Carta aberta para o cara no Twitter que se pergunta se o sexo biológico é real

Sabrina Falcão
QG Feminista
Published in
7 min readMay 12, 2022

Texto original aqui

Pixabay

Imagine que você está em uma estação de trem.

À sua frente, você vê um homem atravessar os trilhos. Ele está distraído, ocupado demais para percorrer o caminho mais longo, perdido demais em seu telefone para perceber para onde está indo. Você vira a cabeça para o outro lado e vê o trem, correndo em direção a ele enquanto ele entra em seu caminho.

O que você faz? A resposta, esperançosamente, é óbvia: você fala alto, grita, acena com os braços e faz uma cena. E se ainda assim ele não perceber, ainda não erguer os olhos do telefone, você pula e o empurra para fora dos trilhos você mesmo. Talvez você não seja tão corajoso na realidade. Mas pelo menos você espera que seja isso que você faria, certo?

E por que isto? Por que você iria passar por todo esse esforço? Porque, conscientemente ou não, você entende as leis de Newton. Você entende que força é igual a massa vezes aceleração, que uma coisa muito pesada movendo-se muito rápido pode destruir um corpo humano frágil em um instante. Você faz o que pode para tirar aquele homem dos trilhos porque sabe que uma vida depende disso.

Mas você sabia que as leis de Newton dificilmente são estáveis? Que são meras aproximações, passíveis de desmoronar em todo tipo de situação? É verdade. A física newtoniana não pode prever como a luz se curva em seu caminho através do sistema solar, ou como um elétron pode girar em torno do núcleo de um átomo. Mesmo algo tão mundano quanto seu celular depende de um modelo muito mais sofisticado. Embora essas equações simples que você aprendeu no ensino médio possam ajudá-lo a passar o dia, a verdade é muito mais complicada.

Agora, aqui vai uma pergunta: sabendo disso, você muda o que você grita para o homem nos trilhos? Afinal, “O trem está vindo em sua direção!” é tecnicamente impreciso. Einstein nos mostrou que o movimento é relativo; em certo sentido, é igualmente razoável dizer que o homem está sendo arremessado em direção a um trem parado. Você tem alguns segundos restantes. Você usa o tempo para capturar a nuance?

A física pode ser o menor dos seus problemas, a propósito. A biologia é tão confusa. Você provavelmente está preocupado que o homem acabe morto, esmagado ou moído em pedaços. Mas o que significa estar vivo ou morto, afinal? Muitos cientistas diriam que não existe um critério único para distinguir matéria inanimada e animada. Algumas entidades, como um vírus ou um príon, chegam a destruir completamente o binário. E se você não consegue nem explicar por que o homem nos trilhos está vivo, que sentido faz se preocupar em mantê-lo assim?

E, claro, tudo isso não vem ao caso se não soubermos o que torna algo certo ou errado em primeiro lugar. Dezenas e dezenas de questões éticas complexas existem sem qualquer resposta consensual, e os fundamentos da moralidade são interminavelmente debatidos. Você deveria fazer alguma coisa para ajudar o homem? Você pode imaginar situações em que a inação é melhor; talvez ele seja um serial killer, ou algum outro monstro impenitente. Talvez não existam verdades morais, e seu esforço para salvá-lo é completamente irracional. Você pode ter certeza de que sua intervenção é realmente a coisa certa a fazer, se você não consegue nem definir o que “certo” significa em primeiro lugar?

Este certamente é um assunto complexo — uma obrigação complexa, um processo complexo, um resultado complexo. Presumivelmente, você vai querer ter certeza de que seu aviso está alinhado com toda a teoria quântica mais recente. Você vai querer descobrir exatamente o que quer dizer com “vida” e “morte” também. E não faria mal rastrear o padre ou professor de filosofia mais próximo para elaborar os pontos mais sutis da ética. Nuance, precisão e um olhar crítico são importantes, afinal. Não devemos nos esforçar para fazer tudo certo?

Agora, aqui está um experimento de pensamento diferente: imagine que é você nos trilhos do trem.

Ultimamente, tenho visto muitos debates no Twitter sobre sexo biológico — o que o define, como pode ser medido, se existe. Os homens que dominam esses debates geralmente são especialistas em seus campos, o que significa que usam termos como “distribuição bimodal” e “cariótipos fora do padrão” para defender seus pontos de vista mundanos. Acho que a maioria desses pontos são repetições tolas e cansadas de falácias identificadas pela primeira vez pelos gregos antigos no século IV aC. Eles misturam — ou, talvez intencionalmente, confundem — imprecisão com invalidade, percepção social com construção social e binarismo com exclusividade. Em outras palavras, eles negociam a familiar falta de lógica que apodrece na interseção da ciência e da filosofia, onde a covardia ontológica aparece como a forma mais elevada de nuance.

Mas aqui vou eu de novo, certo? É tão fácil ser sugado para este debate, ficar com aquela indignação quente no estômago que vem quando uma afirmação tola é afirmada com tanto orgulho. E eu nem estou com o meu na reta — binário ou não, meu sexo ainda me colocará diretamente na categoria “ganha mais, é menos estuprado”. Então, qual é o ponto além do exercício intelectual? Parece cada vez mais óbvio para mim que até mesmo entreter o debate é uma concessão, uma permissão para que a vida das mulheres seja objeto de experimentos mentais e contra factuais jogados no ar por algum pós-graduado que, coincidentemente, nunca se preocupou em engravidar de um estupro.

Então essa é minha resolução para o primeiro trimestre do ano: não vou debater com você sobre a realidade do sexo, pela mesma razão que não ficaria na plataforma de trem debatendo os pontos mais delicados da física enquanto o homem nos trilhos vira carne moída. Isso pode soar um pouco dramático, um floreio de retórica para encobrir uma refutação fraca. Mas quanto tempo você passou lendo até este ponto? Cinco minutos? Dez? Durante esse tempo o mundo tem cinquenta garotas a mais mutiladas do que quando você começou. As pessoas que realizaram essas mutilações estavam confusas sobre o que é um corpo feminino? Elas ponderaram sobre aparas cromossômicas e desvios-padrão quando escolheram quem cortar? Ou esse tipo de nuance é um luxo reservado apenas para homens educados, progressistas e mundanos como você?

Não é estranho que o sexo nunca tenha sido tão complicado antes? Não havia nada de etéreo em nossa biologia quando se tratava de atribuir o direito de votar, ou possuir propriedade, ou andar pela rua à noite sem medo. Sabíamos perfeitamente bem o que tornava alguém mulher quando isso garantia uma vida de subserviência e dor. Somente quando as mulheres começaram a dizer não é que seus corpos se tornaram um conceito. Tantas feministas falaram sobre este ponto, repetidamente. Eu as vejo falar isso. Eu sei que você leu. Você ouviu? Se não, por quê? E por que você sempre responde quando eu digo isso? Parece que você sabe quem tem um corpo feminino quando se trata de decidir qual perspectiva é ignorada.

O sexo é um mistério para você quando as mulheres querem abrigos para si mesmas, reuniões para si mesmas, palavras para si mesmas. Perdoe-me por perguntar, mas é igualmente misterioso quando você sai do Twitter e muda para o Pornhub? A verdadeira natureza de um corpo feminino é tão complexa quando você dá uma palestra. Torna-se simples novamente quando você se masturba? Quem lava a roupa na sua casa? Foi necessário navegar em uma sopa rudimentar de X e Y para sobrecarregar sua namorada com os pratos do jantar? Dê algum crédito a si mesmo — acho que você sabe perfeitamente o que é um corpo feminino. Mas caso não saiba, aqui vai uma dica:

É o único tipo de corpo que lhe joga na pira funerária quando seu marido morre. É o único tipo de corpo que faz com que seus pés sejam amarrados e seus seios esmagados. É o único tipo engravidado por estupro e queimado com ácido, o único tipo que se espera que fique quieto e ouça enquanto nós o redefinimos, o único tipo que os homens passaram milênios criticando e avaliando e comprando e vendendo até o momento em que decidimos que não conseguíamos saber o que diabos isso significa.

Você sabe o que é um corpo feminino, cara? É o único tipo de corpo que faz homens como você fazerem perguntas tão estúpidas. Então, por favor, pare. Isto é uma emergência. São três bilhões e meio de seres humanos amarrados aos trilhos, e você está conduzindo o trem. Sua insistência em nuances, seu fetiche por precisão, sua desconstrução presunçosa do senso comum — isso não faz você um ser profundo. Isso não o torna sábio. Isso não o torna progressivo. Isso faz de você um idiota. Isso o torna pior do que um espectador. Um espectador não faz nada. Ele observa de longe. Você entra na briga apenas para cutucar a vítima. Eu não vou intervir também, apresentando minha refutação sobre os gritos. Simplesmente não vale a pena.

Aqui está minha resolução: enquanto cafetões, padres e políticos souberem o que é um corpo feminino, eu também sei. No momento em que estiverem confusos — no momento em que hesitarem, no momento em que atenuarem, no momento em que adotarem a contenção e a cautela que você exige dos alvos de seu abuso — eu me abrirei alegremente à ambiguidade. Até lá, eu imploro. Reserve sua curiosidade de filósofo, seu rigor científico, para as dez mil outras perguntas que não fazem de uma atrocidade um experimento mental. O que marca a divisão entre conhecimento e crença? Como a vida se desenvolveu a partir da não-vida? Em que ponto um homem que está perdendo o cabelo fica careca e não apenas emagrece? Vá twittar para Rogaine¹ e veja a opinião deles sobre esse enigma. Deixe os centros para vítimas de estupro em paz.

¹Rogaine é um composto que age e estimula a circulação sanguínea, multiplicando as células da raiz do cabelo ampliando a oxigenação, e assim, podendo produzir um intenso crescimento de pelos como na barba, cabeça, dentre outros locais de interesse.

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