Aborto espontâneo e maternidade compulsória — as ferramentas de culpabilização das mulheres
Tornar um evento natural um tabu dificulta o acesso à informação e pune as mulheres que o sofrem
Aborto espontâneo é um tema pouco abordado por vários motivos. O fato de vivermos em uma sociedade que considera a maternidade o ponto máximo da realização do sexo feminino — e uma obrigação a ser atendida por meio de coerção, abuso e controle reprodutivo — faz do abortamento espontâneo uma ‘‘marca das incapazes’’. Afinal, se a maternidade é um idílio a ser almejado por todas, àquelas que, por causas naturais, não conseguiram levar a gestação até o final, sobra o silêncio e culpa. Mas, enquanto feministas, precisamos estar atentas para as estruturas envolvidas nesse processo de formação do tabu.
É importante lembrar que o abortamento espontâneo pode acontecer por inúmeras causas: desde má-formação do embrião durante a concepção, problemas genéticos, uso de medicamentos durante a gravidez, e até estresse podem levar uma mulher a perder a gestação. Em torno de 60% dos casos, os embriões apresentavam alguma malformação ou alteração genética e foram eliminados naturalmente, o que nos leva a crer que o aborto espontâneo é muitas vezes causado por uma seleção natural do próprio organismo: o embrião que não teria condições de sobreviver fora do útero, é descartado pelo próprio corpo precocemente. Até as 12 primeiras semanas de gravidez, cerca de 30 a 40% dos embriões são abortados naturalmente, muitas vezes até mesmo sem conhecimento da gestante, que pode considerar o abortamento como uma menstruação um pouco fora do comum.
Apesar do componente natural e randômico, o abortamento natural pode ser sentido de diversas formas, variando de mulher para mulher. Como disse acima, existem os casos das mulheres que abortam e não percebem, das que descobrem que estavam grávidas no momento do abortamento, das que sentem uma variação hormonal e uma menstruação atípica, e das que desejavam a gravidez e se decepcionam com sua interrupção. Existem mulheres que sofrem o aborto espontâneo pela metade, em que o descarte do material embrionário não se completa, e têm que recorrer à curetagem para completar o procedimento. Independente da maneira como uma mulher venha experimentar a situação do aborto natural, as questões psicológicas que atravessam o assunto são geralmente mais delicadas e profundas do que o evento físico.
Por que? Um motivo aparente, é o fato do aborto provocado ser proibido no Brasil. Se gestações indesejadas não podem ser interrompidas e são tratadas como crime, o aborto natural, que geralmente acontece durante o mesmo espaço de tempo em que o aborto provocado é recomendado (as primeiras 12 a 14 semanas), se torna mal visto e passível de desconfiança. Mulheres em situação de abortamento natural muitas vezes são assediadas quando procuram os serviços médicos, e sujeitas à violência obstétrica como punição por terem perdido uma gravidez. Algumas são inclusive questionadas por autoridades até poderem comprovar a naturalidade do aborto. Em alguns lugares do mundo, o controle reprodutivo dos corpos femininos é tão acirrado que mulheres são presas por terem sofrido aborto espontâneo, como foi o caso de Teodora Vásquez, em El Salvador, encarcerada por 10 anos por ter perdido uma gravidez. Mesmo sem penalizar o aborto espontâneo, a criminalização da interrupção intencional da gravidez no Brasil ajuda a tornar o aborto espontâneo um evento traumático psicologicamente para mulheres e a permitir tratamento desumano por parte dos médicos e dos serviços de saúde em geral.
Outro motivo é social: o patriarcado, enquanto sistema global, exige que mulheres sejam programadas para gestar. A expectativa da maternidade é compulsória, ou seja, é imposta a todas as mulheres como a grande realização do sexo feminino. Quem não atinge esse objetivo é vista socialmente como “menos mulher”. Nessa lógica, o aborto natural é tratado como uma falha feminina, uma grande perda. Isso ignora o fato de que mulheres podem simplesmente se sentir aliviadas de que uma gestação não se complete, principalmente as que não planejavam ou não desejavam a gravidez de antemão. Essa é uma narrativa a qual não temos acesso, porque assumir esse alívio seria ir contra a expectativa comum de que uma mulher sofra com o aborto espontâneo. É claro que algumas sofrem, mas outras não. Encarrar o abortamento natural como o evento que ele é, natural, ainda é um desafio na nossa sociedade, e para muitas, motivo de culpa. Mas essa culpa tem suas raízes na compulsoriedade da maternidade, e não em uma falha pessoal da mulher.
Dito isso, quero propor um olhar humanizado e desmistificado sobre o aborto espontâneo. Pergunte as mulheres que você conhece que já passaram por isso, como foi a experiência, quais foram os impactos físicos e psicológicos, e aprenda a perceber como as noções de maternidade compulsória podem estar presentes. Naturalizar uma questão natural é a forma mais simples de se encarar um evento comum, e falar sobre o assunto pode ajudar a remover o tabu e compreensões conservadoras. Tudo que acontece no corpo das mulheres é pauta feminista.