Aborto: o direito à escolha

E a libertação de toda mulher

maria eduarda antonino
QG Feminista
11 min readJul 30, 2018

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O aborto é a interrupção da gravidez.

Pode ser (1) espontâneo: é aquele que acontece de forma involuntária a vontade da mulher e pode acontecer por vários fatores biológicos, psicológicos ou sociais que contribuem para que o corpo da mulher não aceite a gestação. Ou (2) induzido: é aquele que acontece de forma voluntária a vontade da mulher que não deseja ser mãe. Existem dois principais métodos seguros do aborto induzido: (a) farmacológico: realizado com o uso do fármaco misoprostol (também conhecido como cytotec) que provoca a expulsão do feto, aplicável até a 12ª semana de gestação. O medicamento pode ser adquirido através de grupos defensores dos direitos das mulheres (Women on Web e Women Help Women)ou no mercado ilegal, varia de 240,00 reais a 1.000 reais[1] e o (b) cirúrgico: é realizado com o uso de anestesia local. Na aspiração manual intra-uterina (AMIU) o médico realiza o processo "vácuo" no útero da gestante para remover o feto. Na curetagem o médico limpará o útero da mulher, através de uma raspagem ou sucção. O aborto cirúrgico custa em média 5 mil reais. Embora seja ilegal no Brasil, mulheres com poderes aquisitivos conseguem realizar o procedimento. O aborto realizado em condições de segurança é mais seguro do que dar à luz.

Ilustração: Osvalter Urbinati/Infografia/Gazeta do Povo

Entretanto, a maioria dos países restringe o acesso ao aborto de alguma forma e, na maioria das vezes, ele é realizado de maneira ilegal. Segundo pesquisa do Pew Reserach Center, 3 em 10 países ao redor do mundo permitem o aborto caso a mulher simplesmente o queira, enquanto 40% dos países permitem o procedimento apenas sob as condições de preservar a saúde física e mental da mãe (no casos de incesto ou estupro), má formação do feto ou por falta de condições socioeconômicas para se criar um filho. No entanto, a extensão destas restrições varia amplamente de país para país. Segundo a ONG Anistia Internacional, em El Savador, a mulher pode ser penalizada inclusive se sofrer um aborto espontâneo. Na contramão, também há países emergentes que já legalizaram a prática, como Cuba e Uruguai. No Brasil, o aborto é altamente restrito e acessível apenas sob algumas circunstâncias: quando a gravidez for resultado de estupro ou se a mulher grávida corre perigo de vida (de acordo com o artigo 128). Até 2012, as mulheres brasileiras grávidas de fetos sem cérebros não tinham permissão para interromper a gravidez. Imaginem quantas mulheres não se sentiram como caixões ambulantes?

Na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD) em 1994, os governos de 179 países concordaram que a escolha sobre a gravidez e sobre o parto é direito básico de todas as mulheres. Sendo o aborto, um direito relacionado a outros direitos humanos já estabelecidos, incluindo o direito à autonomia e a integridade corporal. Negar as mulheres acesso ao aborto é negar-lhes direito ao seu corpo e a sua vida. O feto pertence ao corpo feminino e a mulher — que como qualquer outro indivíduo é cidadã e soberana para decidir o que deve ser feito, qual caminho seguir e deve ter garantido o direito ao direito de escolha. A negação da escolha e o controle sobre sua saúde reprodutiva e sexual reforça as discriminações e violências de gênero dentro das sociedades patriarcais como o Brasil — que já desumanizam a mulher a todo tempo, especialmente, quando a mulher vale mais que um feto.

Globalmente, 41 por cento de todas as gestações não são desejadas. Isso significa que cerca de 85 milhões de mulheres a cada ano experimentará uma gravidez que pode resultar num aborto. Se aquelas que não querem continuar com uma gravidez não são capazes de acessar um aborto seguro e legal, muitas delas provavelmente terão acesso a um aborto inseguro e podem ter complicações graves, podendo, muitas vezes, morrer. A cada ano, estima-se que 22 milhões de abortos inseguros ocorrem resultando na morte de 47 mil mulheres e lesão para mais de 5 milhões de mulheres (OMS). Quase toda morte e lesão como resultado de aborto inseguro é passível de prevenção através da garantia de serviços de aborto seguro[2].

Do ponto de vista bioético, certamente, a maternidade por escolha é mais valiosa que aquela realizada pela imposição social, ou seja, “a maternidade compulsória”. O reconhecimento do início de uma vida humana por aceitação e compromisso é uma atitude moralmente superior à acolhida passiva da gravidez como um acontecimento consumado e irreversível. O aborto é sensível aos conservadores porque os confronta com temas considerados intocáveis, como: o início da vida humana; a propriedade existente sobre os corpos femininos; as expectativas tradicionais sobre o papel feminino na sociedade; o direito da mulher de expressar sua sexualidade; e a escolha das mulheres. Caso a escolha seja pela gestação, durante a gravidez, o corpo da “mãe” vai ser emprestado ao feto — e este empréstimo não lhe dá nenhuma prioridade em relação ao corpo da mulher — que continua pertencendo à mulher e que esta “mulher” nunca se resume a ser mãe.

Não se pode continuar perpetuando desigualdades de gênero disfarçadas em valorações morais sobre a vida/morte. Florescendo "mitos" sobre o aborto que levam a vergonha, o bullying, o assédio e danos físicos e mentais para aquelas que vão realizá-lo. A desigualdade de gênero é uma barreira chave impedindo o acesso a todas as mulheres, independentemente da raça, classe, da idade, etc. ao aborto de alta qualidade, acessível e seguro. E a criminalização dessa prática continua sendo uma resposta racista e classista de um estado seletivo que penaliza, apenas, uma parcela da população — sendo as mulheres negras da classe trabalhadora as mais violentadas.

Mitos e fatos sobre o aborto:

1. “Aborto aumenta a chance de uma mulher desenvolver câncer de mama!” Esta é uma alegação comum feita por aqueles opostos ao aborto. No entanto, não há nenhuma evidência médica que ter um aborto aumenta a chance de uma mulher de desenvolver câncer de mama.

2. “Fazer um aborto torna mais difícil engravidar no futuro!” Um aborto seguro não causa problemas de fertilidade e de fato, fertilidade pode retornar depois de duas semanas após um aborto. Este mito pode perpetuar a gravidez indesejada se as mulheres acreditarem que são incapazes de engravidar depois de um aborto e assim não usar contracepções.

3. “As mulheres não precisariam fazer abortos se usassem contracepções!” Indivíduos podem não ser capazes de acessar a contracepção, escolher não usar, ou experimentar falha contraceptiva. Afinal, nenhum método é 100% eficaz. Eles também podem ter estado em situações de controle coercitivo pelos parceiros ou ficar grávidas através de estupro. Um estimado 33 milhões de mulheres em todo o mundo, mesmo usando contracepção, experimentará gravidez indesejada a cada ano.

4. “Mulheres sentem sentimentos de intensa tristeza, arrependimento ou depressão após aborto!” Mulheres experimentam uma série de emoções depois de realizar um aborto. Entretanto, evidências sugerem que a maioria das mulheres não se arrependem de fazer um aborto. Aqueles que fazem a campanha contra aborto geralmente falam sobre algo chamado “síndrome estressante do aborto”, expressão inclusive inventada pois não existe termo médico.

5. “Os abortos não são seguros!” Aborto é um procedimento seguro quando conduzido em condições sanitárias por um agente treinado, usando métodos aprovados e medicamentos. Parir uma criança é mais arriscado do que ter um aborto seguro.

6. “A legalização aborto acarretará em mais abortos!” As leis de aborto altamente restritiva não são associadas com taxas de aborto inferior. Por exemplo, a taxa de aborto na América Latina, onde as leis de aborto são extremamente restritas é de 32 por 1.000 mulheres, comparado a uma taxa de 12 por 1.000 mulheres na Europa Ocidental, onde as leis de aborto são menos restritas.

7. “Só mulheres jovens e irresponsáveis têm abortos!” Todos diferentes tipos de mulheres, de diferentes idades, experimentam a gravidez e o aborto, e uma grande proporção daquelas que buscam aborto são mães.

Fonte: “Safe abortion: technical and policy guidance for health systems, World Health Organization (2012).

Saiba mais:

📌Blog: “Somos Todas Clandestinas”.

“O blog visa romper com o silêncio e a hipocrisia que ronda a questão do aborto no Brasil e impede um debate baseado na cidadania das mulheres. Todo mundo conhece uma mulher que fez aborto porque decidiu interromper uma gravidez indesejada. A ofensiva de criminalização do aborto no Brasil ou em países vizinhos, bem como os retrocessos em países que já legalizaram o aborto, como na Espanha, é baseada numa visão misógina e machista das mulheres como seres moralmente incapazes de tomar uma decisão consciente sobre um processo central em suas vidas”.

https://somostodasclandestinas.milharal.org/

📌Documentário: “Somos Todas Clandestinas”, de Maria Baderna Filmes.

“Somos um milhão de mulheres, a cada ano. Somos casadas, solteiras, divorciadas e viúvas. Somos negras, brancas, indígenas. Somos adolescentes, jovens e adultas. Somos trabalhadoras, estudantes, desempregadas. Professoras, sociólogas, publicitárias, empregadas domésticas, jornalistas, prostitutas, advogadas, enfermeiras. Somos filhas, somos mães. Somos mulheres em marcha, estamos clandestinas e seremos Livres!”

Disponível no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=xb48gs6ufT4

📌Documentário: O Aborto dos Outros (2008), de Carla Gallo.

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=de1H-q1nN98

"O Aborto dos Outros é um filme sobre a maternidade no seu ponto limite. A narrativa percorre situações de aborto dentro de hospitais públicos que atendem mulheres vítimas de estupros, interrupções de gestações em casos de má-formação fetal sem possibilidade de sobrevida depois do nascimento e abortos clandestinos. O documentário mostra os efeitos perversos da criminalização para as mulheres e aponta a necessidade de revisão da lei brasileira. O documentário revela que, no Brasil, mais de um milhão de abortos clandestinos são realizados por ano, em especial, na cidade de São Paulo; colocando em foco a polémica discussão sobre a criminalidade, já que constata que inúmeras mulheres continuam a fazê-lo, nas condições que encontram, com atendimento adequado ou não".

📌Documentário: Uma História Severina” (2005), de Eliane Brum e Debora Diniz.

Disponível — Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=DwjZ27rLAv4

“Severina é uma mulher que teve a vida alterada pelos ministros do Supremo Tribunal Federal. Ela estava internada em um hospital do Recife com um feto sem cérebro dentro da barriga, em 20 de outubro de 2004. No dia seguinte, começaria o processo de interrupção da gestação. Nesta mesma data, os ministros derrubaram a liminar que permitia que mulheres como Severina antecipassem o parto quando o bebê fosse incompatível com a vida. Severina, mulher pobre do interior de Pernambuco, deixou o hospital com sua barriga e sua tragédia. E começou uma peregrinação por um Brasil que era feito terra estrangeira — o da Justiça para os analfabetos. Neste mundo de papéis indecifráveis, Severina e seu marido Rosivaldo, lavradores de brócolis em terra emprestada, passaram três meses de idas, vindas e desentendidos até conseguirem autorização judicial. Não era o fim. Severina precisou enfrentar então um outro mundo, não menos inóspito: o da Medicina para os pobres. Quando finalmente Severina venceu, por teimosia, vieram as dores de um parto sem sentido, vividas entre choros de bebês com futuro. E o reconhecimento de um filho que era dela, mas que já vinha morto. A história desta mãe severina termina não com o berço, mas em um minúsculo caixão branco”.

📌Série: “Do pronto-socorro ao sistema penal”, do Portal Catarinas.

Disponível Teaser: https://www.youtube.com/watch?v=yyBoW-LmkVw

"O portal é um veículo de jornalismo especializado em gênero, feminismos e direitos humanos. A série aborda casos de criminalização de mulheres por profissionais de saúde em atendimento emergencial por abortamento. Para monitorar esses casos em que uma paciente se transforma em criminosa quando busca socorro para não morrer, o Portal lançou o “Mapa Colaborativo da Criminalização por Aborto”, produzido como um diagnóstico com base em matérias jornalísticas veiculadas na imprensa. A intenção é expandir a pesquisa com outras notícias não listadas e relatos de mulheres que foram criminalizadas enquanto recebiam cuidados médicos após um abortamento".

Capítulo 1 — Do pronto-socorro ao sistema penal

Capítulo 2 — Quando o hospital se transforma em cárcere: relato de uma jovem algemada ao leito

Capítulo 3 — A justificativa do hospital que denunciou uma paciente por aborto

Capítulo 4 — O “caso das dez mil” e a suspeita permanente sobre as mulheres

Capítulo 5 — A ilegalidade das provas contra mulheres criminalizadas por aborto

Capítulo 6 — Respeitar, acolher e cuidar da paciente que passou por um abortamento

📌Podcast “Feito por Elas” #12 Especial Direito ao Aborto.

Disponível em: http://anticast.com.br/2016/12/feitoporelas/feito-por-elas-12-especial-direito-ao-aborto/

Nesse especial aborda-se documentários dirigidos por mulheres que tratam do direito ao aborto. As diretoras lançam seu olhar sobre as narrativas que tratam do acesso ou da sua falta à garantia de autonomia sobre o próprio corpo.

📌Documento: “Resultados da pesquisa mulheres incriminadas por aborto: um diagnóstico a partir dos dados da segurança pública”, divulgado pelo ISER (Instituto de Estudos da Religião) e Ipas (organização internacional em defesa dos direitos reprodutivos) em 2012.

Disponível em: https://apublica.org/wpcontent/uploads/2013/09/Relat%C3%B3rio-FINAL-para-IPAS.pdf

Resultados: 1)"Em mais de uma situação, a mulher denunciada foi algemada à maca do hospital público e, antes mesmo de se recuperar, o processo criminal estava em curso"; 2) "A incidência de entradas nos sistema de justiça via polícia militar, isto é, é muito mais comum que uma mulher seja incriminada por aborto quando ela utiliza um método abortivo “caseiro”
(remédios obtidos no mercado paralelo e outros métodos) do que quando ela recorre à clínica. Estes casos são justamente aqueles nos quais o procedimento dá errado (a mulher reage à medicação) e cai no sistema público de saúde; lá, um servidor público (em alguns casos o médico do posto, em outros um policial militar de plantão) a encaminha para a polícia. Este aspecto demonstra claramente o recorte sócio-econômico dessa modalidade de criminalização: a maior parte das mulheres que utiliza os serviços públicos de
saúde é pobre, muitas das quais desempregadas ou com ocupações de baixa
remuneração".

📌Documento: “Pesquisa Nacional de Aborto 2016” de Debora Diniz; Marcelo Medeiros; Alberto Madeiro.

Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v22n2/1413-8123-csc-22-02-0653.pdf

Resultados: "De acordo com o estudo, enquanto o aborto é uma realidade da mulher brasileira o cárcere é para poucas. Conforme os levantamentos sobre criminalização, a maioria das mulheres denunciadas é negra, moradora de áreas periféricas, com filhos e sem antecedentes criminais. A marca da discriminação social e étnica é perpetuada no lugar onde a mulher busca socorro para não morrer, depois de um procedimento feito com pouca ou nenhuma segurança".

[1]A norma técnica para uso do misoprostol do Ministério da Saúde orienta que para induzir o aborto, a mulher deve colocar 4 comprimidos de 200 microgramas (no total de 800g) de misoprostol sublingual e manter lá até se dissolverem. 3 horas depois a mulher deve colocar mais 4 comprimidos de misoprostol sob a língua. A mulher deve colocar de novo, pela terceira vez, 4 comprimidos de Misoprostol 3 horas depois da segunda dosagem. Não engula e não introduza na vagina. O aborto com misoprostol pode ser realizado em casa. Para mais informações: https://womenhelp.org/pt/.

[2] O aborto provocado no Brasil, devido à sua criminalização, pode ser considerado como inseguro e figura na lista das principais causas de mortalidade materna no país. O aborto oscila entre a terceira e a quarta causa de morte materna. Adiciona-se que a mortalidade materna é um dos nossos grandes problemas de Saúde Pública, estimada para o ano de 2006 em 77,2 óbitos por 100 mil nascidos vivos, e tem sido considerada incompatível com o nosso nível de desenvolvimento. Países desenvolvidos, como Canadá, Inglaterra, França e Japão, têm índices de mortalidade materna bem menores, por volta de 10 por 100 mil nascidos vivo (Ministério da Saúde. Rede Interagencial de Informações para a Saúde (RIPSA)/2008).

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maria eduarda antonino
QG Feminista

PhD student in Sociology at the Federal University of Pernambuco (UFPE/Brazil). Research interests: religion and politics; feminism; gender.