A vingança de Medusa
Permita-se enfurecer.
Esse texto levou 8h pra ser produzido, entre leitura, pesquisa e escrita. Me ajude a continuar escrevendo!
Nós minimizamos nossa raiva, chamando-a de frustração, impaciência, exasperação ou irritação, palavras que não transmitem a intrínseca demanda social e pública que a palavra “raiva” transmite. Nós aprendemos a nos conter: nossas vozes, cabelo, roupas, e, mais importante, nossa fala. A raiva geralmente é sobre dizer “não” em um mundo onde mulheres são condicionadas a falar quase qualquer coisa exceto “não”.
— Soraya Chemaly, em “Rage becomes her: the power of women’s anger”
Às vezes me perguntam por que “Furiosa”.
Um dos motivos é minha admiração pela personagem — Furiosa, de Mad Max: Fury Road. Uma personagem brilhantemente interpretada por Charlize Theron cujo objetivo é libertar mulheres de um destino de exploração sexual e reprodutiva, transportando-as — arriscando sua própria vida nesse meio-tempo — para sua terra natal, um mundo idílico e utópico exclusivamente feminino de onde ela e sua mãe foram roubadas.
O outro motivo é pela importância que eu dou ao despertar da fúria feminina.
A contenção da raiva feminina é um dos mais poderosos instrumentos de manutenção da supremacia masculina, e essa contenção se faz eficaz por vários caminhos — principalmente ao se associar fúria, raiva e indignação à masculinidade (e também o contrário — ao se associar passividade, aceitação, complacência, paciência e autossacrifício à feminilidade). Se a raiva está num campo simbólico masculino, o próprio movimento feminista, por diversas vezes, já se viu rejeitando o sentimento de raiva e seus usos políticos por querer justamente se dissociar de qualquer coisa tipicamente masculina.
Porque a raiva, como conhecemos, é, de fato, masculina. É uma raiva que gera violência, destruição, guerra, extermínio. Mas só porque os homens têm feito esse uso — destrutivo — da raiva, isso não significa que tal caos seja de sua essência.
Os pressupostos lógico da raiva são a autoestima, no sentido de que o sujeito sabe e reconhece que tem direito a algo, e a frustração, no sentido de que esse algo a que se tem direito é negado por outra pessoa. E esse “algo” a que se tem direito pode ter comissivo ou omissivo — pode-se ter direito a que se faça algo e, também, a que não se faça algo consigo. Em termos práticos, por exemplo, pode-se ter direito tanto a um tratamento respeitoso quanto a uma vida livre de violência.
Se você não sente que possui um direito, se esse direito for desrespeitado, negado, ultrapassado ou extrapolado, então você não vai se frustrar porque não havia uma expectativa em primeiro lugar.
Quando a mulher sente uma pontinha que seja de raiva — quando ela percebe que não deveria ser tratada como é tratada — significa que ela começa a se reconhecer enquanto sujeito, enquanto ser humano; é prova de que ela encontrou em si algum valor, apesar de ter sido ensinada o contrário.
Então, é claro, essa raiva é reprimida, minimizada, ridicularizada. É tratada como algo sem motivo real. Como algo fútil.
Resgatar a capacidade feminina de sentir raiva deveria ser uma das tarefas do feminismo, porque ensejaria uma revolução interna. Não adianta muito mudar o mundo externo das mulheres sem mudar suas estruturas internas, seu amor próprio: é muito comum que a gente se compadeça por nossas companheiras, amigas, e até mulheres que não conhecemos, mas que não consigamos enxergar nossa própria situação de violência. Nós damos conselhos e instruímos amigas e nos indignamos com aquilo pelo qual elas passam, mas não conseguimos aplicar esses mesmos princípios à nossa própria vida…
Parte disso é porque é realmente difícil se colocar no lugar de vítima, justamente porque a vítima é uma figura violada e aparentemente sem agência, passiva. Outra parte é porque é muito difícil perceber-se violada sem sentir raiva logo em seguida.
Isso explica porque a raiva é tão frequentemente associada ao feminismo e às feministas. “Você não é uma dessas feministas raivosas peludas que odeiam homens, né? Você é diferente”, eles perguntam. “Sim, eu não sou raivosa, e amo homens”, nós respondemos. Precisamos de sua aprovação. Não queremos desencadear rejeição. Mas é impossível — eu acredito piamente que seja impossível tornar-se verdadeiramente feminista sem sentir um pingo de raiva pelos homens, e isso inclui (às vezes, privilegia) aqueles que conhecemos.
Porque somos constantemente estupradas, assassinadas, mutiladas, restringidas, amarradas, apertadas, beliscadas, cobertas, mascaradas, modificadas, esticadas, empurradas, boicotadas, assediadas, erotizadas, desumanizadas, silenciadas, invisibilizadas, exploradas, traficadas — por homens.
Nos é negado o direito à liberdade, ao livre pensamento, à livre expressão, ao crescimento saudável e em seu devido tempo, ao amadurecimento tardio, a uma infância livre de estereótipos, a relacionamentos saudáveis, ao desenvolvimento de nosso pleno potencial humano, a não ter um corpo cujo propósito único é agradar ao olhar masculino, a deixar nossos pelos em paz, a deixar nossas estrias em paz, a deixar nossos seios em paz, a escolher não ser mãe, a escolher não fazer nossas vidas girarem em torno de homens, a amar mulheres, a só sorrir quando realmente queremos sorrir e a reclamar quando queremos reclamar, a dizer não, a dizer sim, a negar acesso a nossos corpos, a querer uma sexualidade ginocentrada e livre de violência, a privilegiar mulheres — direitos que nos são negados por homens e por suas instituições de homens.
É óbvio, é ululante que qualquer mulher que perceba que isso também acontece com ela vai sentir raiva, e ela tem toda razão de sentir. Sentir raiva não é algo ruim: é libertador. Significa que, finalmente, entendemos que temos direito a colocar limites: aqui não. Esse espaço é meu. Não é seu. E eu não tenho que explicar por que você não tem o direito de usurpá-lo. E eu não tenho que ser paciente, fofa, e fazer rodeios para fazer você entender que eu também sou um ser humano. Eu não preciso me preocupar em resguardar sua frágil masculinidade porque estou resguardando algo mais importante: minhas próprias vida e integridade física e emocional.
E nada enfurece mais o patriarcado do que mulheres que reivindicam — bem, qualquer coisa.
Talvez vocês só conheçam uma das versões do mito de Medusa — o de que ela era um monstro, uma górgona, com cabelos feitos de cobra; e que foi eventualmente decapitada por Perseu. Essa talvez seja a versão mais famosa.
Só que, culturalmente, ao menos no ocidente, Medusa sempre foi símbolo da raiva feminina: muitas mulheres associam imediatamente seu nome à ira feminina mesmo sem conhecer qualquer detalhe de seu mito. Não à toa, no século XX diversas autoras e grupos feministas adotaram Medusa como símbolo de sua atuação política.
Mas o que explicaria a associação história de Medusa à raiva feminina — à primeira “vadia”, “histérica”, “cobra” da mitologia ocidental? Por que não outros monstros?
Talvez por conta da outra versão de seu mito: Medusa, na verdade, teria sido uma das mais belas mulheres da Grécia, e teria sido transformada por Atenas num monstro ao qual nenhum homem poderia olhar nunca mais após ter sido estuprada no templo da própria deusa. Sim, é isso mesmo: talvez seja a história ocidental mais antiga de culpabilização da vítima em caso de estupro que conhecemos. Isso naturalmente explicaria sua raiva: uma situação de injustiça. Mas não é interessante justificar sua raiva e apontar o verdadeiro culpado — Zeus, seu estuprador, e genitor de Atenas. Mais fácil tornar Medusa um monstro cheio de raiva. Irracional, histérico. E que acaba decapitado e vencido por um homem, no final.
E punição semelhante é dada a outras mulheres e figuras femininas mitológicas que ousam desafiar figuras masculinas. Até Lillith, a primeira mulher criada por deus, foi banida não só do paraíso como da própria bíblia por ter se recusado a ficar por baixo durante o sexo.
“Mas você não é dessas feministas raivosas, né?”
Na verdade eu sou sim. Eu estou furiosa. Eu sou Furiosa. Eu sou Medusa. Eu não reprimo minha raiva: eu a abraço, eu a aceito, e eu a utilizo para fortalecer a mim mesma e a minhas companheiras.
Essa é minha vingança.