculina institucionalizada).
A insistência do feminismo socialista no termo “autonomia” não deve nem um pouco a uma continuação, adesão implícita ao conceito althusseriano de “autonomia relativa”. Nesse contexto, esse conceito envolveu uma tentativa teórica de evitar as armadilhas do determinismo. Postulou que o nível de ideologia tinha seu próprio status autônomo em relação à base econômica. Consequentemente, os Aparelhos Ideológicos do Estado (por exemplo, o sistema educacional, a família) poderiam ser contabilizados em seus próprios termos, sem a necessidade de referência ao modo econômico de produção, pelo menos a qualquer momento ante a (não especificada) ‘última instância’. Nesse ponto (e se a “última instância” era histórica, epistemológica, política ou teleológica, Althusser nunca disse), pelo contrário, todas as relações sociais teriam demonstrado ser determinadas pela economia, ou seja, não ‘autônoma’. Portanto, o esquema althusseriano tinha uma incoerência embutida.
A “autonomia” do feminismo socialista carrega a confusão althusseriana sobre o feminismo. Na medida em que o feminismo socialista define o objeto da teoria e prática feministas como ocorrendo no nível da ideologia Althusser, define esse objeto como ‘autônomo’ em relação à base econômica somente até a ‘última instância’. A confusão é agravada na medida em que o feminismo socialista define a “autonomia” de organização política do feminismo apenas em relação à esquerda masculina. Isso implica que a “autonomia” política do feminismo é derivada, provisória e temporária.
Tudo isso não é para negar que questões econômicas não são de vital importância para as mulheres, literalmente é vital no sentido de que questões de acesso e fornecimento de bens e serviços por parte de mulheres, envolvimento e exclusão das mulheres da “riqueza das nações”, são frequentemente questões de vida e morte, e não apenas sobre a qualidade e a duração da vida das mulheres, mas também das crianças e às vezes também dos homens. O fato de ser assim é transmitido de maneira elegante e perspicaz por Marilyn Waring em seu livro, Counting for Nothing. Waring discute o funcionamento dos Sistema de Contas Nacionais das Nações Unidas estadunidense, o sistema contábil que define o que conta como riqueza econômica em todo o mundo e sobre os quais se baseiam os cálculos de Produto Nacional/Doméstico — quem produz e consome o quê e quanto –, crescimento econômico, investimento e fornecimento de “ajuda” a países “em desenvolvimento”. O que Waring demonstra é que as situações econômicas das mulheres não são determinadas por capital ou classe, ou não diretamente, mas pela dominação masculina.
Em todo lugar, as mulheres são excluídas do processo contábil, tanto como produtoras quanto como contribuintes da riqueza e, com consequências frequentemente trágicas, como destinatárias e beneficiárias, a favor dos homens. O Feminismo socialista, com toda a insistência na importância da economia, não conseguiu produzir uma documentação tão impressionante.