Como o patriarcado usa a cultura para socializar mulheres para se odiarem?

Ingrid Peixoto
QG Feminista
Published in
7 min readSep 16, 2019

O patriarcado é a super-estrutura pelo qual homens oprimem mulheres. Para funcionar efetivamente, o patriarcado precisa que o máximo de mulheres estejam envolvidas em sua manutenção, “colaborando” para perpetuar práticas de misoginia e prendendo-as num ciclo que também se vale da violência intra-feminina para mantê-las desunidas, e assim subjugar à todas. Essa participação feminina no jogo do patriarcado nem sempre é feita de forma consciente, e em sua grande maioria, as mulheres são socializadas para aceitar e perpetuar o sistema, porque não lhes foi possível “escolher” ser diferente. Usando a cultura num clima de rivalidade, desconfiança, e micro-violências emocionais e até mesmo físicas, mulheres são colocadas umas contras as outras, virando algozes de si mesmas.

Seja em práticas cruéis como mutilação genital, em práticas mais “leves” como competições em concursos de beleza, ou de formas até mais inconscientes através da música e da literatura, mulheres são incentivadas a inferiorizar mulheres e competir pela atenção masculina desde a mais tenra idade.

Quem nunca ouviu que mulheres são invejosas, falsas e interesseiras? E que amizade entre e com homens é mais sincera? A rivalidade entre mulheres é incentivada e esses conceitos são introjetados em nossa cultura há tanto tempo, que passam a ser parte do imaginário popular, sendo repercutidos desde os contos de fadas, às músicas pop que clamam contra “as inimigas”.

É muito perigoso para o patriarcado que mulheres se vejam como uma classe que compartilha da mesma opressão: misoginia, e se organizem de forma coletiva, sendo portanto primordial para a sua manutenção que mulheres se odeiem.

Vou exemplificar algumas das formas mais pungentes e as mais sutis de como as mulheres se tornam seus próprios algozes ao perpetuar o patriarcado. Comecemos pelas formas mais expressivas da dominação masculina: as sociedades onde as mulheres tem direitos mais cerceados e onde sofrem grandes violências com legitimidade do Estado. As mutilações físicas são uma forma de controle feminino usada em sociedades patriarcais sejam práticas que já foram extintas como os Pés de Lotus ou que sobrevivem nos dias de hoje como como a mutilação genital, ambas tem algo em comum: o patriarcado usa as próprias mulheres para executá-las.

Se valendo de um sistema de alienação patriarcal em que as mulheres são levadas a acreditar que passar por essas mutilações é necessário para serem aceitas na sociedade, e até mesmo que é algo “bom” para elas, essas violências são normalizadas e ganham até mesmo sinal de status para as mulheres.

Na China a prática de enfaixar os pés das meninas conhecida como Pés de Lotus perdurou por séculos e deformou os pés de milhões de chinesas. Por volta dos 6 anos de idade os dedos eram quebrados e dobrados em direção a sola do pé. Os pés eram amarrados firmemente com tiras de tecido para impedir o crescimento e permanecer entre 8–10 cm para o resto da vida. A prática acarretaria também grandes problemas motores , que as impediriam de andar, correr, ou se movimentar livremente. Ter pés pequenos era um sinal de status e visto como um passaporte para um melhor casamento e um melhor modo de vida. Numa visão convencional, isso existia para agradar e seduzir os homens, pois eles foram condicionados a serem atraídos por pés pequenos. Esse ritual era realizado pelas mães, convencidas de que se suas filhas não tivessem pés pequenos, não casariam, e portanto, passariam fome sem um marido.

Em países onde acontece a mutilação genital feminina, que consiste na remoção do clitóris e partes externas do órgão genital feminino, essa prática é realizada pelas mulheres em bebês recém-nascidos à meninas de até 11 anos, geralmente de maneira artesanal com lâmina e sem anestesia pela própria mãe, avó ou uma curandeira local. De acordo com os dados disponíveis, a mutilação genital feminina (MGF) é praticada em cerca de 28 países do continente africano, e em países do Oriente Médio e na Ásia, várias comunidades de imigrantes na Europa, Américas e Austrália. A UNICEF em 2016 estimou que 200 milhões de mulheres em 30 países sofreram MGF, e afirma que mais da metade das mutilações se concentram em apenas 3 paísesː Indonésia, Egipto e Etiópia. Embora haja um declínio da prática,as previsões é que ainda atinja milhões de meninas e demore cerca de duas décadas para ser eliminada. O patriarcado estabelece que mulheres devem ser mutiladas, mas ardilosamente joga o trabalho cruel para ser executado pelas próprias mulheres. Assim, não recai primeiramente sobre os homens, a culpa pela mutilação, mas sim nas próprias familiares mulheres que a executaram. Como mulheres poderão construir relações saudáveis de companheirismo e coletividade, se a violência intra-feminina é a base de suas relações nessas culturas?

Os populares concursos de beleza parecem inofensivos se vistos de modo superficial como entretenimento de televisão, mas escondem práticas misóginas: a primeira é classificar mulheres apenas por sua aparência física, a segunda é colocá-las para disputar entre si por quem chama mais a atenção masculina. E assim, sutilmente mulheres são ensinadas que precisam ser bonitas, e não só bonitas, precisam ser “a mais bonita”, o que significa que irão odiar e competir com outras mulheres por esse posto.

Agora passaremos brevemente pela literatura, onde desde os contos de fadas mulheres são incentivadas à serem inimigas e a introjetarem idéias misóginas inclusive sobre si mesmas. A literatura durante séculos foi trabalho majoritariamente de homens e escrita por e para homens, isso fez com que as crenças e preconceitos masculinos também fossem repercutidos durante séculos sem contestação. Homens definiam o que era ser uma mulher, o que ela deveria pensar e como se portar, enquanto limitavam seu acesso à educação, bem como direitos políticos e sociais.

O mote dos contos de fadas que surgiram na idade média geralmente mostram a rivalidade de uma princesa versus uma bruxa e aqui podemos citar as mais clássicas: A pequena Sereia, A bela Adormecida, Branca de Neve, Cinderela e a A bela e a fera. Nenhuma dessas princesas tinha amigas, a maioria não tem mãe, e suas relações entre mulheres geralmente são conflituosas. O conto da Cinderela é um dos que mostra melhor a questão da rivalidade feminina: mulheres competindo pela atenção de um príncipe, uma madrasta que faz as vezes de bruxa má e sem motivo algum detesta a enteada, enquanto o ápice da história é ser escolhida para casar com o príncipe dentre todas as mulheres do reino. Havia uma prerrogativa clara de colocar as mulheres num campo de disputa, nunca de amizade e solidariedade. Até mesmo hoje em contos de fada pela versão do Estúdio disney é difícil encontrar uma princesa que tenha amigas e saia com elas em busca de aventuras, o oposto, príncipes e seus fiéis escudeiros, já estão consagrados pela nossa cultura.

Em outro livro (que também virou uma série) O conto da Aia de Margaret Atwood, mostra bem como o sistema desmantela a solidariedade entre mulheres: em sua distopia as mulheres eram trabalhadas para alienar a si mesmas e outras mulheres em prol da dominação masculina sobre seus corpos. As “tias” eram mulheres que treinavam as Aias para o desempenho de suas funções, as fazendo acreditar que ser uma Aia, “geradora da vida” era uma função de status para a sociedade, mesmo que seus corpos fossem vistos como encubadoras e pudessem ser descartados tão logo não fossem mais necessárias. O fato de haver grupos de mulheres com hierarquias distintas, também corrobora para a rivalidade feminina, iludindo as mulheres que estão em situações um pouco mais confortáveis que essas migalhas patriarcais a tornam melhores que o restante das mulheres e que portanto estariam à salvo.

A música é outro campo midiático usado para alimentar a discórdia feminina, mesmo que inconscientemente, cantoras e cantores propagam séculos de socialização misógina e cantam letras que vão da depreciação ao ataque à outras mulheres, suas “inimigas”, geralmente numa disputa por homem…

Seguem alguns trechos exemplificando essa disputa:

“Não sou covarde, já tô pronta pro combate
Keep calm e deixa de recalque
O meu sensor de periguete explodiu
Pega sua inveja e vai pra
Rala sua mandada”
- Waleska Popozuda- Beijinho no ombro

“Cheguei quebrando tudo
Pode me olhar, apaga a luz e aumenta o som
A recalcada pira
Falsiane conspira
Pra despertar inveja alheia eu tenho dom
Se não gosta, senta e chora
Hoje eu ‘tô afim de incomodar
Se não gosta, senta e chora
Mas saí de casa pra causar”
Ludmilla- Cheguei

“Hoje ela ‘tá um nojo, toda descarada
Fazendo deboche para as recalcadas
E se mexer, tu vai tomar (vai tomar)
Nem tenta copiar ‘pa dona da porra toda
Na hora de balançar”
Dynho- Malemolência

“Você se faz de louca
Mas ‘tô sacando seu veneno
Não vem na minha sopa
Não vem no meu terreno
Eu convido todo mundo para a minha festa
Só não convido você porque você não presta”
Mallu Magalhães- Você não presta

Até mesmo numa musica sobre empoderamento, com discurso feminista de Chimamanda no meio, Beyoncé também cai no jogo de disputa do patriarcado e solta um “bow down bitches”:curvem-se vadias.

Todas essas representações de rivalidade feminina parecem inofensivas, mas constroem nosso arcabouço cultural onde mulheres estão sempre sendo invejosas, falsas, traiçoeiras e disputando por atenção masculina e a busca pela beleza também voltada para o olhar do homem. Portanto, seja em práticas sociais violentas, seja na literatura, na televisão ou na música, nada escapa ao patriarcado, e por isso, é tão importante tomarmos posições criticas acerca da cultura hegemônica impregnada de machismo, e desconstruir os mitos que foram propagados por homens e assumidos como verdades também pelas mulheres.

A solidariedade entre mulheres é o caminho para qualquer quebra na manutenção do patriarcado.

Não somos naturalmente inimigas,

e juntas seremos a revolução.

é isso que eles tanto temem.

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Ingrid Peixoto
QG Feminista

Uma leitora feminista, e nas horas vagas arquiteta e urbanista.